The Dawn of Evangelion escrita por Goldfield


Capítulo 13
Ester




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Ester

Roma, Itália, 1981

Ela fitou a fachada da antiga construção. As opacas janelas de seus quatro andares conseguiam intimidá-la, como se escondessem atrás de si grandes segredos do passado – pessoas sendo capazes de matar para ter deles um mero vislumbre. Quando pensara pela primeira vez em se envolver com aquele grupo, jamais imaginara que teria contato direto com alguns deles. Isso a estarrecia, não podia negar; mas já que seus inimigos eram poderosos... convinha munir-se de aliados no mesmo patamar, ainda que ao custo de conhecer algumas verdades incômodas. E, para terem conservado sua posição praticamente intacta por quase dois mil anos, eles realmente eram competentes.

         Um homem de batina negra e crucifixo ao pescoço surgiu caminhando pela calçada, expressão distraída, como se nada quisesse. A mulher o observou se aproximar pelo canto do olho, mantendo-se ainda voltada para o prédio e fingindo não notá-lo. Ao chegar perto o bastante, o suposto religioso cochichou para ela, de modo tão baixo e rápido que um breve lapso de atenção faria com que a mensagem passasse despercebida:

         - Pode entrar.

         Afastou-se em seguida, andando tão naturalmente quanto antes.

         Vencendo seus temores internos, a personagem empurrou uma das seções da grande porta de madeira no centro da fachada. Abriu-se rangendo, um cheiro mofado característico de lugares que permaneciam a maior parte do tempo fechados atingindo suas narinas. Hesitou. Deveria mesmo? Bem, já avançara até ali... por que recuar?

         Foi assim que ela adentrou a sede da Congregatio pro Doctrina Fidei, ou “Congregação para a Doutrina da Fé”. A mesma organização conhecida, até poucos séculos antes, como “Santa Inquisição”.

         Os corredores e salas da construção encontravam-se aparentemente vazios, tudo imerso no mais profundo silêncio. Incomodada pelo aspecto abandonado do local, a recém-chegada sentiu-se espionada pelas imagens de santos junto às paredes, o que lhe causou certo mal-estar. Mas, se pessoas reais não a haviam impedido até ali, não seriam estátuas inanimadas que o fariam. Seguindo as instruções recebidas previamente via carta, tomou uma velha escada de ferro e madeira até um dos andares superiores. Percorreu mais espaços vazios, a luz do sol entrando lobregamente pelas poucas janelas abertas – bem menos ameaçadoras vistas daquele lado – e por fim deteve-se diante de uma porta encostada, o emblema nela talhado representando o símbolo do Vaticano com suas duas chaves entrecruzadas embaixo da coroa papal.

         - Entre – uma voz rouca, dotada de um sotaque que lhe pareceu familiar, convidou-a de dentro do recinto.

         Ela assim o fez.

         O escritório aparentava ser o ambiente mais iluminado de todo o prédio – os raios matinais, que invadiam apenas timidamente os outros cômodos, ali se propagando em toda sua glória, clareando as cortinas vermelhas que ladeavam as janelas. Nos cantos, estantes de livros ricas em volumes tratando de doutrina cristã, mais precisamente católica. O assoalho revestido por tapetes com motivos religiosos levava a uma mesa central, antiga e conservada, de costas para um grande quadro na parede representando Cristo recém-ressuscitado. Sobre o móvel, um crucifixo de madeira e gesso, mais alguns exemplares de obras doutrinais e um envelope lacrado com um selo vermelho, a insígnia da Igreja – já vista na porta – presente nele em alto-relevo. Atrás da mesma mesa, sobre uma cadeira almofadada, a mulher viu sentado um homem de cabelos semi-grisalhos, batina branca e vinho, óculos ao rosto e tendo no topo da cabeça o pequeno chapéu redondo conhecido como zucchetto, também em tom roxo. A vestimenta indicava sua posição clerical, mas a visitante já a conhecia previamente: cardeal Johannes Reiniger, prefeito da Congregação.

         - Sente-se, senhorita – o religioso indicou um dos assentos vagos em frente à mesa. – E, por favor, feche a porta.

         A mulher obedeceu, cerrando a entrada e prendendo suas quatro trancas para se certificar de que não seriam incomodados. Logo depois se acomodou diante do sacerdote, um tanto quanto sem jeito. Após tudo que vivera naqueles últimos anos, intimidar-se por um senhor como ele parecia um absurdo. Seria o poder que o cargo detinha?

