The Dawn of Evangelion escrita por Goldfield


Capítulo 15
Isaías




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Isaías

Nevada, EUA, 1986

A porta metálica abriu-se automaticamente após suas impressões digitais terem sido verificadas. Um curto corredor foi liberado diante de si, no qual se lançou vapores para a descontaminação. Adiante, outra porta, esta ainda mais reforçada e com o emblema de perigo biológico nela gravado. Nova verificação, e ela também deixou o caminho. A cadeira de rodas de Keel Lorenz ganhou a seguir uma ampla sala cinzenta e esterilizada, com um cilindro em seu centro. Era dotado de uma janela blindada de um dos lados, exibindo, em seu interior, uma figura humanóide, de pé, presa a uma estrutura semelhante a um sarcófago sem tampa, o corpo revestido de faixas brancas como uma múmia – e apenas os olhos de pupilas vermelhas, fixados de modo bem aberto, permanecendo expostos. O aspecto azulado da cápsula e a fina camada de gelo cobrindo o espécime nela contido revelavam se tratar de um dispositivo criogênico.

         O comandante da base não conseguia fitar a cobaia, mas julgava-se capaz de sentir seus tênues batimentos cardíacos no interior do invólucro... de captar o frio e a impotência sentidos por ela. Lacrara-a ali havia quase vinte anos, desde o incidente envolvendo seu rapto e que custara a Lorenz as pernas e a visão. Vingança? Também. Mas Metatron mostrara-se perigoso demais, a qualquer um, para poder continuar se movimentando livremente pelas instalações. Além do mais, tornava-se mais simples realizar certas pesquisas e experiências mantendo o Anjo dormente daquela maneira.

         Keel costumava visitar aquela parte da base quando desejava pensar. Sozinho com a entidade congelada, achava-se superior... como uma prévia da Instrumentalidade, do que estava por vir. Raciocinava com maior clareza. E naquela ocasião não estava sendo diferente.

         - Está para acontecer, Mary... – ele logo se flagrou falando com o ser, embora incerto sobre se conseguia escutá-lo. – Nós vamos realizar a experiência. Assim como você... tornaremo-nos deuses.

*  *  *

Stewart detestava carros soviéticos. O pequeno VAZ-2103 acelerava pela estrada como uma tartaruga com rodas. Sempre que andava num veículo como aquele, o cientista perguntava-se como a União Soviética fora capaz de enviar o primeiro ser humano ao espaço ou construir perigosos mísseis nucleares sem poder projetar um automóvel decente. A SEELE deveria se preocupar um pouco menos com o Terceiro Segredo e produzir bens de consumo um pouco melhores para tornar os anos antes do Apocalipse mais confortáveis. Além do que, não eram todos que viveriam para testemunhar o grande feito de igualar os homens a Deus...

         - Deveria ter optado por um passeio a Kiev, há muito mais coisa para ver! – afirmou o motorista, seu guia local, com acentuado sotaque eslavo.

         - Estou aqui a trabalho, mas em próximas oportunidades certamente conhecerei a capital... – murmurou, em resposta, o norte-americano no assento do passageiro.

         Haviam atravessado a fronteira da Bielorússia para a Ucrânia há poucos minutos, placas entre os pinheiros junto ao asfalto indicando agora faltarem somente mais alguns quilômetros para a cidade de Pripyat. O horizonte era dominado por nuvens cinzentas e escuras, indicando chuva para em breve. O mesmo limiar logo foi preenchido, pouco a pouco, pela silhueta dos prédios da urbe e, mais ao fundo, os rígidos contornos da usina nuclear de Chernobyl, nos quais se tornava proeminente a torre listrada em vermelho e branco.

         - O senhor é o que, inspetor nuclear? – questionou o nativo.

         - Sim, representante da Agência Internacional de Energia Atômica das Nações Unidas – Stewart apresentou-se conforme o que constava em seu disfarce oficial. – Inspeção de rotina nas instalações soviéticas.

         - Ah, eles aos poucos estão se abrindo para o mundo... Vai ver, não são tão maus como pintam...

         - Assim espero.

         Adentraram Pripyat nesse instante, o pesquisador contemplando pela janela crianças indo enfileiradas para a escola, enquanto seus pais, quase todos empregados na usina, seguiam com seus uniformes rumo ao trabalho.

Vista de perto, Chernobyl era um complexo de construções grandes e metálicas, como um verdadeiro castelo industrial abrigando em seu coração os reatores que constituíam um dos maiores orgulhos da União Soviética. Após atravessar o portão, com Stewart apresentando seu falso visto aos guardas, o carro avançou para o caótico pátio interno da usina, contendo diversas passarelas interligando os prédios secundários. O guia estacionou e o cientista logo deixou o veículo, agradecendo a viagem. O motorista apenas murmurou algo em russo e partiu rapidamente. O lugar aparentava lhe causar calafrios. Se soubesse o que ocorria embaixo dele, então, sentiria mais medo ainda...

         O enviado da SEELE americana chegou quase ao mesmo tempo em que um helicóptero oficial do governo soviético, a aeronave pousando igualmente nas dependências. De seu interior, recebido por prestativos soldados cuidando da segurança da usina, surgiu um grupo de sete idosos, todos vestindo preto e acompanhando os vigias até o local em que Stewart se encontrava. Alguns dos anciãos moviam-se em cadeiras de rodas, entre os quais uma face bem conhecida ao pesquisador: Keel Lorenz.

         - Bom dia, inspetor – o grão-mestre Gottschalk saudou-o, mantendo as aparências. – Bom vê-lo aqui. Somos da “Siemons”, empresa alemã de tecnologia nuclear. O Kremlin permitiu nossa participação nas atividades visando o convênio idealizado pelo secretário-geral entre a União Soviética e capitais estrangeiros.

