O Filho dos Mares escrita por Lieh


Capítulo 6
Perdidos - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Olá honeys! Capítulo quentinho saindo do forno agora hehe. Eu resolvi dividir esse capítulo V porque se não iria ficar muito extenso e cansativo.
Comentem!



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De algum lugar da minha mente eu sabia que eu estava acordada. Bem lá no fundo eu senti o meu lapso de consciência crescendo como uma enorme bolha, fazendo-me sentir todos os membros do meu corpo, ainda inteiros.

Ainda viva.

Esse pequeno lapso tomou conta de mim. Abri os olhos, estes doloridos, fechando-os rapidamente. Uma luz forte invadiu meu rosto, transpassando por toda a minha pele.

Suspirei um gemido de dor. Movimentei um milímetro do meu corpo, me arrependendo depois.

Tudo em mim doía. Desde os meus ombros, apoiados em algo macio e fofo, até os meus pés. Forcei novamente a vista, dando de cara novamente com a luz forte no meu rosto. Gemi, em lamúria pela situação desconfortável.

– Fique quieta, assim você só vai sentir mais dor. – Uma voz sussurrou perto do meu ouvido, enquanto enfiava alguma coisa goela abaixo em mim. A pessoa que fazia isso queria ser delicada, mas não estava tendo sucesso. Voltei o olhar para onde eu havia ouvido a voz.

– Clarisse? – resmunguei. Minha voz saiu áspera, o que foi um esforço doloroso.

– Fica quieta, Princesa. Você está pior do que eu ou Grover. – Com isso ela enfiou novamente uma espécie de colher na minha boca. Era algo doce, próximo aos doces de leite que eu sempre gostei desde criança. Néctar.

De alguma forma, Clarisse achou o pote de Néctar na minha mochila e estava me alimentando para recuperar as forças.

Totalmente desperta, olhei em volta. Uma brisa quente e suave me consumiu, ligada ao barulho de ondas se quebrando na praia. A areia estava quente, mas era fofa e limpa. O sol estava a pino fazendo-me suar.

Minha cabeça doeu com o meu movimento brusco de levantar. Acabei por deitar novamente na areia.

Eu não me recordava de muitas coisas da noite passada e da desastrosa fuga do “Karaboudjan”. Nem me lembrava de como eu havia parado ali. O lugar onde nós estávamos era uma espécie de ilha, onde uma mata densa se abria logo atrás de nós, cheia de árvores e folhas bem verdes, e ao longe os cumes rochosos que eu havia visto na noite anterior. Claro, tudo isso percebi só naqueles instantes em que eu me levantei, deitando-me novamente, gemendo de dor.

Eu me sentia pesada, meus ossos pareciam ter sido feitos de chumbo. Se você já ficou numa piscina por tempo demais saindo logo em seguida, é a mesma sensação; seus pés não se apoiam direito no chão, enquanto o seu peso não é adequado. Só que é duas vezes pior, porque não era de uma piscina cheia de cloro que eu havia sobrevivido de uma queda que teria me matado, mas sim de um oceano Atlântico cheio de sal e pressão.

Eu, Clarisse e Grover (mesmo eu ainda em eu não ter o visto), estávamos quase sãos e salvos naquela ilha, longe daquele maldito navio de contrabando. De uma forma ou de outra, Poseidon havia atendido minhas preces.

– Acho que já está bom de Néctar – Clarisse declarou – Se não vai acabar muito rápido...

Ela olhava para mim me analisando com a testa franzida, talvez cogitando se eu realmente estava sã.

– Eu já estou bem Clarisse – falei para ela, minha voz na verdade um murmúrio – Só estou muito cansada. Como viemos parar aqui?

– Sei lá. Eu só me lembro de ter acordado aqui, com o cara de jumento saltitando feito um antílope e fazendo aquele barulho engraçado, parecendo uma cabra... – Ela ia continuar falando todas aquelas qualidades se eu não a tivesse interrompido.

– Grover? Cadê ele?

Levantei-me fazendo um esforço heroico. Clarisse viu que eu não ia conseguir ficar sentada, então ela me ajudou puxando meu braço quase delicadamente.