         - Nós ouvimos falar da senhorita, e não pouco... – prosseguiu o cardeal, fitando-a nos olhos. – Embora não aprovemos seus métodos.

         Ela abriu um sorriso, sentindo que o gelo se quebrava.

         - Se me permite a colocação, senhor, sua organização, ao longo do tempo, não tem se mostrado exemplo de métodos muito ortodoxos...

         Para surpresa da visitante, o homem também sorriu. Até ele tinha de concordar que queimar pessoas na fogueira não era lá muito sadio.

         - Sempre zelamos pela Fé, pela Santa Madre Igreja e seus fiéis. Durante séculos tivemos de lidar com muitas ameaças para cumprir os desígnios de Deus... E, atualmente, descobri que a senhorita e a cúria têm um inimigo em comum.

         - Vocês já o conhecem melhor que eu, presumo.

         O idoso suspirou, levantando-se da cadeira. Com as mãos cruzadas atrás da cintura, caminhou até uma das janelas, dando as costas para a mulher. Passou a observar a rua e os telhados de Roma, assemelhando-se a uma escultura dourada ao ser banhado pelo sol. Então respondeu:

         - Iniciou suas investigações buscando a verdade sobre o “Majestic-12”, um grupo secreto dentro do governo dos EUA acobertando os eventos ocorridos em Roswell, Novo México, no ano de 1947. Mas o Majestic-12 é na realidade apenas um braço de uma organização muito maior, e muito mais terrível. Ela manipula os governos mundiais há um extenso período, sempre tentando garantir seus interesses e objetivos. Possui o nome de “SEELE”.

         Ela piscou. Já conhecia a denominação desde algum tempo antes, quando iniciara o contato com a Congregação. Mas ouvi-la sempre se mostrava algo aterrador.

         - A SEELE está agora prestes a atingir sua maior meta, que acredita ser a plena revelação da Verdade Divina aos homens – continuou Reiniger. – Está vendo esse envelope sobre a mesa? Pegue-o e abra-o.

         - Do que se trata? – a mulher quis saber antes de agir.

         - Uma carta enviada de Portugal há mais de vinte anos, de uma religiosa que teve contato com a mesma entidade que a SEELE agora mantém sob seu controle. Esse conteúdo até o momento foi mantido sob absoluto sigilo. É o que chamamos de “Terceiro Segredo”.

         Intrigada, e também um pouco amedrontada, a convidada do cardeal apanhou o envelope e rompeu o selo rubro com uma pequena faca que trazia consigo, abrindo-o. Dentro, dobrada, existia a cópia datilografada de um texto. Ela estendeu o papel e leu silenciosamente por alguns minutos – seu semblante assumindo crescente expressão de assombro conforme se aproximava do final. Ao concluir a análise, depositou a carta e seu invólucro de volta à mesa, pálida. Recobrou rapidamente, no entanto, a determinação, tornando a se dirigir ao sacerdote:

         - Então isto é o que a SEELE planeja fazer?

         - Sim, e ela detém os meios para garantir o cumprimento dessa profecia. Só se enganou num ponto: seus associados acreditaram por muito tempo serem os únicos conhecedores dessa revelação. Mas a Igreja também passou a possuí-la ao recebermos esse documento. Talvez o Anjo tenha pensado nisso. Não quis correr o risco de que a Verdade fosse privilégio apenas de um lado...

         - Anjo? – a nipo-alemã ergueu uma sobrancelha.

         - Esqueça... O que importa que eu lhe conte é qual postura a Igreja assumiu ao compartilhar desse segredo.

         Depois de um novo suspiro, o prefeito da Congregação prosseguiu, ainda voltado para a janela:

         - Não possuímos condições materiais para enfrentar a SEELE. O poder temporal que a Igreja tinha em mãos na Idade Média hoje é uma vaga ilusão. Enquanto eles controlam os exércitos americano e soviético, nós praticamente só podemos contar com Deus e a fé dos fiéis... Sendo assim, decidimos tomar uma decisão drástica, antes que a SEELE se utilizasse da profecia para sua própria agenda: depois de diversos concílios secretos, optamos por expor publicamente o Terceiro Segredo.

