The Dawn of Evangelion escrita por Goldfield


Capítulo 21
Cântico dos Cânticos




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Cântico dos Cânticos

Terra do Fogo, Argentina, 2000

Misato não conseguia entender o porquê de chamarem aquele lugar de “Terra do Fogo”, já que tudo que via era gelo, montanhas nevadas, densa neblina e pessoas bastante agasalhadas – como ela e todos os demais a bordo do navio, resistindo à baixa temperatura. Talvez a denominação se desse por conta do que era necessário – calor – para que se protegessem, mas julgou jamais poder saber com certeza.

         Debruçada ao parapeito do convés, a garota observava o pouco movimentado porto de Ushuaia, com suas pequenas casas e a cordilheira ao fundo, ocultada por nuvens, que lembrava a paisagem distante de algum conto de fadas. Um dos marujos havia lhe dito que o local era chamado de “A cidade do fim do mundo”, por ser uma das povoações habitadas pelo homem mais ao sul da Terra. Se ali já era considerada a parte mais inóspita do planeta, imaginava então como seria a Antártida. Mesmo com as condições adversas, não podia negar que aquela estava sendo uma grande aventura para si, a qual pouquíssimas outras pessoas de sua idade poderiam vivenciar. Mas confessaria que ela poderia estar melhor... se contasse com a presença do pai.

         O doutor se encontrava, sim, igualmente a bordo do navio. Porém se o vira três vezes desde o início da viagem, no Japão, fora muito. Dormiam em cabines separadas, e ele passava quase o tempo todo com seus superiores da Gehirn, definindo o que seria feito quando chegassem ao continente gelado e revendo sua pesquisa. Se ao menos esses outros homens fossem simpáticos, Misato poderia tolerá-los, mas pareciam se esforçar para tratá-la da pior forma possível. O conterrâneo dela e do pai, Gendou Rokubungi, era um sujeito frio e calado, o rosto sempre mantido numa expressão que aparentava tirar sarro de quem o cercava, como se tivesse uma visão superior de si ou algo do tipo. Já o alemão, Keel Lorenz, lembrava-lhe o monstro Frankenstein. Tinha um visor estranho na face e suas pernas emitiam um som mecânico quando andava, como se ele fosse um cyborg do mal. E sim, era também muito ranzinza. Seu assistente, um norte-americano de nome Stewart, não era melhor. Careca e fechado, dava a impressão de querer espantá-la com pontapés sempre que tentava estar na companhia do pai.

         O pior era que Hideaki fazia questão que ela se portasse bem e respeitasse a todos. Mesmo odiando aquela gente, tinha de se mostrar solícita e educada sempre que possível – ou então ouvia longas reprimendas do cientista. Mesmo quando ainda viviam juntos com a mãe, a menina já usava aquela máscara para agradá-lo, sendo obrigada a fazer vista grossa para os descuidos do pai que tanto feriam a si e à mãe. Esta agora se fora. O lado bom: uma pessoa a menos para que ele magoasse...

         Assim afastada do doutor e seus colegas, Misato encontrava distração com os outros tripulantes. Pertenciam às mais diversas nacionalidades, uma variedade de línguas e costumes se misturando – e ela aprendendo um pouco de tudo. Descobrira, por exemplo, que o inglês britânico possuía diferenças em relação ao inglês falado nos Estados Unidos; e os falantes de um jeito brincavam com o jeito dos outros. De um português, ouvira que seu povo fora um dos primeiros da História a se lançar ao mar, contornando a África pelo sul para chegar às Índias, onde buscavam produtos como cravo e pimenta. A região vencida pelas caravelas no passado, então chamada de “Cabo das Tormentas”, também era um dos locais mais próximos da Antártida – assim como a Terra do Fogo. Para sua surpresa, Misato aprendeu até que os portugueses haviam pisado no Japão e deixado ali sua influência, como a fundação da cidade de Nagasaki – a mesma tristemente destruída pela bomba atômica. De um peruano dos Andes, encantara-se com histórias sobre os antigos incas e as construções que erguiam na encosta das montanhas em honra aos seus deuses nos céus. Imaginava se, retornando daquela expedição, também teria relatos interessantes a contar. Esperava que sim, e que a magia destes superasse o descontentamento com o pai...

         Súbito, um grave apito soou, ecoando por todo o porto. Alguns marujos se moviam para lá e para cá, cuidando de suas tarefas, até que um deles – Jacob, o francês – deteve-se brevemente diante da adolescente e lhe informou, sorrindo:

         - Vamos zarpar, mademoiselle. A Antártida é nossa próxima parada!