Olhei em volta procurando o meu amigo sátiro, porém eu não o vi em lugar nenhum.

– O cara de bode se embrenhou na floresta tocando aquela flauta dele. Sério, ele tem que aprender umas músicas novas, ninguém merece Hillary Duff. – Mesmo na minha situação deplorável eu tive que rir e concordar com ela.

Não demorou muito para o som de uma flauta se aproximar de nós, até que Grover apareceu logo atrás de mim, totalmente à vontade. Estava sem tênis e sem o boné rastafári, muito contente com alguma coisa que eu não tinha percebido.

– Ei Grover – chamei – Que felicidade toda é essa?

Ele parou de tocar e se aproximou, a contragosto de Clarisse que se soltou um muxoxo.

– Natureza, ar puro e sol! Tem coisa melhor do isso, Annabeth? Esse lugar é um paraíso, tenho certeza que é um presente de Pã! – Ele baliu contente, batendo os cascos como se estivesse dançando uma música que só ele ouvia. Eu dei um sorriso para ele, assentindo. Pelo menos um de nós estava contente e conseguia tirar de algo de bom daquela situação.

Para mim e com certeza para Clarisse, aquela ilha era uma prisão assim como o “Karaboudjan”, pois não tínhamos meios de ir embora.

Nem meios, nem rotas, nenhuma pista, nada. Estávamos na estaca zero, sem nenhuma ideia de onde estava o “Queen Anne’s Revenge”.

Perfeito. Minha liderança naquela missão estava sendo uma verdadeira piada. Talvez o senhor D tivesse razão, eu não era apta para fazer aquilo.

Naquele momento eu estava desejando que Poseidon tivesse me deixado morrer afogada. Clarisse e Grover sozinhos iriam se sair melhor do que eu e meus planos idiotas.

Virei para a filha de Ares que olhava para as ondas se chocando com as areias, ora revirando os olhos para Grover que continuava com sua dança bizarra já longe.

– Eu sou um fracasso – confessei – Está tudo indo de mal a pior.

Clarisse não respondeu de imediato. Apenas passado alguns minutos depois foi que ela falou:

– Não seja dura consigo mesma, Annabeth. Logo as coisas vão melhorar... – Ela continuava a não olhar para mim, com a expressão séria. Percebi que ela havia me chamado pelo meu nome inteiro, e quando isso acontecia significava que Clarisse estava falando sério comigo.

Ainda sim não fiquei consolada. Deitei novamente na areia, fechando os olhos. Estava muito quente e desconfortável para dormir, a areia já estava pinicando minha pele. Coloquei o braço em volta dos olhos para afastar o brilho constante do sol. Suspirei preguiçosamente. Clarisse percebeu que eu não queria conversar, pois logo ela se levantou batendo a areia da calça e caminhando com o pote de Néctar para longe mim.

Quando senti que estava sozinha, deixei as lágrimas teimosas escorrerem dos meus olhos, molhando o meu braço.

Chorei como há muito tempo não fazia.

Chorei de frustração, de raiva, de medo, de tristeza...


Devo ter adormecido numa posição nada confortável, porque quando eu abri os olhos, o sol já estava se escondendo no horizonte, enquanto um vento bem furioso agitava as ondas do mar.

Já estava bem melhor do que quando eu havia acordado, mas ainda sim a sensação de culpa e remorso me consumia.

Sentada na areia, fitei as ondas e o horizonte. Nem Clarisse e nem Grover estavam a vista, o que não preocupou. Eles podiam se cuidar muito bem. Eu não era a babá deles.

Suspirei tristemente. Eu estava fazendo uma tempestade em copo d’água, eu sei. Porém, veja o meu lado: eu sempre fui uma fracassada. Eu nunca soube lhe dar com os problemas que surgiam a minha frente. Quando a situação apertava e não tinha mais jeito, eu com toda a minha inteligência o que fazia?

Fugia.

Eu sabia de onde esses pensamentos estavam surgindo, inconscientemente.

Meu pai e Luke.