         - De acordo – assentiu o cientista, divertindo-se internamente por participar do teatro. – Se o Partido permitiu, está feito. Testaremos hoje o novo sistema de ventilação dos reatores. Conto com que me apresentem as instalações.

         - Certo.

         Lorenz tomou a frente da comitiva, mais familiarizado ao lugar – embora tivesse de ser guiado vez ou outra pelos guardas, devido à sua falta de visão. Passando por alguns trabalhadores de colete e capacete totalmente alheios aos ilustres visitantes, adentraram um corredor interno da usina, com poucas portas e terminando aparentemente numa parede vazia. Através de um gesto, Gottschalk dispensou os vigias, ao mesmo tempo em que avançava até o final do trajeto. Tateou o metal da superfície de forma ordenada, empurrando alguns canos e válvulas na estrutura repleta de tubulações. Pouco depois, algumas destas recuaram, como barras de prisão, para cima e para baixo, simultaneamente ao deslocamento de uma seção inteira da parede para o lado. Atrás dela, surgiu um elevador gradeado de vigas cor de cobre.

         Stewart e os idosos ganharam o transporte, grande o bastante para que todos embarcassem. Coube ao pesquisador norte-americano, seguindo instruções de Lorenz, pressionar os botões certos no painel junto à porta para iniciar a descida rumo ao subsolo. O careca realizou a tarefa, enquanto a estrutura se fechava feito uma gaiola e, com uma lâmpada vermelha sendo acesa no teto, iniciava seu caminho terra abaixo.

         Apenas o começo da viagem foi escuro, com os buracos nas paredes do mecanismo exibindo somente rocha nua e a única claridade no interior provindo da fonte rubra acima de suas cabeças. Logo, porém, o ambiente se abriu numa imensa caverna subterrânea, dotada de estalactites e estalagmites gigantescas, lâmpadas brancas instaladas por toda parte e um solo que, de tão profundo, não podia ser visualizado – o “chão” do lugar sendo composto de plataformas rochosas suspensas à beira de precipícios escuros como breu. Foi junto a uma dessas plataformas, convertida numa verdadeira central de pesquisas com amplo equipamento e pessoal, que o elevador se deteve num estremecer, a porta metálica se abrindo. Os ocupantes, um tanto receosos, seguiram para fora – guiados por Keel, o único que, mesmo cego, não aparentava se intimidar nem um pouco diante do inóspito local.

         - Sejam bem-vindos à Central COVENANT.

A longa sigla criada por Lorenz para se referir àquele projeto, idealizado há anos sob sua quase isolada supervisão, significava “Contact Operation Via Engagement of Neural And Natural Transposition”. Traduzindo, “Operação de Contato Via Engajamento de Transposição Neural E Natural”. Em resumo, a tentativa de criar um “Contato” artificialmente, assim como se estimava ter ocorrido entre o Anjo Metatron e a humana Mary Morgan em 1947.

         Avançando pelas instalações subterrâneas abertas para a grande caverna, os acólitos da SEELE viam-se muito admirados com o que observavam, pisando ali pela primeira vez. Uma extensa equipe de cientistas, todos usando jalecos, trabalhava arduamente junto a computadores e painéis, cuidando dos últimos preparativos para o experimento que ali teria palco dentro de mais algumas horas.

         - Keel... – chamou Gottschalk num dado momento, impressionado. – O que você vem escondendo aqui, afinal?

         - Como sabem, o que almejamos é a criação de um novo Deus – explicou Lorenz. – A união de todas as almas num único ser em que as fraquezas de uns seriam supridas pelos pontos fortes de outros. O fim do dilema da existência física. De acordo com nossa interpretação dos Manuscritos do Mar Morto e as contínuas pesquisas, tal ser surgiria da fusão entre um filho de Lilith e um filho de Adão. Um humano e um Anjo. A união do Fruto do Conhecimento ao Fruto da Vida. Temos um exemplo de ser de caráter divino sob comando da SEELE, senhores. O Anjo Metatron. Ele fundiu sua estrutura genética e essência à menina Mary Morgan, que lhe serviu de receptáculo. É o que almejamos para toda a humanidade. No entanto, a maneira como o Anjo conseguiu levar a cabo esse processo é desconhecida. E, se o quisermos repetir cumprindo o que está nas Escrituras, teremos de tentar dominá-lo e compreendê-lo.

         - Quer dizer que...

         - A Central COVENANT foi criada para experiências de Contato. Nós vamos tentar gerar Deus aqui. Unir os Frutos.

         Os anciãos recuaram assustados, quase caindo por terra. Só Stewart, entre eles, encarava tudo com naturalidade. O grão-mestre preocupou-se:

         - Keel... Segundo os Manuscritos, os filhos de Lilith só terão acesso ao segredo da Instrumentalidade após o reencontro com Adão. Ainda há quatorze anos para isso. Não deveríamos nos desviar da profecia...

         - Não poderemos reencontrar Adão de mãos vazias, Gottschalk. É preciso nos prepararmos agora. A Primeira Civilização Ancestral nos deu, por intermédio de Lilith, o Fruto do Conhecimento. A ciência. É a arma dos seres humanos. Constitui nosso direito usá-la a nosso favor.

         - Não sabemos que conseqüências isso pode ter... – apontou outro acólito. – É mexer com as sementes da Árvore da Vida!

         - Toda árvore tem quem a plante... Por que não nós?