         E, conforme o navio se afastou do píer, Misato perguntou-se se, em meio ao mundo gelado para o qual seguiam, o coração do doutor Hideaki Katsuragi conseguiria adquirir ao menos um pouco de calor humano...

*  *  *

Katsuragi adentrou a cabine um tanto desajeitado, batendo a porta de metal com mais força do que desejara. Sentados à mesa possuindo um mapa aberto, viu Rokubungi e Stewart, Lorenz permanecendo de pé ao lado do móvel. E todos perceberam quando o recém-chegado olhou mais uma vez espantado para o alemão, ainda não-habituado ao fato de ele ter voltado a andar. Por certo encarava aquilo como um milagre, embora já houvesse ouvido tantas vezes que a própria tecnologia da Gehirn permitira o feito.

         - Sente-se, por favor – pediu Keel, indicando uma cadeira vazia.

         Assim ele o fez. Sempre se sentia desconfortável na presença daqueles homens, ainda que fossem eles que financiassem sua pesquisa, inclusive aquela expedição. O silêncio, unido a um ar pesado, predominou no recinto por alguns segundos, antes de Gendou perguntar:

         - O senhor acredita dever haver alguma alteração na rota que definimos?

         - Não, estou de acordo com o que foi previamente planejado – respondeu o pai de Misato, lançando os olhos sobre a representação cartográfica da Antártida. – Viajaremos até a plataforma de gelo Filchner-Ronne. De lá desembarcaremos os veículos terrestres e seguiremos até a área do Pólo Sul, onde iniciaremos as escavações. Ainda não estamos no inverno, então as temperaturas não serão tão insuportáveis. Mas eu espero que possamos estar de volta em casa tomando um bom chocolate-quente até o final de setembro.

         - Se preciso for, ficaremos até depois de setembro – Lorenz declarou sério, mãos atrás da cintura.

         Katsuragi fitou o semblante eletrônico do comandante e então os de Rokubungi e Stewart – mas estes se mantinham igualmente impassíveis. Coube então a ele próprio protestar:

         - Senhor, não temos condições de trabalhar durante o inverno, ainda mais com nossa equipe numerosa e a natureza desta expedição. Além de levarmos muito mais tempo que o previsto, poderia haver baixas e...

         - Como líder da Gehirn, essas são minhas instruções, doutor – o alemão insistiu, soturno. – Além do mais, durante o inverno as bases de pesquisa na Antártida são praticamente esvaziadas. Haveria menos pessoas para bisbilhotar nosso trabalho.

         - O senhor vai me perdoar, mas... não vejo motivos para manter em segredo o que faremos...

         Hideaki estava visivelmente confuso. Talvez pensasse na filha, uma adolescente de meros quatorze anos contra o clima impiedoso do inverno antártico. Mas, conhecendo a natureza de sua personalidade, eles sabiam que se preocupava acima de tudo com o sucesso da expedição, em encontrar a misteriosa fonte ilimitada de energia. Não desejando ser novamente questionado, Lorenz logo disse:

         - Gendou, leve o senhor Katsuragi ao laboratório do navio. Alguns pesquisadores precisam da ajuda dele para analisar algumas amostras de água colhidas do mar de Ross após o início do fenômeno energético.

         - Entendido.

         Levantando-se de forma discreta, Rokubungi conduziu Hideaki para fora da cabine.

         Vendo-se sozinhos, Stewart logo comentou:

         - Ainda não sei como pôde permitir a vinda da filha dele... Pode atrapalhar mais do que ajudar, deixar o homem dividido...

         - Discordo – Keel replicou num murmúrio. – O doutor preferiria passar a vida toda com uma solenóide do que mais de dez minutos com a menina. Além do que, ela está prestes a adentrar a Condição de Bernadette. Pode nos ser útil em alguma outra experiência de Contato que se mostre necessária.

         - Mas Katsuragi nunca esteve perto de Metatron...

         - Sei disso. Mas lembre-se que, apesar de mais arriscado, o Contato entre adolescentes normais e Anjos ainda é possível. É melhor conservarmos esse ás na manga.

         Stewart assentiu, ainda que com ar um pouco contrariado. Em seguida, Lorenz caminhou até um freezer existente num dos cantos da sala, retirando de dentro dele uma maleta cinzenta de metal. Inserindo uma combinação numérica no pequeno painel junto à sua tranca, abriu-a, o interior pressurizado liberando jatos de vapor. Levou então uma mão ao recipiente... os dedos retornando com um minúsculo frasco de vidro contendo líquido vermelho. Sangue. A etiqueta escrita a caneta classificava a amostra como “Turim”.

         - O acordo com o Vaticano... – falou o careca, olhando para o artefato com descrença. – Ainda não acredito que estamos cumprindo essa exigência.