Meu relacionamento com o meu pai nunca foi um mar de rosas, desde que os primeiros monstros começaram a invadir nossas casa e assustar os meus irmãos e minha madrasta. Hoje eu não sei dizer se ele gosta de mim ou se já gostou, mas minha madrasta nunca foi com a minha cara por colocar seus adorados filhos em perigo. Meu pai é um bobão e facilmente dominado por ela, por isso que ele não me defendia das injustas acusações que ela fazia contra mim, dizendo que eu era perigosa e uma aberração.

Sim, aberração, tão perigosa quanto os monstros que me perseguiam.

E meu brilhante pai a quem Atena se apaixonou o que fazia?

Nada. Isso mesmo, NADA para defender a sua própria filha!

Esses eram um daqueles meus pensamentos sombrios que eu guardava no fundo da minha mente, onde ficava os meus piores FPCs e lembranças.

Eu não queria lembrar-se da última vez que eu havia o visto, porque a raiva me consumia, juntamente com uma decepção horrível.

Contudo, como eu adoro me auto martirizar, principalmente quando eu já estava de mal a pior, a lembrança veio, fluída e limpa como água jorrando na minha mente.

Subi as escadas, com medo de fazer barulho por causa do ranger delas. Eu olhava para o lado constantemente para me certificar que nenhum dos pirralhinhos dos meus irmãos viesse até mim com o nariz escorrendo (detalhe: lambendo o catarro!), perguntando o que a Annabeth Insuportável estava fazendo/indo.

Eu sabia que o meu pai e minha madrasta estavam no quarto, discutindo sobre mim. Era óbvio que desde o ataque daquele javali gigante, enorme, feio e peludo, que quase matou Bobby e a mim, minha madrasta não estava satisfeita. Eu não sei explicar, mas eu havia conseguido arrancar um dos chifres do javali (javali tem chifre?), deixando o bicho fraco e com medo de mim. Depois ele simplesmente desapareceu.

Pof! Como mágica!

Fiquei orgulhosa de mim mesma por alguns instantes, porque vamos ser francos: quantas crianças de sete anos fazem um javali gigante desaparecer? Hein?

Então. Nenhuma criança normal faz isso. O problema era que eu saiba que havia coisas estranhas acontecendo comigo. Coisas suspeitas... Coisas feias... Coisas assustadoras...

A minha felicidade não durou muito. Se bem que se eu fosse normal eu deveria ter ficado com medo. Mas não, eu estava satisfeita e orgulhosa. No entanto minha madrasta e meu pai não estavam.

Nem de longe.

Eu pensei que minha madrasta iria desmaiar a qualquer momento de tão chocada que ela ficou quando me encontrou junto com o Bobby, largados na grama do jardim, sujos e fedidos, enquanto meu pobre irmão estava inconsciente.

Ela não se importou em saber se eu estava bem ou o que havia nos atacado. Ela simplesmente pegou Bobby desmaiado no colo e sem olhar para mim, o levou para dentro de casa. Eu tentei falar, eu tentei explicar que não era a minha culpa se aquilo bicho feioso havia atacado nós dois. Porém, ela não deu tempo.

Olhei para trás na soleira da porta, encontrando meu pai, ora olhando para mim ora olhando para minha madrasta.

O olhar do meu pai para mim era... Eu não sei explicar em palavras. Talvez reprovação? Preocupação? Tristeza? Não sei. Para minha madrasta era quase um pedido de desculpas que ela também não se deu o trabalho de olhar.

Ela passou por meu pai e entrou em casa. Ele a seguiu, desviando os olhos de mim, também sem se importar se eu estava ferida.

Sozinha, no meio do jardim impecável, fiquei muito triste. Eu teria ficado lá por mais tempo estática se não tivesse começado a chover forte.

Entrei em casa não encontrando ninguém na sala ou na cozinha. Não vi Matthew que normalmente adorava assistir televisão naquele horário. Ninguém.

Então eu estava subindo as escadas, já adentrando o corredor dos quartos, quando ouvi duas vozes conversando de forma ríspida.