         Dando as costas aos colegas, Lorenz avançou na cadeira até a borda de uma das plataformas, apoiando-se no parapeito de metal. Não podia enxergar, mas voltou-se para o abismo, os olhos cegos tentando captar vibrações das profundezas misteriosas. Stewart posicionou-se ao seu lado, após ter dado algumas ordens aos cientistas. Pouco a pouco, da escuridão lá embaixo, foi erguido por dois grandes guindastes um suporte de metal semelhante a uma jaula. Em seu interior... algo disforme, estranho à visão, ainda mais por trás das superfícies gradeadas de seu invólucro. Fitando-se atentamente, todavia, era possível distinguir algo como um amontoado de carne, possuindo extensões... patas, cada uma terminando em correias circulares de aço que, envolvendo-lhes as extremidades, pareciam bizarros cascos. Ao topo de um pescoço de ossos compridos à mostra, existia uma cabeça um tanto achatada... com dois grandes olhos negros, focinho e três chifres curvos que se projetavam da testa. As costas da perturbadora criatura eram revestidas por uma espécie de carapaça também metálica, possuindo as inscrições “CCCP” em vermelho e o símbolo da União Soviética: martelo e foice entrecruzados.

         A coisa, maior que um caminhão, tinha vida e estava consciente, batendo os chifres contra as paredes da jaula e grunhindo conforme era posicionada suspensa acima do vazio. Os já estarrecidos acólitos da SEELE se desesperaram com a aparição da criatura, Gottschalk correndo até Lorenz e Stewart para indagar, esbaforido:

         - O que é isso?

         - Um constructo orgânico – Keel replicou com calma. – Chama-se “Behemoth”. Trata-se do primeiro ser vivo criado de forma totalmente artificial pelo homem em laboratório, com base em antigos fósseis pré-históricos. Um empreendimento conjunto das divisões americana e soviética.

         - E qual é o propósito dele? – inquiriu outro idoso ao se aproximar, vendo a jaula balançar para lá e para cá com o monstro.

         - Será o representante de Lilith no Contato.

         Os acólitos que ouviram aquilo estremeceram, entreolhando-se. Somente um deles teve coragem para perguntar:

         - E o representante de Adão?

         Lorenz sorriu ao revelar:

         - Está vindo de avião. Na melhor das previsões, chegará aqui à noite.

*  *  *

Angustiantes horas de espera se passaram para os membros da SEELE. Não poder observar o céu tornava tudo ainda pior, já que no subsolo o tempo aparentava simplesmente não passar. A aterradora presença da cobaia Behemoth, com seus rugidos e agitação na cela suspensa, também contribuía para um péssimo ambiente. Gottschalk e seus acólitos sentiam-se estranhos no ninho em meio aos cientistas, trocando com eles pouquíssimas palavras no decorrer do dia. Viram trocas de turno, sinais de cansaço – que acabaram por também contagiá-los... até que finalmente algo novo ocorreu, quando passava da meia-noite e vários dos idosos haviam sido vencidos pelo sono.

         Numa de suas descidas ao subsolo, o elevador trouxe uma equipe de cinco ou seis pesquisadores trajando jaleco... empurrando uma grande mesa metálica com rodas contendo algo sobre si, oculto embaixo de um lençol cirúrgico azul-claro e assim se tornando apenas uma proeminência misteriosa. O artefato foi conduzido pelas plataformas até uma estrutura mais isolada sobre o abismo, ligada ao centro de controle somente por uma estreita ponte de ferro. O grupo ali deixou a mesa sem retirar o tecido, posicionando-se em seguida junto a computadores espalhados pela caverna. Ao que parecia, a experiência finalmente estava pronta para começar.

         - Cadê o Lorenz? – um dos acólitos questionou, não encontrando Keel em lugar algum.

         Mas os companheiros do idoso aparentaram não se preocupar muito com a questão, envolvidos pelo som dos dedos dos cientistas sobre os teclados e os recorrentes grunhidos monstruosos de Behemoth. Os guindastes erguendo a gaiola da criatura logo voltaram a se mover, levando o recipiente para perto da plataforma solitária contendo o que havia sido trazido há pouco pelo elevador. Todos passaram a fazer a contagem regressiva para a libertação do espécime...

         Início do experimento de Contato em... dez... nove... oito...

         A voz feminina, semi-computadorizada, vinha através de alto-falantes espalhados pelo lugar, contribuindo ainda mais para a incômoda ansiedade dos acólitos.

         - Essa aberração... – murmurou o grão-mestre para uma pesquisadora próxima de si. – Não há o risco de ela nos atacar?

         - Caso se manifeste indício de hostilidade contra a equipe da central, explosivos na plataforma e naquela ponte de acesso serão acionados para destruir a cobaia e atirar o que sobrar dela às profundezas da caverna. Não se preocupe.

         A resposta, no entanto, não conseguiu deixar Gottschalk muito seguro. Dentro de sua prisão, o monstro continuava grunhindo e se debatendo como nunca, as grades aparentando poderem ceder aos maciços chifres a qualquer instante. Alguns dos velhos da SEELE, mais sensíveis, acabaram desmaiando de nervosismo, sendo amparados por pesquisadores e assistentes. Era uma amarga ironia aqueles homens por trás dos governos do mundo – dotados de um imenso poder que lhes permitia manipular tudo das sombras – se fragilizarem daquela maneira diante de algo que um de seus próprios semelhantes havia projetado.

         Cinco... quatro... três...

         O grão-mestre girou o olhar ao redor, buscando Lorenz. Só então começava a se importar com o fato de o controverso acólito não se encontrar ali...

         Dois... um...

         Por meio de uma violenta descarga elétrica conduzida por cabos de alta tensão suspensos sobre o abismo, um dos lados da jaula abriu-se para fora de uma vez num estrondo metálico. A estrutura, agora, estava contígua à plataforma contendo o objeto misterioso sob a toalha, não havendo sequer espaço entre as bordas. A criatura só teria de sair e pisar no novo ambiente.

         Jaula aberta – a voz robótica continuava anunciando.