         - Não vejo como nada digno de alarme. É apenas DNA para a experiência. Não se pode provar que o sudário é mesmo autêntico. Estudos já alegaram que se trata de uma farsa criada na Idade Média.

         - E se for verdadeiro?

         Diante da dúvida, Keel guardou calmamente a amostra de volta na maleta e, lacrando-a, manifestou-se:

         - Nesse caso, já que estamos tentando alcançar a Deus... seja proveitoso ter o Filho dele entre nós.

         Dando as costas para Stewart, fechou o recipiente mais uma vez no freezer.

*  *  *

No convés da embarcação, Misato, após dias vendo apenas mar, contemplava agora a paisagem da Península Antártica, um braço de terra que se erguia para o norte como se quisesse tocar a Terra do Fogo. No início, o cenário de rochas e gelo se mostrava mais monótono do que gostaria... até que ela os viu.

         Pingüins.

         Majestosos em seu porte e cores, pareceram, à garota, aves de smoking caminhando a passos elegantes sobre as geleiras. Enquanto machos seguiam para lá e para cá com pedras nos bicos para montar ninhos, outros pulavam em grupo para a água, nadando de forma nata e trazendo do oceano, pouco depois, peixes como troféus. A menina ficou fascinada por aqueles animais, tão vivos e inteligentes num ambiente que lhe aparentava ser tão desolado. Sua surpresa se completou quando viu surgir ao seu lado, junto ao parapeito, a figura do pai. De imediato lhe indagou, sem pensar em mais nada:

         - Papai, podemos levar um daqueles pingüins para casa? Diga que sim, por favor!

         Katsuragi sorriu, passando uma das mãos pelos cabelos da filha.

         - Essas aves pertencem a este lugar, querida. Não sobreviveriam no clima do Japão.

         - Mas posso criar um quarto cheio de gelo e neve para uma delas! Como aquelas pistas de patinação!

         Hideaki suspirou. Talvez se sentisse mais culpado ainda por ser um pai ausente diante da inocência da filha. Naqueles raros momentos em que esboçava uma reaproximação, achava-se pisando num campo minado, com medo de magoá-la a qualquer coisa que dissesse. Mas, movido por seus mais íntimos anseios, vinha criando coragem e insistindo. Como àquela manhã.

         - E então, como foram esses anos vivendo com sua mãe? Acho que ainda não havia lhe perguntado isso...

         A menina voltou a face para o pai, parecendo surpresa diante da iniciativa dele em iniciar uma conversa, e respondeu:

         - Normais... eu acho. Digamos que nunca me habituei bem à escola. As outras meninas são chatas... diria até maldosas. Mas era divertido quando saíamos nas férias, e também nas excursões. Além disso, fiquei esperando.

         - Esperando? Como assim?

         - Para ver se o senhor retornaria de vez. Desde o divórcio, tive a esperança de que cairia em si e viria atrás de nós... Mas isso acabou só acontecendo mesmo depois que a mamãe morreu.

         O doutor estremeceu.

         - Querida, durante esta viagem... sei que não tenho estado tanto com você, mas...

         - Papai, o senhor está feliz, perseguindo o que tanto quer? – ela indagou subitamente, encarando-o.

         - B-bem... – Katsuragi tentou ser sincero. – Sim.

         A adolescente abriu um sorriso, abraçando-o pela cintura.

         - Então eu também estou. Não se preocupe.

         Sem palavras, Hideaki permaneceu unido à filha, afagando-a. Foi quando se viu tomado por uma sensação estranha... intensa. Quando deu por si, flagrou-se numa situação que há anos se julgava incapaz de viver: chorava, abundantes lágrimas lhe escorrendo pelo rosto contraído.

*  *  *

Gendou Rokubungi adentrou a cabine de Keel Lorenz com seu ar sério de costume. Era incrível como lembrava o pai, mas o velho ainda não estava certo se desenvolvera a mesma capacidade de ação. Ao menos já aparentava ser tão leal quanto seu predecessor, sempre prestativo e sem questionar ordens. Talvez fosse algo de família.

         - Chamou, comandante? – ele questionou, aproximando-se da mesa à qual o superior estava sentado.

         - Sim. Desejo falar-lhe em particular.

         O alemão observou com minúcia o japonês posicionar-se diante de si, mantendo a expressão de deboche que sempre trazia. Poderia desconfiar que ele o colocaria à prova? Provável. Não era tolo. E justamente isso lhe chamava tanta atenção naquele homem. Parecia a tudo prever, agir sempre com antecedência de acordo com seu julgamento.

         - Diga – pediu, tendo ar convicto.