         A visitante abriu involuntariamente a boca, chocada:

         - Quando foi tomada essa decisão?

         - Há três anos, durante o conclave que elegeu o papa João Paulo I. Descobrindo nossos planos, a SEELE tentou negociar, mas não cedemos: a verdade seria revelada na Missa do Galo do Natal de 1978. Poucos dias após o encontro, porém, o papa morreu enquanto dormia. Assassinado pelos inimigos...

         - Imagino que, mesmo assim, vocês não tenham desistido da idéia...

         - Entenda: é o único recurso que possuímos para desvirtuar os planos da organização. Com a humanidade ciente de seu destino, a SEELE ficaria incapacitada de agir!

         - É irônico ouvir isso de um representante da instituição que por séculos procurou reger o destino dos homens...

         O cardeal voltou a face para a mulher, assumindo uma expressão de incômodo enquanto dizia:

         - Por favor, senhorita Soryu... Não queira se tornar também nossa oponente.

         Minna sorriu de modo cínico enquanto indagava:

         - Quando pretendem revelar o Terceiro Segredo agora?

         - No próximo dia de São Pedro, 29 de junho. O novo papa João Paulo II fará um grande pronunciamento ao mundo cristão tratando desse mistério.

         - Desejo boa sorte a vocês, cardeal... Mas o ponto é: por que fui chamada aqui? O que querem de mim?

         Sem pressa, Johannes retornou à sua cadeira e nela voltou a se sentar. Apoiou os cotovelos na superfície da mesa, unindo as mãos diante do queixo. Então perguntou, depois de alguns instantes:

         - A senhorita acredita em Deus?

         Difícil responder àquilo com tanta coisa em jogo. Esforçando-se para não baixar o olhar, Minna pensou primeiramente na mãe, desaparecida há mais de uma década. Depois em tudo que deixara para trás seguindo aquela vida em busca de esclarecimentos, abandonando o próprio filho e também vendo frustrada uma breve tentativa de estabelecer nova família em seguida... Até que ele invadiu-lhe os pensamentos. E sua lembrança causava tamanha dor, que se apressou em afastá-la da mente, o ímpeto até se manifestando de maneira física ao fechar com força os olhos prestes a lacrimejarem.

         - Tento acreditar... – replicou por fim. – Porém ele não tem sido muito bom comigo...

         As feições do cardeal se encheram de um sentimento que Soryu vinha cada vez mais desconhecendo: ternura.

         - Reforçamos nossa segurança desde a morte do papa anterior, entretanto tememos que a SEELE tente algo novamente. João Paulo II corre igual risco. Analisando seus feitos pelo mundo nesses anos todos, descobrimos que a senhorita tem treinamento militar e boa experiência em combate.        

         Reiniger curvou-se para frente e completou:

         - E se, no plano divino, você estiver destinada a proteger o papa de um eventual ataque? Quem sabe não seja a forma encontrada pelo Todo-Poderoso para se reaproximar de sua filha desgarrada? Além disso... quem sabe que respostas possam ser obtidas caso uma incursão da SEELE seja desbaratada?

         Minna endireitou-se no assento, sentindo-se um tanto desconfortável. Em seguida tornou a encarar o sacerdote, sua visão transferindo-se, pouco depois, para a triunfante representação do Salvador atrás dele...

*  *  *

O som das rodas da cadeira de Keel Lorenz ecoou alto pela sala após ele ter atravessado a porta. Dirigiu-se até o espaço vago à mesa redonda sem saudar nenhum daqueles em torno dela sentados – embora pudesse perceber, pelo ar pesado, que lhe dirigiam fulminantes olhares de reprovação. O recém-chegado inseriu-se de forma devida entre os acólitos e então ouviu o grão-mestre Gottschalk dizer, o primeiro a tomar a palavra depois do repentino silêncio criado pela chegada do filho de Heinrich:

         - Bem-vindo de volta ao conselho. Folgamos em ver que sua prolongada ausência terminou.

         - Não me parece... – o loiro de óculos escuros rebateu sarcástico. – Acredito que os senhores é que queriam ver-me afastado desta mesa. Mas deixemos de lado esses atritos. Queiram inteirar-me do assunto.

         - O Vaticano – afirmou outro dos membros, tom sério. – Eles vão tentar revelar o Terceiro Segredo. Novamente.