Eu sabia, suspirei. Meu pai e minha madrasta estavam discutindo. E muito.

Aproximei-me de fininho tendo a sorte de encontrar a porta entreaberta, onde eu vi meu pai em pé de frente para mim encarando minha madrasta, ainda segurando o Bobby no colo, sentada numa cadeira.

–... O que eu posso fazer, Naomi? Você sabe que Annabeth não tem culpa – meu pai dizia. Ele estava tentando me defender. Sorri.

Eu não conseguia ver o rosto da minha madrasta, mas eu sabia que os olhos puxadinhos dela estavam apertados. Ela fica assim quando está com raiva de alguma coisa.

– Você, Frederick, é um tolo. Você só se preocupa com você mesmo. Enquanto essas coisas não te perturbarem, está tudo bem. Claro, você só vai abrir esses seus malditos olhos quando aquela garota conseguir matar um dos meus filhos! Não me importa se é ela quem faz isso ou não. – Ela soluçou balançando-se de um lado para o outro – Ela está destruindo nossa família. Não consigo dormir direito com medo de alguma coisa aparecer e assustar as crianças!

Meu pai suspirou frustrado, levando os braços ao alto.

– Você não entende Naomi. Ela também é minha filha... – Minha madrasta o cortou bruscamente com um aceno de mão.

– Cansei de ouvir isso, Frederick! A situação está insustentável! Você simplesmente não pode criar essa garota que atrai monstros perto dos meus filhos! E aquele acampamento de verão de que você me falou uma vez? Por que você não a manda para lá? Resolveria todos os nossos problemas!

Ela já estava quase gritando. Eu apertava o nó dos meus dedos com raiva. Não era justo, não quero ir para esse acampamento. Eu quero ficar com o meu pai e os meus irmãos!

Ele olhava aflito para minha madrasta que continuava soluçando, balançando com o Bobby no colo ainda desmaiado, como se ele ainda fosse recém-nascido.

– Eu vou falar com ela, está bem? Vou manda-la para o acampamento para deixar você mais tranquila. – Ele se aproximou tocando no ombro dela, confortando-a.

Minha raiva era tão grande que as minhas mãos doíam, enquanto lágrimas amargas escorriam pelo meu rosto sujo.

Devo ter deixado um soluço alto escapar, porque meu pai me viu. Não dei tempo para ele, simplesmente saí correndo para o meu quarto.

Tranquei a porta, respirando com dificuldade. Pude escutar meu pai me chamando do outro lado. Ignorei.

Peguei uma mochila rasgada, abri o guarda-roupa e fui jogando tudo o que encontrava. Cada vez mais as lágrimas dificultavam minha visão, mas não parei.

Meu pai continuava me chamando, ou melhor, gritando o meu nome. Quando vi que eu já tinha pegado tudo, abri a porta com violência, dando de cara com ele.

Eu pensei que ele estava aflito por mim. Eu pensei que ele estava triste por ter me magoado.

Não. Nada disso. Ele estava com cara de reprovação, aquela cara que os adultos fazem quando os filhos fazem algo feio.

Senti um embrulho no estômago, enquanto minha raiva só aumentava.

– Annabeth, o que está fazendo?

Então eu simplesmente passei por ele. Ele não me impediu quando percebeu que eu não iria ficar para conversar. Ele apenas saiu do meu caminho, pois ele bloqueava a porta.

Desci as escadas lentamente. Entrei na cozinha silenciosa, só com o barulho da chuva açoitando a janela. Abri a geladeira e peguei todos os doces e comidas gostosas, incluindo os doces favoritos dos meus irmãos insuportáveis que só me metiam em problemas!

Enfiei tudo na mochila, indo para a porta. Meu pai estava na escada olhando para mim, porém eu não entendi o que ele queria. Ele não parecia que iria me impedir, mas também não parecia feliz com o que eu ia fazer.

Com um último olhar para ele, cheio de raiva, tristeza e decepção, abri a porta e saí para a tarde chuvosa.

Lá fora, tremendo de frio, com fome e com medo, deixei as minhas lágrimas transbordarem.