         Lorenz manifestou-se sem rodeios:

         - Senhor Rokubungi, o que estaria disposto a fazer por esta organização?

         - Como assim? – Gendou ergueu uma sobrancelha.

         - Quase se matou numa briga de bar em Kyoto desejando ter acesso a nós. Agora que o tem, quão forte é sua fidelidade? O que faria para nos servir? Ou melhor... o que poderia deixar de fazer, para seguir nossos desígnios?

         O oriental manteve-se firme:

         - Eu imagino que o senhor comandante não irá me revelar, ao menos agora, o motivo destes questionamentos, irá?

         Keel sorriu.

         - De fato... Porém desejo saber se poderemos contar com sua pessoa num momento crítico, mesmo se outros de nossos subordinados questionarem nossas ordens.

         Rokubungi sequer pestanejou ao replicar:

         - Podem contar sempre comigo.

*  *  *

Conforme a vasta seção continental da Antártida se desenhava à frente, Misato acreditava estar diante dos altos muros de um gigante vivendo numa imensa casa de gelo. Os imponentes paredões branco-azulados se assemelhavam a um castelo invernal flutuando nas águas do oceano. Acima das elevações, uma imensidão alva estendia-se pelo horizonte alaranjado, definindo o contorno recortado daquele mundo frio ao sul do planeta.

Afetada pelo fenômeno do “sol da meia-noite” – como se chamava o fato de o sol jamais se pôr durante o verão de seis meses nas proximidades do Pólo Sul – a adolescente vinha tendo problemas para dormir, optando por isso permanecer a maior parte do tempo no convés admirando a paisagem. Os pingüins, presença cada vez mais constante, já eram considerados por si velhos amigos; enquanto leões-marinhos e cardumes coloridos se somavam à radiante fauna do cenário repleto de gelo.

Súbito, à frente do navio, surgiu, incrustada na plataforma gélida, uma pequena base humana dotada de píer e um grande guindaste. Era difícil imaginar uma instalação do tipo num ambiente tão adverso, o que fez Misato deduzir que o lugar não devia ser lá muito utilizado. Atracando junto ao mesmo, foi iniciado o descarregamento da embarcação. Ela trazia incrível quantidade de equipamentos e veículos, quase todos desmontados, suas peças sendo aos poucos retiradas do transporte pelo mecanismo para posterior montagem sobre o gelo. O pai lhe dissera que eles não haviam viajado de avião justamente devido ao peso de todas aquelas máquinas, que incluíam até mesmo robôs; além da Gehirn desejar estudar os efeitos na Antártida da descoberta do doutor pelo caminho até o Pólo Sul.

Enquanto o processo ocorria, Jacob, o marujo francês, aproximou-se da garota. Rindo, perguntou-lhe, com as mãos nos bolsos do grosso casaco e vapor lhe saindo pela boca:

- Preparada para algumas semanas abaixo de zero, mademoiselle?

Misato assentiu timidamente, ainda incerta sobre o que poderia encontrar além daqueles paredões...

*  *  *

Sobre a plataforma de gelo, extensos e complexos veículos eram montados, suas rodas encaixadas eixo por eixo e estruturas superiores acopladas sobre os mesmos. Robôs T-RIDEN-T 01, de uso logístico, tinham seus braços metálicos unidos aos troncos repletos de fiação, as ligações sendo então soldadas. Boa parte dos marujos do navio, agora usando capacetes e máscaras, eram responsáveis pela preparação do equipamento. Perto dali, compondo pequenas silhuetas na vastidão branca, Lorenz, Stewart, Rokubungi e Katsuragi assistiam ao processo.

         - Estaremos prontos antes do que imaginávamos... – murmurou Keel, semblante satisfeito.

         A tripulação mostrava-se, por certo, bem mais competente do que eles haviam suposto. Permaneceram ali tranqüilos por algum tempo, Hideaki apenas lançando um ou outro olhar preocupado para Misato conforme ela corria e pulava, animada, entre os trabalhadores...

         Até que, empilhados na traseira de um caminhão para neve, viram diversos cilindros revestidos de metal, cada um possuindo comprimento aproximado à altura de um ser humano e sistema eletrônico de tranca. Cápsulas. Stewart, com o rosto assumindo expressão ligeiramente intrigada, inquiriu:

         - O que são aqueles artefatos?

         - Dispositivos ARK – esclareceu Katsuragi. – Alarm-und RettungsKapsel. Cápsula de Alarme e Resgate. Utilizada em evacuações de emergência. São resistentes até à pressão das profundezas oceânicas. Invenção da Gehirn alemã.

         - Nós estamos mesmo contando com a necessidade de uma evacuação de emergência? – o norte-americano parecia alarmado.

         Os demais se entreolharam.