         Apesar de sua prévia agitação, Behemoth levou alguns instantes para abandonar o cárcere. Quando a porta se abriu, fitou primeiramente o lado de fora com espanto, como se lhe fosse algo por completo novo. Deteve-se junto a uma das beiradas da saída e aos poucos esticou a cabeça disforme para o exterior, logo depois testando sua superfície ao pisá-la de forma tímida com um dos cascos de aço. Mais seguro, embora visivelmente receoso devido ao buraco sem fundo em volta, o bizarro animal engatinhou para a plataforma, sob o olhar fascinado dos cientistas que não paravam de registrar dados em seus computadores.

         Espécime deixou a jaula. Monitorando atividades externas.

         - O conhecimento como arma de adaptação ao ambiente... – Gottschalk murmurou, deixando de lado o medo devido a estar impressionado pelo que via. – Reconhecer o novo para não correr o risco de a ele sucumbir. Os primeiros passos de qualquer ser vivo...

         Logo o corpo inteiro da cobaia era visto em cima da outra estrutura, que nem sequer oscilou com seu peso. Behemoth aparentou ignorar o que ali havia por breve momento, até que se abaixou sobre as quatro patas e cheirou com o focinho a toalha azul... como se fosse um pitoresco cão gigante e deformado em carne viva. Mostrou interesse pelo achado, não o abandonando... até que removeu o véu que o cobria usando a ponta de um dos chifres, revelando seu verdadeiro conteúdo tanto a si quanto aos demais presentes.

         Tratava-se de um artefato semelhante a uma bola de cristal com dez vezes o seu tamanho esperado, inserida num monte de carne fibrilosa ao qual era mantida presa pela base. A esfera brilhava de forma intensa, como se dotada de algum tipo de luz própria.

         - Essa é a parte angelical envolvida no Contato – a voz de Keel Lorenz subitamente retumbou, mas pelos alto-falantes, ninguém imaginando onde o alemão estaria.

         - Do que se trata? – o grão-mestre inquiriu, surpreso e tornando a ser dominado pelo temor.

         - Nós o chamamos provisoriamente de “Núcleo SG”. Vem de “Santo Graal”, o cálice capaz de oferecer imortalidade. Trata-se do próprio Fruto da Vida. A fonte de energia inesgotável dos Anjos. Esse, em particular, foi extraído de Abuzohar, o Anjo encontrado na lua.

         Gottschalk e os demais acólitos ainda conscientes estremeceram... principalmente quando a criatura tornou a farejar o objeto brilhante, agora sem o revestimento... e recuou, como se afetada por ele de alguma forma.

         - O que está acontecendo? – um dos idosos exclamou, sua voz ecoando pela caverna em meio à labuta dos cientistas.

         Behemoth ergueu o corpo... apoiando-se somente nas duas patas traseiras. O tronco levantou imponente, tornando a criatura mais alta do que eles jamais podiam imaginar ser. Foi quando perceberam que o organismo do espécime começava a se alargar, como se até então houvessem contemplado somente a crisálida e surgisse diante deles a mariposa. Num processo sanguinolento, um par de fileiras de costelas brotou do peito do monstro; o pescoço e os membros – agora convertidos em pernas e braços devido à nova postura – esticando-se em projeções ósseas e distensões musculares. O cheiro de sangue tornou-se quase insuportável na Central COVENANT quando a criatura finalmente concluiu a transformação, o focinho afundando-lhe na face e pequenas orelhas brotando de cada lado de seu crânio... deixando-a com feições assustadoramente mais humanas.

         - Lorenz, o que afinal de contas é essa coisa? – o grão-mestre berrou desesperado.

         - Eu omiti um detalhe... – o filho de Heinrich aparentava se divertir através dos alto-falantes. – Behemoth é sim um constructo orgânico... feito com base numa amostra de DNA colhida de Lilith no Japão. O segredo que o conselho por tanto tempo tentou ocultar de mim.

         - Você não era confiável! – outro velho bradou. – Tentou nos manipular logo que seu pai morreu!

         - Bem, acredito que, seguindo os passos de todos os filhos de nossa “grande mãe”, sou bem mais competente que os senhores na tarefa de provar do Fruto do Conhecimento.

         Um breve momento de silêncio se seguiu, até mesmo os pesquisadores passando a se preocupar com sua situação...

         - Adeus.

         O som breve e áspero de estática foi então ouvido, indicando o fim do elo de áudio.

         A ausência de barulho ainda se estendeu por alguns segundos, tanto os acólitos quanto os cientistas atônitos e a criatura na plataforma mantendo-se imóvel com o tronco erguido... voltando a cabeça lentamente para o alto da caverna, como que encarando o céu...

         Até que emitiu um urro descomunal, digno da mais selvagem das feras, fazendo toda a estrutura rochosa estremecer e os corações dos humanos ali presentes praticamente se despedaçarem.

         Mal os gritos de pânico saíram, o monstro curvou-se sobre a plataforma de forma extremamente rápida... abocanhando o núcleo luminoso aos seus pés numa voraz dentada.

*  *  *

Ela subitamente conseguiu se mexer.

         Sentia frio. Um frio quase insuportável. Não sabia, no entanto, se vinha de dentro ou fora de si. Era certo que já há tempos sentia-se estranha... muito estranha. Há milênios visitava aquele mundo, mas... será que ele o teria afetado tanto assim? A ponto de mudar sua natureza? Chegando a desvirtuar o que era?

         Moveu os dedos das mãos e dos pés. Achou aquilo divertido. Suas costas coçaram, presas a seja lá o que fosse atrás de si. Parecia metal, duro e gélido, contribuindo para o péssimo clima dali. Como poderiam ter feito aquilo consigo? Por tanto tempo?

         Piscou as pupilas rubras. E o vidro blindado da cápsula, pouco à frente de si, estilhaçou-se como se fosse nada.

         Uma sirene irritante passou a soar pelo recinto, vapores azulados e brancos sendo soprados sobre si. Tossiu. Enquanto rompia as correntes que lhe prendiam as pernas, os braços e a garganta, tentou se recordar do porquê de ter despertado. Fechou os olhos momentaneamente, concentrando-se. E sentiu.