Eu estava encolhida, abraçando os meus joelhos, parecendo de novo àquela criança de sete anos perdida no mundo, correndo de monstros. Até que Luke me achou.

E agora eu estava correndo dele! Por que, porque eu não perguntei o que ele tinha? Porque eu não deixei ele vir? Ele deveria ter vindo! Não era justo! Eu o conheço há mais tempo que Clarisse. Ele me ajudou, me ensinou tantas coisas, por que fui tão grossa com ele?!

É claro que ele queria me acompanhar! Essa é a minha primeira missão! Isso mostra que ele se preocupa comigo!

E o que eu fiz? O que a brilhante Annabeth faz?!

Egoísmo é um defeito horrível. E eu havia herdado isso do meu pai. Seu maldito egoísmo não impediu de me deixar partir. Que pai em sã consciência ia deixar sua filha de sete anos, ir EMBORA DE CASA?

Só um pai que não se preocupa e que não ama a filha.

E depois o que eu fiz com o pobre Luke? O mandei para os corvos, se você não percebeu, mesmo que indiretamente. Ele me deixou partir, mas com raiva de mim por não tê-lo incluindo na missão, porque eu sou egoísta demais assim como o meu pai para fazer isso, porque eu simplesmente não...

– Ele se arrepende do que fez.

Pulei com o som de uma voz doce perto de mim. Virei-me dei de cara com uma mulher muito bonita sentada ao meu lado. Ela estava com um delicado vestido de verão, sentada sobre os joelhos com um objeto que parecia uma cesta inacabada feita artesanalmente por fibras de madeira. Os cabelos eram incrivelmente loiros como o meu, caindo até as costas, com uma rosa vermelha pendurada na orelha.

Meu queixo caiu até o chão. Meu coração disparou. Ela... Ela...

– Olá, filha.

Ela sorriu docemente, trabalhando na cesta. Eu como uma garota educada deveria respondê-la. No entanto eu estava atônita demais.

Minha mãe, Atena estava bem ali na minha frente!

Eu nunca havia me encontrado com minha mãe antes, não pessoalmente. O máximo contato que tinha com ela, só era quando ela falava comigo nos meus pensamentos, principalmente quando eu estava preocupada, ou com medo. Ela conversava muito mais comigo na época em que eu estava fugindo de casa.

Era de se esperar que eu também sentisse raiva dela também. Mas não. Ela, mesmo de longe, cuidava e cuida dos seus filhos.

– Seu pai – continuou minha mãe como se estivéssemos conversando há horas – Ele se arrepende e sente sua falta.

Eu não sabia o que dizer. É claro que ela estava ouvindo todos os meus pensamentos...

De súbito eu me assustei: será que ela também ouviu os meus pensamentos pecaminosos com o Percy? Ai deuses!

Ela estreitou os olhos, com certeza entendendo o que eu dizia para mim mesma.

EU QUERO MORRER!

Minha mãe continuava concentrada na cesta, mas pude ver um vestígio de sorriso no canto da boca.

É, o dia fica mais lindo quando sua própria mãe ri dos seus pensamentos idiotas!

Não sei como aconteceu, porém eu estava me sentido muito melhor do que há minutos atrás. Era a presença dela que estava fazendo aquilo. Mas não pude deixar de ficar triste com o que ela disse.

Meu pai, arrependido? Duvido.

– Ele está sim, querida. – Ela sorriu carinhosamente – Mesmo que agora para você seja difícil acreditar.

Suspirei.

– Estou magoada com ele, mãe – sussurrei – Não é um sentimento que se esvai com o passar do tempo. É permanente.

– Isso porque você não o viu mais. – Minha mãe se virou para mim, deixando-me chocada pela semelhança entre nós. Os meus olhos me fitavam.

– Eu o vi e sei do que estou falando. Nunca é tarde para perdoar, Annabeth.

Ela virou-se novamente para a cesta, que agora estava quase pronta. Eu não tinha percebido como era detalhada. Tinha minúsculos desenhos se formando a cada fibra que ligava, como por exemplo, um ramo de oliveira, e uma coruja ganhando voo.