- Foi uma exigência minha, doutor – esclareceu Lorenz. – Procedimento padrão. Não há motivo para transtorno.

Stewart concordou com um aceno da cabeça, porém demonstrava ainda preocupar-se. Nisso, o ronco de motores ecoou pelos arredores: os primeiros dos veículos já eram colocados para funcionar.

         - É melhor irmos andando... – recomendou Keel, suas pernas emitindo os costumeiros ruídos mecânicos. – Temos um bom caminho pela frente!

A Expedição Katsuragi, imersa no vazio polar, remetia a uma caravana de beduínos perdida num imenso deserto branco. O horizonte enferrujado e o tapete de gelo tornavam a paisagem monótona, triste. Até mesmo pingüins e outros animais começaram a ser vistos com crescente raridade. A única diversão de Misato, naqueles vários dias, foi acompanhar alguns dos pesquisadores da Gehirn em suas coletas de amostras para estudo – quando se distanciavam do grupo e acabavam visitando cenários diferentes, como sopés de montes e cavernas congeladas. O pai, como era de se esperar, pouco a via. Passava cada vez mais tempo na companhia de seus superiores, ansioso por chegar ao local onde comprovaria sua teoria.

         A garota ficou um pouco decepcionada ao saber que eles não avançariam até exatamente o Pólo Sul, onde ouvira falar existir uma base de pesquisas norte-americana. O pensamento de ver um poste listrado em vermelho e branco na localização do ponto mais ao sul do planeta logo se desvaneceu; sua mente sendo então incomodada pelos “bipes” dos medidores de energia usados pela equipe dia após dia quando se aproximaram mais de seu destino. O pai, inclusive, era um dos homens que não davam um passo sequer sem determinar o nível de irradiação da área, talvez desejando tropeçar em sua descoberta a qualquer momento...

         Até que, num fim de tarde que anunciava mais uma noite de sol, o dispositivo de Hideaki passou a emitir impulsos num ritmo quase frenético. Ofegante, confirmou as leituras de energia por um momento e em seguida fincou no gelo uma pá que trazia.

         Chegara a hora de cavar.

*  *  *

As imensas brocas, inseridas nos braços mecânicos dos robôs, emitiam som praticamente ensurdecedor. Em seu giro, perfuravam grossas camadas de gelo, outros grandes pedaços se desprendendo conforme os buracos enfraqueciam a estrutura e derretendo com o calor gerado pelas máquinas. Cabos de guindastes removiam as pedras mais pesadas e espessas, aos poucos um grande átrio subterrâneo sendo aberto a partir da superfície. O pai proibira Misato de descer, alegando a instabilidade do local – e por isso a filha permanecia quase o dia todo perambulando junto à borda da abertura, vendo as camadas frias se desfazer em água e partículas, refletindo a luz solar em tons brilhantes e coloridos.

         Numa tenda próxima ao buraco, os líderes da expedição monitoravam via computador o andamento da escavação. Katsuragi, utilizando um programa de mapeamento, exibia agora na tela da máquina um modelo esférico 3D, explicando:

         - Já conseguimos estipular as dimensões da estrutura no subsolo. Trata-se de uma esfera perfeita, com quase quatorze quilômetros de diâmetro e revestimento de calcário, criando uma couraça branca como a neve. Soterrada algumas centenas de metros abaixo da superfície, deve estar aqui na Antártida há centenas de milhares de anos. Eu não acharia estranho dizer que todo o continente tenha se formado a partir desse globo. O interior está quase todo preenchido por gelo, mas estamos abrindo caminho rápido. Segundo consta nos medidores, a fonte de energia localiza-se ao centro da esfera. É como se ela compusesse um casulo, ou algo do tipo.

         O doutor demonstrava claramente perplexidade diante das estranhas minúcias de sua descoberta. Os outros, porém, não transpareciam qualquer espanto.

         - Talvez nós humanos estejamos mesmo pré-destinados a encontrar essa sua fonte de energia perpétua, doutor... – cogitou Lorenz. – O senhor está dispensado. Por favor, monitore de perto o progresso dos pesquisadores.

         - Entendido.

         Hideaki retirou-se, deixando Keel, Stewart e Gendou imersos em sombras.

         - Os dados batem de forma exata com a descoberta feita no Japão décadas atrás – afirmou o cientista norte-americano. – A Lua Negra trouxe Lilith à Terra. Agora encontramos o transporte de Adão: a Lua Branca.

         - “Yin” e “yang”... – murmurou Rokubungi, vendo na diferença de cores interessante analogia.

         - Por quanto tempo ainda manteremos Katsuragi alheio sobre o que realmente encontrou? – indagou Stewart.