         Começara.

         - Lilim, lilim... – suspirou, expressão de desdém. – Tão afoitos...

         As solas descalças pisaram o chão do cilindro, movendo-se então para fora dele. Ainda se lembrava como andar, e com sorte de tudo mais que precisava saber naquela forma. Do lado de fora, deparou-se com uma grossa e pesada porta eletrônica. Estendeu uma mão... e a mesma se desprendeu de seu suporte, enrolando-se numa bola de titânio bem menor que seu tamanho original e fazendo mais um incômodo alarme ser ativado. Já compunham uma sinfonia.

         Ainda com o braço esticado, Metatron fez a esfera metálica levitar por uma curta distância, e então a atirou contra a porta lacrada seguinte com a velocidade de um canhão, abrindo nela enorme fissura.

         Mais uma sirene. E gritos.

         Se começara mesmo... ela não podia se atrasar.

*  *  *

Daichi Ikari, em seu escritório móvel no canteiro de obras, lia tranquilamente alguns relatórios de escavação. O dia de trabalho vinha se mostrando calmo, os operários cada vez mais acostumados à excentricidade daquele serviço. Controlar o fluxo de informações tinha sido um problema, mas a SEELE o auxiliava nisso. O porta-voz da organização, Keel Lorenz, também prometera ajudá-lo em muitas outras coisas, caso aquela operação terminasse bem-sucedida...

         Súbito, a terra tremeu, o cientista segurando-se à mesa enquanto papéis e mapas rolavam para o chão.

         - Terremoto? – alguém gritou do lado de fora, tendo o mesmo pensamento que ele.

         Repentinamente passou... para poucos segundos mais tarde, quando o japonês voltava a pegar a pasta, se repetir em maior intensidade. Um tremor cadenciado? Podia aquilo ser mesmo natural?

         Ouvindo os passos apressados dos trabalhadores e temendo pela segurança da filha – que ficara fora do escritório – Daichi resolveu dirigir-se ao exterior.

         O que encontrou foi completa desordem: barracas desmoronavam, veículos davam ré com motoristas desnorteados tentando se salvar da iminente desgraça, guindastes entortavam, operários corriam para preservar suas vidas... Em meio ao caos, Ikari só mantinha uma preocupação: Yui. Olhando em volta, todavia, não conseguia avistar a filha em ponto algum.

         Até que se voltou para o buraco, aparente origem dos tremores. De dentro dele se levantava uma imensa nuvem de poeira, como se algo devastasse por dentro o GeoFront. Algum tipo de desmoronamento causado por um erro nas escavações? Questionando-se sobre isso e ao mesmo tempo desesperado em encontrar sua menina, Daichi teve um vislumbre dos andaimes no interior da abertura cedendo como blocos de montar... e notou, finalmente, a criança, de pé junto a uma das beiradas da profunda cratera.

         - Yui! – ele berrou, avançando em disparada até a filha.

         A garota virou de leve a cabeça na direção do pai... enquanto, sem que percebesse, uma gigantesca mão branca se erguia de dentro do buraco, projetando sobre a pequena sua sombra ameaçadora.

         - YUI! – Ikari tornou a chamar, coração tomado de puro terror.

*  *  *

O doutor Stewart inseriu mais alguns comandos no teclado do computador diante de si. Próximo dele, do lado oposto da pequena sala, Keel Lorenz encontrava-se sentado diante de um painel de monitores exibindo imagens em tempo real da Central COVENANT, dos mais variados ângulos. Não podia vê-los, mas acompanhava tudo que ocorria na Ucrânia por meio de sons, tendo um par de fones cobrindo os ouvidos.

         - Está começando, senhor – informou-lhe o cientista.

         - Positivo. Finalmente recuperarei tudo que é meu por direito. Arcanjo-1 está em posição?

         - Afirmativo, senhor. O pacote deixou há pouco a Alemanha Oriental e já é trazido por Arcanjo-1. Os guardas da SEELE ofereceram pouca resistência.

         Lorenz sorriu, acionando um pequeno interruptor presente no painel, após tateá-lo por um momento. Através de alto-falantes existentes no recinto, os acordes graves do início da Nona Sinfonia de Beethoven começaram a tocar.

         - Prossigamos.

*  *  *

O clima na Central COVENANT era de pavor. Behemoth dilacerava o Núcleo SG como um predador atacando o coração ainda pulsante de uma presa, movido por seus mais primordiais instintos. Os próprios pesquisadores, compreendendo seu destino, puseram-se a correr até o elevador, numa última tentativa de salvarem suas vidas. Entretanto, logo que o primeiro grupo, entre empurrões, embarcou no transporte e acionou-o... o mesmo desprendeu-se de seu suporte e despencou para a imensidão negra do abismo, os gritos de seus ocupantes afastando-se até se perderem para sempre na escuridão.

         Presos ali. Todos eles.

         Uma pesquisadora, arrancando os cabelos, atirou-se ao abismo por conta própria. Alguns colegas reproduziram seu gesto, deixando os acólitos da SEELE tentados a fazerem o mesmo. Apesar do medo, todavia, o grão-mestre Gottschalk desejava morrer contemplando o que ali aconteceria. Queria expirar com os olhos fixos no mistério que se desenrolava bem diante deles naquele momento...

         Behemoth terminou de alimentar-se da fonte de energia angelical, voltando a levantar o tronco e colocar-se de pé em sua majestosa altura. Uivou, como um lobo, como se... abrigasse a essência de todos os animais em seu íntimo. Representando toda a criação de Lilith. Do mais primitivo ser ao mais desenvolvido.