         - E o que já estão fazendo a respeito?

         - É consenso que o novo papa deva ser silenciado como o anterior – o grão-mestre explicou. – Se um líder morto não foi o bastante para que a Igreja se retivesse, talvez dois seja a marca ideal.

         - Como estão pensando em orquestrar a operação? – Keel era somente indagações.

         Os anciãos pareceram hesitar por um momento e, mesmo cego, Lorenz em seus pensamentos conseguia visualizá-los se entreolhando nervosos... até que Gottschalk revelou:

         - Planejávamos justamente recorrer a você. Poderia encarregar a divisão soviética da missão, já que os comunistas com certeza teriam mais motivos para ver o papa morto quando a mídia tentar estabelecer uma culpa.

         - Certo. Conheço homens no Serviço Secreto búlgaro fiéis à KGB e competentes nesse tipo de ação. Isso não ligaria o crime direto ao Kremlin. Desejo proceder do mesmo modo que meu pai quando Kennedy foi morto: um bode expiatório no local e alguém realmente de nossa confiança para executar o trabalho.

         - Você não está querendo se referir a... – oscilou um idoso, voz assustada.

         - Quero sim. Ele mesmo.

         O clima ao redor do móvel se tornou ainda mais denso. Dedos tamborilaram sobre a madeira, gargantas pigarrearam. Instantes de desconforto mais tarde, o grão-mestre falou mais uma vez:

         - Se julga ser o procedimento correto, então faça, senhor Lorenz.

*  *  *

Praça de São Pedro, no Vaticano.

         Uma grande quantidade de pessoas aglomerava-se sob o sol, em frente à basílica, aguardando a aparição do papa João Paulo II. Fiéis católicos de todas as partes do mundo e dos mais diversos extratos sociais agitavam bandeiras e bexigas na expectativa de conhecer de perto o homem que, para eles, era o mais santo na Terra.

         Caminhando em meio à turba, Minna ouvia preces e cânticos nas várias línguas que conhecia e outras que julgava conseguir aprender só de permanecer algum tempo ali. A devoção daquele grupo não possuía fronteiras, o que a fez se sentir um pouco insegura – e por que não dizer abalada – por ter se tornado tão descrente nos últimos anos. Será que o cardeal estava certo? Poderia mesmo ser aquela uma oportunidade de redenção para sua vida, peregrinando junto ao rebanho de Deus?

         Peregrinos não andam armados... – ela pensou consigo conforme abria caminho a gentis pedidos de “com licença” em italiano e inglês. A não ser, é claro, que se peregrinasse numa cruzada, como tantas pessoas já haviam feito ao longo dos séculos, chegando a matar em nome de Deus. Era o que aconteceria ali hoje, se o suposto assassino se manifestasse.

         Mas será que a SEELE... também não mata em nome da sua própria visão de Deus?

         A nipo-alemã vestia sobretudo preto abotoado no abdômen, botas nos pés e óculos escuros ao rosto. Ninguém a tomaria por algo diferente que mais uma fiel, bonita e de traços razoavelmente conservados para seus quase quarenta anos. A arma sob o traje, no entanto, pesava mais a cada segundo. Enquanto aquelas boas almas vinham ali ter um contato maior com o sagrado, ela caçava alguém. Não conseguiria descrever em palavras como era uma contradição dolorosa.

         Mas, se a vida a obrigara a aquilo em nome de uma remota possibilidade de encontrar paz...

         Possibilidades. Elas lhe voltaram à mente. A Congregação esperava que os inimigos atacassem o líder da Igreja a qualquer hora, Minna já há dias cumprindo sua função de vigília na praça quando o pontífice fazia suas aparições públicas. O que não conseguia deixar de acreditar era que os cardeais, sem que ele soubesse, estavam usando o próprio alvo como isca. Expondo-o daquela maneira, contavam que o assassino surgisse logo para ser eliminado assim que o fizesse – mesmo colocando a vida de João Paulo em risco. A guardiã não concordava com tais métodos, mas, desde sua reunião com Reiniger, percebera que o Vaticano estava desesperado. Viam-se dispostos a oferecer mais de seu sangue, além das simbólicas batinas e mantos vermelhos, para afastarem as ambições da SEELE.