         - Pelo tempo necessário – Lorenz replicou friamente. – Deixemos o homem trabalhar. Já está assustado frente às supostas coincidências envolvendo seu estudo. Pressioná-lo mais pode não se mostrar bom.

         - Mas e quando Adão for exposto? – insistiu o careca. – Então não haverá como esconder a verdade!

         O alemão voltou seu rosto com visor para o subordinado e, num tom firme, respondeu:

         - Tudo se arranjará.

*  *  *

Assim que a escavação se ampliou e Misato ganhou acesso às galerias no subsolo, a adolescente inaugurou um novo esporte, que torcia para que um dia se tornasse olímpico, ainda que de inverno: “Corrida Antártica”. Devia se assemelhar a uma corrida de obstáculos normal, com a diferença de ela ter de se desviar de estalagmites e outras formações de gelo ao invés de simples cavaletes – além, é claro, de o trajeto ser muito mais escorregadio e perigoso. Um pouco de prática, porém – após ignorar as reprimendas do pai – já a fazia uma atleta quase nata na modalidade. E os marujos vindos no navio, agora operários da Gehirn, pareciam se divertir muito com suas peripécias.

         Conforme o buraco subterrâneo se ampliava, uma verdadeira infra-estrutura era erguida no interior do mesmo. Plataformas metálicas sustentavam as partes mais instáveis do teto, enquanto veículos e equipamentos viam-se instalados pelas profundezas. Túneis abertos em meio à massa branca interligavam as diferentes galerias, os pesquisadores tendo criado verdadeiros laboratórios improvisados a cada ponto da descida. Em sua corrida habitual, Misato passava por tudo e todos, mal sendo percebida na maioria das vezes. Ela não importava ali, inclusive ao pai. O mais importante se mostrava o objetivo da expedição. A tal comprovação da solenóide...

         Naquele dia, entretanto, eles a ignoravam mais do que o costume. E o caminho encontrava-se quase todo vazio, por sinal.

         Que teria acontecido? Haveriam simplesmente desaparecido, tragados por aquele ambiente gelado?

         Aturdida, a garota correu mais rápido, avançando através de galerias que jamais adentrara – avisada sobre o risco de desmoronamento. Pulou, deslizou, a claridade vinda da superfície diminuindo a cada nova passagem... e por fim chegou.

         A imensa caverna era bem maior do que qualquer outra das abertas pelo pessoal da Gehirn, sendo iluminada por luz artificial fornecida através de grandes lâmpadas presas precariamente ao teto. Dividia-se em vários níveis, interligados por rampas naturais de gelo. Numa dessas plataformas, identificou, de costas, o pai, Rokubungi e Lorenz fitando perplexos algo que era aos poucos desenterrado mais abaixo. Outros trabalhadores e cientistas circulavam pelo local, recolhendo dados ou simplesmente admirando boquiabertos o achado. Por fim, no centro e região mais rebaixada do local, o foco de todas as atenções: a figura de um gigante branco prostrado no solo, deitado sobre a própria barriga e com os braços e pernas ainda não totalmente libertos do gelo. Os contornos se mostravam aparentemente humanos, embora uma espessa camada de neve ainda cobrisse totalmente a superfície de seu corpo, inclusive a cabeça oval. O mais estranho era que, das costas do colossal ser, projetava-se um par de pontas, como se ele houvesse sido trespassado e a outra extremidade do objeto ainda se mantivesse oculta sob a região do peito.

         Apitos e silvos eletrônicos eram emitidos sem parar pelos medidores nas mãos dos ali presentes. Indicação de que a origem da manifestação energética encontrava-se naquele organismo.

         Ao ver aquilo, Misato, um pouco trêmula, lembrou-se de histórias que ouvia quando mais nova, sobre gigantes que um dia haviam habitado a Terra – filhos, ao que se lembrava, de Anjos com homens – e que Deus fizera desaparecer com o Dilúvio. Seria aquela coisa uma dessas criaturas, ali congelada depois de levada pelo mar milhares de anos antes?

         A voz alta de Keel Lorenz, no entanto, logo forneceu à menina, involuntariamente, o nome daquele ser, quando sua voz reverberou pelo ambiente da caverna:

         - Adão. Nós o encontramos.