         O constructo ergueu-se do chão, mas não pelos pés. Flutuava acima da plataforma, a distância entre ele e a superfície sólida logo se tornando a de alguns metros; a criatura sendo conduzida lentamente, por uma força misteriosa e invisível, até o teto da imensa caverna.

         Logo parou, pairando no ar numa sensação de extraordinária leveza. Aqueles que ainda não haviam se suicidado detiveram-se para assistir ao divino espetáculo. Sim, divino. Como se tornara aquele ser.

         Behemoth abriu os braços, esticando-os para os lados como se desejasse abraçar a todos... abraçar o mundo. Alcançar a Árvore da Vida. Tornar-se eterno.

         O organismo inteiro do espécime brilhou, parte da ofuscante luz, que tomou a central, dele se desprendendo e partindo rumo aos presentes na forma de fagulhas, como carruagens de fogo... como anjos etéreos. Desdobrou-se em vinte, trinta, cinqüenta cometas dourados, partindo do monstro e se dirigindo, entre giros no ar, para cada um daqueles humanos. Seus olhos se arregalaram, também brilhando, de fascínio, conforme os clarões se aproximavam. Contemplavam a Verdade. A Glória Divina.

         E, diante de cada um deles, as labaredas se transformaram.

         Para um solitário pesquisador de origem belga que ali trabalhava, converteu-se na jovem que amava desde a infância e que nunca pudera ter, abraçando-o de forma calorosa e trocando com ele um beijo nos lábios. Para uma amedrontada cientista russa, assumiu as feições do pai há muito falecido, amparando-a cheia de ternura como se desejasse protegê-la de tudo no mundo. Para um especialista em computadores órfão de pai e mãe, a chama dividiu-se em duas, estas se moldando como os pais que o pobre rapaz não via desde bebê e tomando-o pelas mãos. E, para Gottschalk e seus acólitos, as projeções de fogo tornaram-se velhinhos serenos, de barba e cabelos compridos inteiramente grisalhos... O aspecto clássico de como imaginavam ser Deus.

         Em seguida explodiram.

         Explodiram em montes de líquido alaranjado, semi-transparente, viscoso. Sopa primordial. Largados pelo chão e junto aos terminais de computador, permaneceram apenas seus trajes e objetos pessoais. Vazios.

         Conforme os últimos humanos passavam pelo processo, perdendo suas formas físicas, vultos avermelhados atravessaram o ar na direção do gigante de braços abertos. Suas almas. Elas passaram a se aglomerar numa resplandecente esfera, também rubra, flutuando entre as mãos estendidas de Behemoth. Compondo uma nova forma de vida. Uma nova realidade.

Imensas cruzes de luz, brotando do solo como raios invertidos, passaram a ser irradiadas da área a partir de Chernobyl, propagando-se pelos arredores num padrão circular. De onde subiam, tingiam a terra de escarlate, num tom tão forte quanto sangue.

         Gritos quase mudos fizeram-se ouvir conforme a onda se propagava a partir da usina, varrendo a madrugada. Devido à intensidade da expansão, um dos reatores nucleares, situado acima da Central COVENANT, explodiu. Os operários do local, surpreendidos, só tiveram tempo de vislumbrar amadas, filhos ou pais perdidos antes de se converterem em poças aquosas. O fenômeno logo atingiu a cidade próxima de Pripyat. Crianças evaporaram em suas camas, seus pais também se transformando em líquido ao contemplarem a si mesmos em seus tranqüilos sonhos. Nas ruas, os poucos moradores acordados estouraram em sopa dentro de carros, sentados em bancos. No alto de uma vistosa roda-gigante, um casal de namorados sumiu bem no momento em que trocava um beijo apaixonado...

         A cobertura vermelha aumentava... Pintava plantações inteiras de fazendas, fazendo desaparecer vastos rebanhos de animais. Nos rios, peixes e outras criaturas aquáticas dissolveram-se num piscar de olhos. Cruzando a fronteira da Bielorússia, as cruzes continuavam a se erigir luminosas, esvaziando vilarejos inteiros, transeuntes nas estradas... uma multidão de almas flutuando rumo à origem do evento. Rumo ao subsolo de Chernobyl.

         Nisso, Behemoth se expandira. Tornando-se ainda maior e cada vez mais gracioso, assumiu uma forma etérea de pura luz, crescendo para além do teto da caverna e atravessando-o como se não fosse sólido. Brotou do solo acima da estrutura da usina nuclear, um gigante resplandecente na noite. E, com os braços ainda esticados, conforme mais almas convergiam para a esfera junto a si... duas imensas e lindas asas brotaram de suas costas, estendendo-se em direção aos céus.

*  *  *

O soldado abria fogo como podia. Já gastara um pente inteiro da pistola contra o Anjo, sem que nenhuma das balas o houvesse sequer arranhado. A cada disparo, uma barreira semi-invisível continha o projétil, como se paredes luminosas se erguessem em torno da garota, piscando e desaparecendo. Que poderia ser aquilo? A entidade finalmente mostrava sua verdadeira forma?

         Por fim, impotente, acabou vendo a inimiga brilhar, seu corpo por um segundo explodindo em luz... o suficiente para que os olhos do jovem queimassem nas órbitas, ele caindo sentado aos berros enquanto o poderoso ser avançava despreocupado.

         - Eu estava perdendo minha identidade... – Mary Morgan falava sozinha conforme seguia pelos corredores da base. – Não sabia mais quem era... Mas me lembrei. Reencontrei-me.

         Um grupo de guardas, munidos de pesadas metralhadoras, tentou encurralar a fugitiva junto ao elevador que levava à superfície. À ordem do oficial superior, atiraram todos ao mesmo tempo contra a adolescente, as armas cuspindo fogo capaz de retalhar cem homens. Mas, ao se chocarem com o estranho campo dourado resguardando o Anjo, as balas ricochetearam, causando tumulto no lugar enquanto várias atingiam os próprios agressores, mutilando seus corpos entre jatos de sangue.