         Minna finalmente deteve-se na multidão, próxima a uma das divisórias que continham os fiéis e formavam um caminho para a passagem do papa. Se um assassino tentasse algo, teria de ser mais ou menos daquela distância, de um lado ou do outro. Existia, sim, a hipótese de franco-atiradores nos prédios em torno da praça, mas Johannes garantira que a segurança interna do Vaticano cuidaria desses pormenores. A mulher só teria de atentar para ali embaixo, para o povo.

         A parte mais difícil...

         Divagando em meio a tantas palavras de fé e canções religiosas, pôs-se a imaginar como sua vida seria se houvesse tomado outro rumo, sem que decidisse se envolver com assuntos que lhe causavam tanto sofrimento... E se tivesse insistido mais em levar uma rotina normal depois do nascimento do filho e do desaparecimento da mãe? Se tentasse calar suas próprias perguntas, procurando esquecer tudo? Lembrando-se da metáfora bíblica, agora entendia, como ninguém, a razão do Fruto do Conhecimento ter levado à condenação da humanidade e a um afastamento de Deus...

Você é feliz, Minna Zeppelin Soryu?

Súbito, uma agitação entre as pessoas, com gritos de alegria. O papa adentrava a praça a bordo de seu singelo jipe branco, conhecido como “Papamóvel”. Ela estreitou os olhos. Momento propício para uma ação contra o alvo...

João Paulo retribuía sereno ao carinho dos fiéis, esticando-se do alto do veículo para saudá-los e tocá-los – principalmente as crianças. Elas sorriam com a passagem do pontífice, o qual inclusive pegava algumas delas, mais novas, no colo – devolvendo-as aos pais logo em seguida.

Minna sentiu-se inquieta, assim como nos dias anteriores. Se ao menos o papa soubesse... não se expondo tanto. Qualquer olhar estranho na aglomeração a surpreendia, a ponto de quase levar as mãos automaticamente à pistola para sacá-la e disparar contra o suspeito. Mas tinha de se conter. Criar pânico desnecessário apenas atrapalharia, favorecendo o verdadeiro criminoso caso atacasse a pessoa errada...

Foi então que sua espinha gelou.

Tiros ecoaram pela praça, causando comoção geral.

Seus olhos se voltaram instintivamente para o Papamóvel. A poucos metros dali, entre as divisórias, o jipe acelerou, o papa se sentando num dos bancos com uma expressão facial de dor enquanto seguranças de terno preto corriam desesperados acompanhando o veículo. As pessoas gritavam assustadas em volta, embaralhando os sentidos de Minna. A sinfonia caótica foi logo acrescida do choro de crianças, enquanto observava, perto dali, parte da multidão se lançar sobre um homem moreno, aparência árabe, imobilizando-o. O suposto assassino? Caso sim, os próprios fiéis já haviam agido, contendo-o. Trabalho feito. Mas não... fácil demais.

Fitou novamente o transporte do pontífice, que fazia uma curva na esquina do trajeto mais adiante. João Paulo ainda vivia, só não sabia ainda por quanto tempo. Tornou a voltar-se para o homem cercado pelo povo. A posição em que se encontrava, o ângulo que as balas teriam de ter descrito para atingir o alvo daquele ponto, no momento em que ouvira os disparos... Tudo foi analisado por si em poucos segundos, fazendo uso da experiência que possuía.

Não, não poderia ser aquele árabe o atirador. Era um ardil.

No mesmo instante, teve o quase milagroso vislumbre de um homem de vestes escuras se afastando, sem correr, entre a turba. Outros fiéis também se deslocavam para fora dali, amedrontados, mas... por algum motivo, aquele sujeito em particular atraiu a atenção de Minna.

Sem pestanejar, ela saltou por cima da divisória poucos passos à sua frente, atravessando correndo o caminho agora vazio utilizado pelo papa e escalando a cerca seguinte, inserindo-se no lado da multidão onde avistara o suspeito. A cotoveladas e empurrões, abriu caminho entre os presentes, acreditando que seria perdoada pela indelicadeza se conseguisse botar suas mãos no assassino do papa. A distância entre os dois foi diminuindo, Soryu podendo notar que o indivíduo tinha certa dificuldade em mover-se com rapidez, talvez devido à idade – característica denunciada por seus cabelos já quase inteiros grisalhos. O fato de estar de costas e também de usar óculos escuros impedia que sua face fosse identificada. Ele se dirigia ao obelisco no centro da praça, área mais vazia, onde esperava por certo poder se voltar para a perseguidora e reagir. A vantagem seria, então, de quem fosse mais veloz no gatilho...