– Bonita, não acha? – disse ela mostrando a cesta.

– É realmente linda – elogiei, ganhando mais um sorriso dela.

Nós duas ficamos alguns minutos em silêncio, eu só observando ela terminar o trabalho.

Em dado momento, ela se virou novamente para mim me encarando com os meus olhos, como se pudesse enxergar até a minha alma. Eu me sentia muito exposta, mas não desconfortável. Não. Eu me sentia completa, inteira, tendo-a tão perto de mim. Ela irradiava tranquilidade e confiança só no olhar. Ela não precisava abraçar para consolar, só o seu olhar fazia.

Eu me sentia assim. Consolada, inteira.

– Não se culpe, Annabeth. Você está exigindo demais de si mesma – Os olhos dela, os meus olhos, cinzas como tempestade, eram calmos, mas ao mesmo tempo convictos do que ela dizia, deixando impossível qualquer dúvida. – Muito em breve você irá descobrir quem é realmente digno de sua amizade.

Eu não conseguia desviar o olhar, ainda sim estremeci sentido o vento mais frio que o normal. Lembrei-me de Luke e nossa conversa na porta do meu chalé.

– Essa missão é muito mais do que salvar um filho de Poseidon – continuou ela. Percebi que ela disse o nome do Senhor do Mar com um tom de deboche – Seus companheiros, cada um deles tem um motivo em particular de estar aqui com você – Ela apontou o queixo logo atrás de mim. Olhei para trás e vi Grover e Clarisse ao longe, parecendo que estavam discutindo, com o sátiro segurando alguma coisa nos braços.

– O sátiro precisa ser bem sucedido para buscar o Senhor da Natureza. A filha de Ares... – Minha mãe parou incerta se deveria contar a mim seja lá o que for sobre Clarisse – Não pode falhar.

Não entendi quis dizer. Como assim, Clarisse não pode falhar?

– Ares não ia ficar contente – respondeu minha mãe, mas ainda sim eu senti que havia mais coisas naquela história – É tudo o que posso dizer. Talvez ela mesma conte a você.

Assenti, compreendendo que ela não iria mais falar sobre Clarisse. O problema era que eu estava me roendo de curiosidade de saber o que minha amiga deveria ter me contado.

– Todos eles – continuou minha mãe – Têm um motivo. E você, Annabeth, vai descobrir o seu motivo, que vão bem além de Perseu Jackson – A última frase ela disse em reprovação. Encolhi-me.

– Então a senhora não está zangada pela minha missão? – Não pude deixar de perguntar, mesmo com medo da resposta.

– Confesso que não gostei de início da sua decisão. Porém, como eu já disse, você vai descobrir muitas coisas e aprender, também. Além do mais – Um sorriso começou a brincar no canto da sua boca – Eu vou poder me gabar por milênios que uma filha minha salvou um filho de Poseidon – Ela piscou de forma marota, voltando-se para a cesta.

Não pude deixar de sorrir. Não era uma coisa que eu imaginava que minha mãe faria, mas em se tratando da rixa dela com Poseidon, eu não deveria duvidar.

Por fim, a cesta ficou pronta. Nós duas admiramos o belo trabalho artesanal.

De repente ela olhou para as ondas furiosas à nossa frente, fazendo uma careta.

– Ele já descobriu que eu estou aqui. Vou deixa-la agora, minha querida.

Um sentimento de perda tomou conta de mim. Eu não queria me separar dela. Não agora.

– Eu vou estar sempre perto de você, Annabeth, mesmo que você não me veja. – Ela passou a mão nos meus cabelos – Eu não posso mais ficar eu desafiei dois deuses só para vir aqui.

Ah, claro. Além de Poseidon que já estava quase querendo engolir minha mãe pelas ondas furiosas, havia Zeus, o Senhor do Céu que não demoraria a descobrir que Atena estava visitando uma de suas filhas.

Os deuses não podem ter contato direto com seus filhos, um decreto por ele consolidado.

Trinquei os dentes. Por mais respeito que eu tivesse a Zeus, estava zangada por ele me privar da companhia de minha mãe.