         - Abram caminho, lilim!

         Sem pressionar qualquer botão, Metatron fez as portas do transporte se abrirem. Embarcou no elevador, deixando para trás vigias agonizantes entre gemidos. O Anjo passou a flutuar no centro da máquina e, usando sua própria força, fez com que subisse pelo fosso para fora do subsolo.

*  *  *

         - YUI!

         Daichi corria o máximo que podia, mas infelizmente suas pernas não eram tão rápidas como gostaria. A filha passou a encarar, imóvel, o gigante branco que brotava da abertura da escavação. A grande mão que há pouco pairara sobre a menina agarrou uma das bordas do buraco, enquanto o outro braço surgia para apoiar o corpo da colossal criatura junto à beirada. Tentava sair. Trabalhadores continuavam se afastando aos berros, vários perdendo os sentidos.

         A criança, ao invés de seguir o exemplo e também se distanciar, permaneceu fitando o rosto sem feições do titã, como que hipnotizada... atraída por ele.

         - Yui, saia daí!

*  *  *

O computador de Stewart emitia apitos intensos. Na tela, dados numéricos se enfileiravam num frenesi cabalístico. O aparelho aparentava até estar a ponto de explodir, dado seu estado.

         - Senhor Lorenz, é hora de iniciar o plano de contenção. Caso não detivermos a onda agora, ela consumirá boa parte da Europa.

         Instantes se passaram, e Keel não respondeu. Voltando-se para trás, o cientista deparou-se com o alemão sentado sem mover um músculo, fones nos ouvidos, envolvido pela Nona Sinfonia e a imensidão vermelha agora exibida pelos monitores no painel.

         - Senhor Lorenz? – insistiu o comandado, uma gota de suor lhe escorrendo pela face.

         O acólito finalmente replicou:

         - Sim?

         - Devemos ordenar a Arcanjo-1 que dispare, antes que o piloto entre na área de irradiação. Só temos mais alguns segundos, ou será tarde demais. Nada deterá o processo!

         Ainda assim, Lorenz hesitou antes de ordenar:

         - Disparar instrumento de contenção.

         - Sim senhor!

         Com alívio, o doutor retransmitiu a instrução.

Um caça MiG-29 soviético cortava o céu estrelado do Leste Europeu. Além das armas convencionais como mísseis e metralhadoras, a aeronave a jato trazia, acoplada embaixo de si, uma estrutura contendo estranho artefato... tratava-se de uma lança vermelha fina, de somente dois metros de comprimento. Vista à distância, parecia apenas uma mísera agulha rubra.

         Arcanjo-1, lançar! – a ordem foi transmitida em russo pelo rádio na cabine.

         O piloto obedeceu, disparando o objeto e realizando uma manobra de recuo com o avião em seguida.

*  *  *

Behemoth, agora um anjo luminoso e belo, erguia-se para o firmamento, já podendo ser avistado a muitos quilômetros de distância. A esfera vermelha com as almas colhidas por seu esplendor aumentava, somando milhares. Agitava-se entre pequenas erupções, indicando movimento. Mudança.

         Até que algo brilhou também escarlate no céu, como uma estrela cadente... aproximando-se numa velocidade descomunal. Supersônica.

         A sublime criatura não demonstrou reação quando uma longa lança rubra, que se estendera em comprimento durante o vôo, perfurou-lhe em cheio o pescoço como um dardo, atravessando-o.

         O grande ser divino estremeceu. Seu organismo resplandecente emitiu espasmos, enquanto o fluxo de almas pelo ar subitamente se interrompia. As cruzes luminosas desceram de volta ao solo, o tapete vermelho sobre os campos dissipando-se como poeira ao vento. Behemoth desfaleceu, suas asas se despedaçando e atirando inúmeras penas flamejantes ao alto. Os braços, erguidos numa vã tentativa de se manterem rumo ao céu, desprenderam-se do corpo... assim como os demais membros e a cabeça. O tronco logo também se rompeu, tudo gerando uma infinidade de pontos luminosos que foram levados por uma torrente repentina... convertendo-se em cinzas. Cinzas que se condensaram e caíram, cobrindo as terras da Ucrânia.

         A vermelhidão imperante aos poucos sumiu, dando lugar a um tristonho tom de ferrugem propagado pela brisa da madrugada. Ao redor de Chernobyl, silêncio, a grande lança permanecendo enterrada de pé ao lado da usina enquanto os últimos restos de Behemoth se fragmentavam. A esfera de almas, por sua vez, passou a fluir como um rio para as entranhas do solo, escorrendo até os destroços da Central COVENANT... e nela se aglomerando num pequeno lago rubro. A milhas dali, ainda silêncio. Pripyat, entre outras tantas cidades e vilas... agora sem vida. Fantasmas. Pelas ruas, casas e lojas, somente roupas vazias e pertences abandonados. Pessoas que haviam deixado de existir naquele plano.

*  *  *

Ikari finalmente alcançou a filha... jogando-se sobre ela para tirá-la do caminho do cotovelo do gigante, que varreu a borda do abismo onde até então a menina se mantivera. Em seguida, a criatura simplesmente desfaleceu... como se o mesmo violento impulso de vida que a dominara a houvesse abandonado de forma igualmente repentina. Os braços dela fraquejaram, a cabeça pendeu acima do pescoço... e o tórax do monstro caiu de peito sobre uma das beiradas do buraco, esmagando máquinas, guindastes e tendas. Por sorte, nenhum operário.

         - Acho que o gigante queria brincar, papai! – afirmou a inocente Yui, apontando para o ser. – Mas se cansou...

         Daichi, ouvindo aquilo, pôs-se a rir... Nervosamente, mas a rir.

*  *  *

As portas do elevador se abriram aos fundos do hangar na superfície... várias fileiras de combatentes aguardando do lado de fora com metralhadoras, fuzis e lança-granadas para reagir à iminente chegada de Metatron...