*  *  *

Ó, amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!
Alegria, formosa centelha divina,
Filha do Elíseo,
Ébrios de fogo entramos
Em teu santuário celeste!
Tua magia volta a unir
O que o costume rigorosamente dividiu.
Todos os homens se irmanam
Ali onde teu doce vôo se detém.
Quem já conseguiu o maior tesouro
De ser o amigo de um amigo,
Quem já conquistou uma mulher amável
Rejubile-se conosco!
Sim, mesmo se alguém conquistar apenas uma alma,
Uma única em todo o mundo.
Mas aquele que falhou nisso
Que fique chorando sozinho!
Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até a morte;
Deu força para a vida aos mais humildes
E ao querubim que se ergue diante de Deus!
Alegremente, como seus sóis voem
Através do esplêndido espaço celeste
Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
Alegremente como o herói diante da vitória.
Abracem-se milhões!
Enviem este beijo para todo o mundo!
Irmãos, além do céu estrelado
Mora um Pai Amado.
Milhões, vocês estão ajoelhados diante Dele?
Mundo, você percebe seu Criador?
Procure-o mais acima do Céu estrelado!
Sobre as estrelas onde Ele mora!

Já dizia Beethoven em seu nono canto, que os homens devem se reunir perante o Altíssimo! Serem um só, irmãos eternos, uma só criatura, tornarem-se Criador! Profetizou Hegel: a humanidade só pode alcançar a felicidade tornando-se una, para que as fraquezas de uns sejam compensadas pelas qualidades de outros. Ó vinde, rejubila ao toque da trombeta! Rompe-se aos poucos o selo do Segundo Segredo, anunciando o triunfo no Terceiro da cria de Lilith. Em teu abraço, ó grande mãe, como se imerso no líquido de teu útero, abro minhas asas e encaro meu destino.

O momento se avizinha.

Já é hora!

*  *  *

Hideaki suspirou, os cotovelos sobre a mesa e as mãos unidas diante de si. Fitou o rosto de cada um dos outros homens em torno do móvel e finalmente se pronunciou, num murmúrio:

         - Preciso de tempo para assimilar isso...

         De fato, era difícil digerir todas aquelas informações. A exposição fora longa e, ainda que houvesse ocultado tópicos como a existência da SEELE e outros pormenores, abundante em detalhes. Pacientes, os demais aguardaram. Até que, depois de alguns instantes, o próprio Katsuragi retomou a palavra:

         - Bem, o que pretendem então fazer em relação a Adão?

         - Nós o enxergamos, assim como os outros Anjos, como ameaça à espécie humana – afirmou Lorenz. – Os Manuscritos do Mar Morto revelam que haverá uma guerra entre nós e eles. Assim, quanto mais nos precavermos, maiores serão as chances de vitória.

         - Aquele artefato perfurando o corpo de Adão é o que chamamos de “Lança de Longinus” – esclareceu Stewart. – Trata-se de um dispositivo criado pela Primeira Civilização Ancestral para controlar as Sementes da Vida, no caso Adão e Lilith. Quando Lilith chegou à Terra, a lança que veio com Adão, dotada de consciência própria, imobilizou-o para impedir o nascimento de novos Anjos, e os existentes entraram em hibernação. Lilith também possuía uma lança como essa, mas que se espatifou no impacto de sua chegada. A Gehirn tem posse de um de seus fragmentos, encontrado no Nepal e alvo de constantes estudos.

         - Então se pode dizer que a lança está “contendo” Adão? – quis confirmar Hideaki.

         - Exatamente – assentiu Rokubungi. – Nosso plano, visando reduzir o risco representado pelo Anjo, é revertê-lo para estado embrionário. Faríamos um procedimento controlado retirando a lança e ao mesmo tempo transferindo a alma de Adão para um receptáculo, obtendo assim tanto controle sobre seu corpo original quanto dominando sua essência. É esta, por sinal, a fonte de toda a energia que nossos satélites detectaram. Todo Anjo possui um órgão vital cujo funcionamento se baseia na teoria da Super Solenóide. O denominamos “Núcleo S²”.

         - De que tipo de receptáculo estão falando?

         - Nós mencionamos nossas experiências de Contato, em que os organismos de um Anjo e um humano podem se fundir – retomou Keel. – É o que pretendemos fazer aqui. Introduzir uma amostra de DNA humano no corpo de Adão para que haja união das estruturas genéticas. O resultado seria um ser com a aparência de Lilith e a alma e imortalidade de Adão.

         - Alguém que poderíamos controlar, e repetir o processo com os demais Anjos, conforme surgirem – Stewart complementou.

         Katsuragi voltou a contemplá-los, seu olhar indicando certa desconfiança. Tornou em seguida a se manifestar:

         - Qual meu papel nesse plano, se me permitem perguntar?

         - Auxiliar-nos no procedimento de Contato – respondeu Gendou. – Com Adão em estado embrionário, será muito mais fácil e proveitoso estudá-lo. Poderá descobrir como se originam os Núcleos S², abrindo caminho para a construção dos mesmos pelos seres humanos. Seria a comprovação final de sua teoria. E, claro, o crédito ficará todo para o senhor. Não interessa à Gehirn expor publicamente todas as nuances desta expedição.