Ganharam o átrio. O homem venceu os poucos degraus cercando o monumento e então se virou para trás, exatamente como Minna esperava. Munido de uma pistola Browning semi-automática, apontou-a de forma desajeitada para a inimiga... que se jogou rolando no chão, uma das mãos, sincronizada ao movimento das pernas, indo por reflexo até o coldre sob o sobretudo. As duas balas do assassino erraram-na e, quando ela concluiu a cambalhota e pôs-se abaixada, com um dos joelhos apoiados no calçamento, diante do oponente, fez a 9mm silenciada terminar o serviço antes que seu cérebro pudesse pensar em qualquer outra coisa. Os três rápidos disparos atingiram todos o sujeito, que desfaleceu num gemido de agonia e rolou pela pequena escada, tingindo-a de sangue antes de cair com o peito voltado para o céu.

Na queda, os óculos escuros voaram-lhe do rosto...

E ela viu.

O semblante, envelhecido mais de uma década, era o de Takeo Rokubungi. Cicatrizes ásperas marcavam-no quase por completo, como se há algum tempo ele houvesse tido boa parte do corpo consumido pelo fogo, mas era ele. Já velho, e o aspecto maltratado deixava-o mais velho ainda.

Sem ar, Minna encostou o outro joelho ao chão, soltando a arma. Na mente, um turbilhão de imagens e perguntas. Novas perguntas.

O atirador moribundo teve tempo de encará-la com um olhar de descrença, ofegante... antes de reclinar a cabeça e fechar as pálpebras para sempre.

A mulher tremeu e soluçou. Lágrimas passaram a descer por sua tez, enquanto fiéis apavorados afastavam-se do lugar. Ao longe, sirenes ressoaram.

Lembrou-se das palavras do cardeal... e finalmente chegara a uma conclusão...

Deus não existia.

Sem olhar para baixo, ela tateou o solo em busca da pistola caída. Recuperou-a. Encostou então o cano com silenciador à pele sob o queixo.

Ao disparar, a bala atravessou-lhe o crânio, fazendo seu cadáver cair de lado com os cabelos castanhos empapando-se numa crescente poça escarlate...

*  *  *

As portas da Capela Sistina foram abertas de forma brusca. Entraram primeiramente uma série de cardeais, usando branco e vermelho, apressados e visivelmente consternados. Atrás deles, emersos da noite no exterior do santuário, surgiram homens armados, vestindo uniformes negros e apontando aos religiosos fuzis e metralhadoras. Por último, um homem grisalho numa cadeira de rodas e com os olhos cobertos acompanhava o fim da comitiva, uma expressão de triunfo em seu rosto.

         - Isto é um absurdo! – exclamou um dos sacerdotes. – Esse tipo de postura é inadmissível dentro de um território legítimo da Igreja!

         Mas certo era, porém, que o Vaticano não possuía um exército propriamente dito. A Guarda Suíça pouco poderia fazer contra invasores treinados. E o complexo de construções no meio de Roma estava muito menos dotado de baterias antiaéreas para ter evitado que o helicóptero trazendo aquele contingente ali pousasse e partisse mais rápido ainda.

         Suspirando, Keel Lorenz nunca se sentira tão mal por ter perdido a visão. Sempre desejara estar naquele local e poder admirar seus belos afrescos, principalmente “A Criação de Adão”, no teto pintado por Michelangelo, em que Deus e o primeiro homem, esticando seus braços, tentavam se tocar com a ponta dos dedos. Obra de arte lindíssima, cujo aspecto o alemão, infelizmente, só guardaria o observado previamente nas páginas de livros.

         - Acalmem-se, senhores – o acólito da SEELE disse finalmente, enquanto os soldados mantinham os clérigos sob suas miras. – Ninguém sairá desta capela enquanto não conversarmos. Além do mais, não sabemos ainda se o papa João Paulo II sobreviverá. Caso seja necessário um novo conclave, já se encontrarão no lugar certo...

         - Demônio! – outro cardeal insultou-o. – Sua maligna organização não conseguirá vencer a Santa Madre Igreja! Ela por dois mil anos resiste em corpo e alma às agressões de inimigos como você!