Ela se levantou, eu a acompanhando com os olhos.

– Pense no que eu disse, querida. Mais uma coisa: há alguém nesta ilha que pode lhe ajudar. E Tortuga deve ser o seu destino no momento.

Ela começou a brilhar, então eu desviei os olhos. Quando olhei novamente, eu estava sozinha de novo.


Andei pela praia procurando os meus amigos. Agora os ventos tinham se acalmado para uma suave brisa e as ondas também entraram num ritmo devagar ao se quebrarem na areia.

Encontrei Grover e Clarisse alguns metros de distância onde eu estava. Já era noite alta. Havia muitos pedaços de madeira no chão, e as mochilas, ao longe, quase secas. Quase deixei um gemido de frustração escapar por pensar nos meus livros molhados.

Apenas Clarisse eu avistei.

– Até que em fim, hein Princesa? Resolveu tirar o dia de folga?

– Desculpe, Clarisse. Eu estava precisando ficar sozinha... – A verdade era que eu estava me sentindo muito culpada por ter largado meus dois amigos para se virarem sozinhos, enquanto eu com meu Complexo de Messias* e egoísmo dormia e chorava como uma criança mimada que não conseguia o que queria.

Quão patética eu sou!

– Ei, não estou zangada com você. Todo mundo precisa pôr a cabeça no lugar às vezes... – Ela voltou-se para a pilha – O bode foi buscar madeira e lenha para fazermos uma fogueira, sabe como é... Já está escuro e essa floresta deve ter animais selvagens. Não que o cara de jumento de importe...

Eu ri da cara de desgosto dela quando falava de Grover. Abaixei-me para ajuda-la a juntar a pilha.

Grover apareceu logo depois carregando um monte de madeira nos braços.

– Ufa! Eu acho que já está bom, né Clarisse? Puxa Annabeth eu já estava ficando preocupado com você – Grover se virou olhando para mim – Está tudo ok?

– Está sim, Grover, não se preocupe – novamente me senti culpada.

– Hum, acho que precisamos de mais madeira... – Clarisse acenou para a enorme pilha a sua frente – A fogueira tem que ser grande e durar a noite inteira. Essas madeiras não vão ser o suficiente.

Grover gemeu em protesto.

– Ah não, você está de brincadeira, né? Bée-é, eu já estou exausto de carregar tanto peso!

– Isso porque você adora a floresta – Minha amiga provocou – Não foi você mesmo que se prontificou a se embrenhar na mata e buscar madeira?

– Tá, mas isso cansa sabia? Eu tenho cara de mula de carga por acaso?

– Só a cara? – Clarisse sorriu diabólica.

Grover deu outro balido de raiva. Resmungando alto sobre abusarem dos sátiros, ele entrou de novo na mata.

Olhei para Clarisse em desaprovação.

– Você sabe tão bem quanto eu que já temos madeira o suficiente para dois dias – cruzei os braços – Você não deveria tratar o coitado do Grover assim, Clarisse!

– Eu sei – ela deu de ombros – Mas ter duas patas de jumento na sua cara não é uma coisa que eu esqueça facilmente, Princesa. Minha vingança será lenta e dolorosa... – Ela sorriu em conspiração. Revirei os olhos. Clarisse era muito infantil.

De repente eu acabei por me lembrar do que a minha mãe tinha dito sobre ela. Olhei-a incerta se deveria tocar no assunto, seja ele qual for.

Eu queria saber, eu não estava conseguindo segurar a minha curiosidade.

– Clarisse? – a chamei suavemente.

– Sim?

– Tem alguma coisa que você deveria me contar?

Ela congelou como acontece naqueles filmes de suspense/terror quando a mocinha (o) se vira para encarar sua morte certa. Clarisse me fitava sombriamente, todo o vestígio de risada por tirar sarro da cara do Grover havia sumido.

– Por que está me perguntando isso? – disse ela secamente.

– Hã, é que bom... – gaguejei nervosa mexendo no meu cabelo – Eu tive um sonho com minha mãe...