         Mas se surpreenderam. Viram sim, dentro do transporte, o Anjo no corpo da garota Mary Morgan... mas desmaiado, deitado com os braços abertos no meio da estrutura como se tivesse do nada pegado no sono.

         - Mas o quê? – um dos guardas exclamou, incrédulo.

         Detiveram-se por alguns instantes, porém logo avançaram para examinar a fugitiva.

         Não tinha pulso.

*  *  *

O helicóptero de identificação soviética atravessou o céu a caminho da usina, sobrevoando a Pripyat agora deserta. O céu noturno começava a clarear, anunciando o início do dia com os primeiros raios solares subindo a leste.

         A aeronave logo se deteve sobre as instalações, fumaça subindo de sua seção central devido à destruição de um dos reatores. A instabilidade molecular gerada pelo despertar de Behemoth já passara, mas a radiação representava novo risco. Pousaram no pátio interno de Chernobyl, pelo qual voavam uniformes e capacetes vazios de trabalhadores, os recém-chegados deixando o transporte com vestes completas de proteção lhes cobrindo os corpos. Entre eles estavam Keel Lorenz, em sua cadeira, e o doutor Stewart.

         O grupo avançou como astronautas de amarelo num mundo inóspito – presente, porém, na própria Terra. O antigo fosso secreto do elevador que conduzia à Central COVENANT não passava agora de mero buraco no chão, semi-soterrado por tubulações caídas e tendo a fiação solta cuspindo faíscas. Por suas bordas ainda corriam fios de líquido vermelho, despencando pela abertura em finas cachoeiras e indo se acumular no lago pouco a pouco preenchido entre as rochas emaranhadas do que havia restado das antigas plataformas de pesquisa. Uma sopa rubra e viscosa, formada pelas almas coletadas durante a experiência.

         Fazendo um sinal, Lorenz ordenou que os acompanhantes o aguardassem perto do helicóptero, permitindo apenas que Stewart, seu cientista de confiança, continuasse a segui-lo. Moveram-se até o furo no solo, detendo-se à sua beirada enquanto testemunhavam o interior desordenado da caverna lá embaixo, ouvindo o leve escorrer de líquido para dentro. Foi quando Keel murmurou:

         - Tudo como prevíamos... De maneira exata.

         Uniu as mãos sobre as pernas ao completar:

         - Ao criarmos a nova forma de vida, todas as anteriores se tornaram automaticamente imperfeitas. Enquanto os filhos de Adão só possuem o Fruto da Vida, e os de Lilith o Fruto do Conhecimento, Behemoth teve ambos. Ele se igualou a Deus, à origem da Criação... o que iniciou uma reação em cadeia que passou a extinguir todos os seres presentes no planeta, dotados somente de uma metade. Como suspeitávamos. Quando o Terceiro Segredo for revelado e cumprido... a vida como a conhecemos deixará de existir para dar lugar à Instrumentalidade. Todas as almas serão reunidas em apenas uma, retornando à Câmara de Guf. O que tivemos hoje aqui foi uma prévia. Geramos uma Câmara imperfeita.

         “Câmara de Guf”. O termo vinha do judaísmo, referindo-se ao suposto “saguão das almas”, de onde todas partiam para encarnar em suas representações materiais quando os humanos nasciam. Remoendo a analogia, Stewart encarava o lago escarlate de modo um tanto consternado, quando indagou:

         - E o que vamos fazer com aquelas almas? Elas não poderão retornar às suas formas físicas originais...

         - Não se entristeça, doutor. Estão mais felizes, pode ter certeza disso. A essência desses humanos, naquela sopa, jamais conhecerá algo diferente da felicidade. São apenas um só ser. As tristezas que antes tinham serão suplantadas pelas alegrias uns dos outros. Deveriam nos agradecer por serem os primeiros a desfrutar de tal dádiva.

         - Mas, eu quero dizer... vamos deixar esse líquido aí?

         - Não, de modo algum. Quero que tragam uma cápsula para que seja armazenado. Nós o utilizaremos na próxima fase do projeto. Essas almas, unidas, compõem uma forma de consciência. Um espírito que agora poderemos inserir em qualquer constructo orgânico.

         Os olhos do pesquisador brilharam. Começava a entender o que o comandante queria dizer... Em seguida, calado, ouviu-o falar:

         - Também verificamos a real natureza da Lança de Longinus. Ela é um ser vivo por si só, autônomo e mutável, porém de origem diferente dos Anjos ou de nós. Um dispositivo criado pelos Nephilim especialmente para controlar as Sementes da Vida, como Adão e Lilith. Conter o despertar desses seres e o surgimento de algo semelhante a Deus, da mesma forma como a utilizamos para destruir Behemoth.

         Stewart piscou antes de dizer:

         - Não compreendo. De acordo com a lógica, a lança deveria paralisar um ser como Behemoth, colocando-o em hibernação, ao invés de destruí-lo... Da mesma maneira como é possível presumir que Adão, esteja onde estiver, tenha sido adormecido por um mecanismo idêntico, quando Lilith chegou ao mundo...

         - A razão é simples, meu caro: não estamos ainda usando o barro certo. A idéia de um organismo como Behemoth seria a de um humano com a mesma capacidade dos Anjos de desenvolver sua estrutura corporal como bem entendesse, porém não conseguiremos isso com perfeição usando apenas o DNA de Lilith. Esse é o motivo do espécime ter se tornado tão instável. Temos de criar algo empregando o código genético de um próprio Anjo...

         Focando mais uma vez sua audição na grande poça vermelha no subsolo, iluminada gradativamente pelo nascer do sol, concluiu:

         - Nós já temos o sopro da vida, Stewart... Só nos resta agora arrancar uma costela de Adão.


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