         - Acredite, vossa santidade, eu não estou aqui para brigar... – Lorenz replicou paciente.

         - Então por que ordenou o atentado contra o pontífice? Acha que daremos crédito às suas mentiras?

         - Os senhores empregaram medidas desesperadas, então tivemos de reagir na mesma moeda. “Dai a César o que é de César”, não é o que dizem? Mas se não quiséssemos evitar novos atritos entre nossos dois grupos, podem ter certeza de que eu não estaria aqui.

         - Sempre cuidadoso com as palavras, Keel...

         A afirmação viera de um dos sacerdotes, de pé junto a um combatente da SEELE. O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Johannes Reiniger. Sorrindo, Lorenz seguiu em direção à voz movendo sua cadeira, detendo-se a poucos metros do outro alemão. Disse-lhe então, irônico:

         - Nos encontramos novamente, Reiniger.

         Os demais religiosos arregalaram os olhos, surpreendidos por completo. Um deles inquiriu:

         - Vocês se conhecem?

         Antes que o próprio Johannes pudesse esclarecer, Keel adiantou-se:

         - O senhor cardeal é um ex-acólito do conselho da SEELE. Deixou a organização por motivos ideológicos, embora nos primeiros tempos se mostrasse um membro bastante apaixonado...

         - Esses “motivos ideológicos” incluem talvez vocês terem declarado guerra a todos os católicos com seus planos, Lorenz – o clérigo alegou, amargo. – A tentativa de assassinato do papa só é a maior prova disso.

         Embora o cardeal houvesse se justificado, olhares de desconfiança surgiram de boa parte de seus companheiros. Se Keel desejara semear a intriga naquele meio, conseguira.

         - Diga-nos logo qual é sua proposta, Lorenz.

         Uma boa característica da Igreja era que, apesar de sua milenar truculência, ela sempre se mostrava aberta a negociar.

         O visitante limpou a garganta e se manifestou:

         - A SEELE almeja encontrar uma maneira de coexistir em paz com a Igreja Católica.

         - Dada a grande heresia que pretendem realizar, diríamos que isso é impossível – apontou um sacerdote.

         - Meus caros... – Keel bateu as mãos, fazendo as palmas soarem. – Por que heresia? Acredito que todos dentro desta capela tenham conhecimento do que é o Terceiro Segredo. Não é uma criação da SEELE. A Verdade está nos Manuscritos do Mar Morto. São os desígnios de Deus. A Igreja existe para que a Palavra do Criador seja sempre propagada e seguida. Deveríamos ser aliados nessa causa, não inimigos.

         - O que a SEELE propõe fazer é um genocídio de toda a população mundial – rebateu Johannes.

         - E o que é o Apocalipse, cardeal? Não é igualmente um genocídio mundial feito por Deus, do qual se salvariam apenas alguns poucos eleitos? A Igreja por séculos acreditou ter chegado a uma Verdade pelas Escrituras, mas agora deve reconhecer que defende uma versão incompleta da maior das profecias. O verdadeiro Apocalipse é o descrito no Terceiro Segredo. E, ao contrário do que se pensava até o momento, ele não escolherá somente alguns para contemplarem a Deus, mas todos. Ainda que isso represente a morte física de todas as criaturas, é a chave para a união de todas as almas numa só entidade eterna. A criação de um novo Deus.

         - Blasfêmia! – gritou outro cardeal.

         - Os romanos atiravam os primeiros cristãos aos leões com acusações parecidas...

         Seguiram-se instantes de silêncio, rompidos pelo tilintar da cadeira de Keel rodando pela igreja. Ele logo ordenou:

         - A carta, por favor.

         Um dos soldados da SEELE, inexpressivo, retirou um envelope amarelado de um bolso de seu traje. Caminhou alguma distância até o cardeal Reiniger, entregando-lhe o documento. Sem entender, o prefeito da Congregação abriu o invólucro e desdobrou o papel nele contido. Leu o texto calado.

         Minutos depois, sua voz, num tom de descrença, fez-se ouvir:

         - Você afirmou ter vindo aqui promover a paz, não nos insultar ainda mais.

         - Juro não compreender, cardeal – respondeu Lorenz.