Eu não sei por que eu não dizia para ela que eu havia encontrado minha mãe pessoalmente. A verdade era que eu queria guardar aquele momento só para mim.

O olhar de Clarisse dizia para eu continuar.

– É que... Ela me disse que tem alguém nesta ilha que vai nos ajudar e que também temos que ir para Tortuga. – idiota, eu sei. Eu não ia conseguir desconversar, Clarisse era tudo, menos burra.

Ela assentiu numa expressão que dizia claramente: desembucha!

– Ela mencionou Grover e você – eu disse baixinho, me encolhendo – Sobre os motivos de cada um de nós nesta missão.

Por um momento eu pensei que ela iria me estrangular até a morte. No entanto, uma sombra de medo se apoderou dela.

Eu nunca tinha visto Clarisse com medo em toda a minha vida, por isso a minha surpresa. Ela sempre foi durona, nunca recuou em nenhum desafio. Era a primeira vez que eu a via realmente receosa de alguma coisa.

Um silêncio tenso antecedendo as palavras dela se instaurou. Eu estava com medo de ter tocado num assunto que não era da minha conta. Ela ficou de cabeça baixa por uns instantes, depois ela se virou e me fitou.

– Eu venho sonhando... – sussurrou ela – Sonhando com o meu pai. Desde a noite depois da reunião dos chalés.

Assenti, enquanto ela estremecia. É nessas horas que eu agradeço por eu ser filha de Atena, porque vamos ser sinceros aqui: Ares não era o que chamamos de delicado e compreensivo.

– E o que ele diz para você?

Ela trincou os dentes apertando a mão em punhos em cima da coxa. Eu realmente estava sendo uma intrometida sem tamanho.

– Ele fala para eu não falhar...

– Minha mãe também disse isso – instiguei o que só a fez fazer uma carranca bem feia para mim. Alguém controla essa minha maldita boca grande! Não é à toa que dizem: a curiosidade matou o gato.

– Eu não entendo, porque a missão é minha, não sua. Eu não posso falhar, do contrário todos nós falhamos.

Ela franziu a testa, olhando para as mãos apertadas. Em seguida ela me fitou. Era um olhar de súplica.

– Vamos... Deixar isso para depois, Annabeth? Por favor? Não quero falar disso agora.

Era bem óbvia a ansiedade em sua voz, o que só aumentava o meu lado xereta. Porém, antes de qualquer coisa ela era minha amiga, e amigos respeitam a privacidade entre ambos.

Eu sorri solidariamente, fazendo-a soltar a respiração de alívio. Eu sabia, é claro que o assunto não havia se encerrado. Eu preciso saber qual é o real motivo dela naquela missão, e do por que de Ares a estar pressionando, se é que as duas coisas tinha uma ligação.

Grover voltou carregando uma pilha de madeira e algumas frutas, caminhando desengonçadamente até nós, o que só fez eu e Clarisse rirmos dele.

Logo começamos a acender a fogueira, conversando e comendo as frutas que ele tinha trago, a mando de Clarisse, é claro. Ela continuava focada na nossa conversa, pela expressão ainda preocupada, e também por ela nem ter implicado tanto como antes com Grover.

Um cutucão desconfortável no meu peito avisou que eu tinha feito merda.

Outro fator muito importante entre amigos: a sinceridade.

E Clarisse temia ser sincera comigo.


*N/A: Complexo de Messias: Estado psicológico em que a pessoa pensa que pode “salvar o mundo” ou uma situação específica.



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Notas finais do capítulo

Uma observação rápida: Eu sei que o retrato de Atena ficou distante da Atena da série. A verdade é que desde quando eu li alguns trechos da "Odisséia", digamos que eu acabei tendo uma imagem diferente dela. (Não li a epópeia de Homero inteira por causa da linguagem muito rebuscada... Acho que vou ver uma versão mais resumida #cora). Então, eu acabei formando um conceito diferente da Atena fria e distante dos livros do tio Rick.
Você leu? Então deixe um comentário e faça a Annabeth e o Percy felizes! (Se não a Clarisse vai ter dar um banho!)