         - E também não me importa tanto a fama. Só quero tornar real o objetivo de tantos anos de pesquisa.

         - Pois é a oportunidade que tem, doutor – Lorenz afirmou em tom conclusivo.

          Hideaki tamborilou os dedos sobre a mesa com uma mão, enquanto com a outra girava a cruz metálica pendurada ao pescoço. Acabou erguendo de novo a cabeça e, tomado por uma decisão não muito firme, replicou:

         - Seguirei suas instruções.

         - Perfeito – sorriu Keel. – Nós o avisaremos do que precisar fazer. Pode voltar ao trabalho. Contamos muito com ele, doutor.

         Katsuragi levantou-se da cadeira um tanto hesitante, seguindo então a passos rápidos até a porta da cabine. Pôde ser ouvido se apressando pelos degraus da plataforma conforme se distanciava. Lá fora, na caverna, os homens continuavam escavando Adão.

         - Comandante, quando capturaremos a filha dele? – inquiriu Stewart subitamente. – Ele já está ficando emocional. Se demorarmos mais, pode haver contratempos.

         - Perdoe-me, mas por que colocaríamos nossas mãos na pequena Misato? – Lorenz quis saber, esticando-se em seu assento.

         - Ora... Ela está atingindo a Condição de Bernadette. Mesmo não tendo sido gerada através de gônadas afetadas por Metatron, é a única na Antártida neste momento com idade propícia para o experimento de Contato.

         - Nós não usaremos Misato, doutor. Achei ter deixado claro ser apenas uma possibilidade, não uma certeza.

         - Mas então... Quer dizer que iremos inserir diretamente aquela amostra de DNA em Adão?

         - Exato.

         O careca estremeceu em sua cadeira, arregalando os olhos.

         - Senhor, isso é um absurdo! Se com um ser humano na condição ideal o procedimento já é instável, imagine utilizando um mero frasco de sangue! Não poderemos controlar o processo! As leituras mostram que Adão tem mais energia contida em seu núcleo do que mil bombas de Hiroshima. Quer mesmo correr o risco de liberar essa quantidade de poder durante a experiência?

         - Nós não liberaremos nada. Mantenha a calma. Segundo seus próprios estudos, durante o experimento nós simplesmente geraremos dois embriões: um representando o corpo de Adão e outro humano, a partir do código genético na amostra, com a alma do Anjo. Separaremos carne de essência. Não haverá perigo.

         - Mas a quantidade de energia em Adão é grande demais para ser convertida para a forma embrionária sem sua liberação, comandante. Se usássemos Misato, ela ainda poderia se diluir em seu corpo, como foi o caso de Mary Morgan. Mas não nessa situação que quer criar. Para onde iria todo esse poder? Não iria simplesmente sumir!

         - Conversões de energia... O doutor Katsuragi não lhe ensinou que nem tudo na Física Clássica é aplicável desde que começamos a ouvir falar de Anjos e Segredos, doutor Stewart?

         O norte-americano bufou, contrariado. Ameaçou dar um soco no móvel, porém acabou se erguendo e, caminhando até a porta, disse:

         - Espero que saiba mesmo o que está fazendo, senhor.

         Saiu logo depois.

         Lorenz e Rokubungi viam-se agora sozinhos. O primeiro logo voltou a falar:

         - O experimento está marcado para daqui a seis dias. É o tempo necessário para Adão terminar de ser desenterrado e o equipamento ficar pronto.

         - Confere – anuiu o oriental, frio.

         - Daqui a cinco dias, de preferência na noite anterior à experiência, nós tomaremos um avião na base dos EUA perto daqui, rumo à Alemanha. Ninguém deverá saber. O piloto é de minha confiança e será eliminado logo depois, se preciso for.

         - E Stewart? – a pergunta era inevitável.

         Keel respirou fundo antes de explicar:

         - Ele é o maior especialista em genética no grupo. Deverá permanecer aqui para conduzir o experimento, não é mesmo?

         O alemão conteve um discreto sorriso antes de continuar:

         - Espero que esteja preparado para o que vai acontecer. Será duro e difícil, porém necessário. Não se preocupe quanto à sua noiva. Daichi já está avisado, assim como os demais acólitos da SEELE, e eles se moverão para um abrigo especialmente preparado dois dias antes do evento.

         Gendou apenas anuiu com a cabeça.

         - Bom ter provas de sua fidelidade – contentou-se Lorenz. – Estamos quase lá, meu amigo... Nós criaremos o nosso Novo Gênesis. E este será o primeiro passo decisivo.


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