         - Este texto... Vocês querem permissão da Igreja para criar vida. Esse é um direito que nem mesmo vossa santidade, o papa, pode conceder. A vida é mistério de Deus e cabe apenas a Ele originá-la.

         - Se quiséssemos tanto insultá-los, já teríamos começado o desenvolvimento desse projeto em nossos laboratórios sem nem nos preocuparmos em consultá-los. Repito: desejamos um acordo. Tanto nós quanto vocês perdemos agentes de confiança naquela praça hoje mais cedo. A Igreja não pode mais estar do lado oposto à SEELE.

         Proferiu a última frase, no entanto, em certo timbre de ameaça...

         Johannes passou a carta aos colegas, para que também a lessem. Fizeram-no em silêncio, soltando todavia exclamações indignadas de quando em quando. Antes que todos concluíssem a tarefa, o que levaria tempo, Keel tornou a falar:

         - A proposta pode causar repulsa, sim, mas é o caminho para que o Terceiro Segredo seja concretizado. Não podem se colocar contra os preceitos divinos.

         - Se ao menos pensassem mesmo na humanidade, Lorenz... – Reiniger resmungou. – Mas vocês do comitê têm em mente apenas a si mesmos!

         - E se déssemos uma prova do contrário?

         O burburinho entre os religiosos cessou momentaneamente, a maioria dos olhares se voltando para o alemão. Um dos sacerdotes indagou:

         - Que prova?

         Em réplica, Lorenz dirigiu-se até Johannes, pedindo que se abaixasse com um gesto... e cochichou algo junto ao seu ouvido, por pouco mais de um minuto. A expressão do cardeal, de revolta, passou aos poucos para uma surpresa compreensão, chegando até a empalidecer. O prefeito por fim tornou a se levantar, endireitando o tronco de forma solene. Resoluto, andou até os companheiros... confidenciando a cada um em voz baixa o que escutara.

         Nova perplexidade e murmúrios dominaram o clero. Mas, agora, de forma bem menos hostil.

         - Acredito que não seja necessária uma votação formal... – afirmou um dos sacerdotes. – O corpo de cardeais é praticamente unânime.

         A face de Keel brilhou, ao mesmo tempo em que Reiniger dava seu parecer:

         - Nesses termos, e visando a Glória de Deus... nós aceitamos.

         Poucos segundos depois, as portas da capela foram mais uma vez abertas, trovejando. Todos subitamente se calaram dentro do santuário, temerosos como se uma autêntica entidade divina houvesse descido dos céus para se fazer ali presente, enquanto uma freira anunciava, parada à entrada:

         - Recebemos um comunicado do hospital. A cirurgia de vossa santidade foi um sucesso. Ele não corre mais risco de morte.

         Os religiosos agradeceram a Deus, unindo as mãos e rezando. Alguns até se abraçaram. Johannes tornou a contemplar Keel Lorenz. A expressão de vitória com que ele entrara naquela igreja agora se alargava.

         - Talvez Deus esteja mesmo do seu lado também, meu caro... – murmurou o cardeal antes de se afastar.

Ao término daquela noite, os enviados da SEELE partiram no mesmo helicóptero que os trouxera. A bordo da aeronave, um dos soldados de preto, sentado diante de Lorenz, retirou a máscara que lhe ocultava as feições... revelando se tratar do doutor Stewart, da divisão americana.

         - Soube conduzir muito bem a situação, senhor – ele elogiou-o.

         - Obrigado...

         Keel, porém, parecia pensativo – até mesmo incomodado – em relação a algo. Depois de por um momento admirar a Cidade Eterna iluminada através de uma janela, o cientista não se conteve e perguntou:

         - Algo errado?

         - Apenas a teia da vida nos pregando peças... – o alemão replicou sorrindo. – A agente da Igreja que se suicidou hoje na Praça de São Pedro, após dar cabo do velho Rokubungi... Era a filha da doutora Lianna Soryu. Ao que tudo indica, havia se aliado ao Vaticano para tentar nos derrubar.

         - Fantasmas do passado, então...

         - Sim, meros fantasmas.

         Curvando-se para frente, o filho de Heinrich Lorenz acrescentou:

         - Após termos conseguido tanto, será preciso mais que fantasmas para sermos um dia derrubados, doutor.

         E, assentindo, Stewart viu o semblante cego de Keel voltar a recuar para as sombras...


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