Changed escrita por Shiroyuki


Capítulo 5
Capítulo 5 - Você quer ver comigo?


Notas iniciais do capítulo

" Eu estou aqui, Utau, você não tem o que temer. "



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— Aqui está! – Souko cantarolou, balançando um papel na frente de Utau, que se esforçava para continuar assistindo ao programa na TV. Fazendo um esforço descomunal, ela se deitou virada para o outro lado, e continuou a assistir sem sua mãe no campo de visão. – Eeeei! Você não vai me dar atenção? – Souko resmungou.

— Certo. Você tem dois minutos – Utau levantou o olhar, assim que os comerciais começaram.

— Tá. Adivinha o que é isso? – ela balançou o papel mais uma vez, para dar ênfase.

— Um papel. Espera! Não! Isso é um corpo estranho alienígena que invadiu a Terra e está dominando a mente das nossas crianças através de hipnose! Sinto muito, seu tempo acabou de acabar.

— Sua boba! Esses aqui são seus novos documentos! A partir de hoje você se chama Souma Utau.

Utau travou, enquanto digeria a informação com cuidado. Isso queria dizer que, graças aquele pedaço de papel, ela era oficialmente irmã de Kukkai?

— Onde está o Kukkai-chan? Eu quero contar para ele também! – Souko balançou o papel mais uma vez.

— Eu não me importo com onde ele está e o que está fazendo! Eu não me importo com nada que tenha a ver com aquele garoto!! Droga, esse programa tá muito chato!!!

Utau, bufando como um dragão que teve seu ouro roubado, saiu batendo os pés, e deixou para trás uma Souko aparvalhada e pensativa. A garota subiu as escadas à velocidade de um foguete, lutando para por em ordem os sentimentos conflitantes. Ela já sabia que cedo ou tarde as mudanças nos documentos seriam feitas, então não havia motivos para que ela ficasse irritada, havia?

Sentindo-se repentinamente muito sobrecarregada, Utau abriu a porta do seu quarto em um rompante, preparada para jogar-se na cama e dormir até esquecer o próprio nome, mas antes que pudesse por seu cuidadoso plano em prática, uma imagem tomou forma diante dos seus olhos.

Kukkai, usando somente uma toalha sobre a cabeça, fitava a garota com semblante abobalhado de quem sente que fez besteira. Utau estava tão chocada que não lembrou nem mesmo de gritar, apenas encarava o garoto nudista com os olhos arregalados como duas bolas de baseball. Talvez ela estivesse também se aproveitando da situação.

— M-me desculpe, U-utau! – Kukkai finalmente tomou consciência de sua situação e puxou a toalha da cabeça para a cintura – Eu me esqueci de levar uma cueca e vim buscar! Não pensei que você fosse subir justo nessa hora. Prometo que não vai se repetir! – ele atropelou as palavras, enquanto se apressava em direção a porta. Passou por Utau, com o rosto tão corado que exalava vapor, e correu até o banheiro, lacrando a porta com força, não sem antes gritar mais um pedido de desculpas.

Utau ainda ficou mais alguns segundos no mesmo lugar, encarando a porta recém fechada. Aquele garoto fazia essas coisas de propósito ou era simplesmente idiota? É claro que ele era um grande e perfeito idiota! Essa era a raiz de todos os problemas. Se ele não fosse tão idiotamente gentil, idiotamente prestativo, idiotamente animado, idiotamente lindo... Utau não estaria confusa.

Suspirou, pela décima vez naquela tarde. Deixando suas pernas moverem-se automaticamente, ela dirigiu-se para a cama, a única fonte de consolo de que dispunha no momento – já que aquela cidade não tinha um shopping.

Já não adiantava mais se perguntar o porquê de Kukkai estar sempre povoando sua mente. Essa era uma questão sem resposta. Ou melhor, a resposta era tão óbvia que Utau recusava-se a admitir. A culpa era toda daquele garoto, que a provocava cada vez que tinha chance. Invadindo o banheiro quando ela queria um banho, trapaceando na hora de lavar a louça, fazendo todas as coisas pela metade, deixando os tênis sujos e fedidos junto com as roupas limpas, colocando a tolha molhada em cima da cama dela, roubando sua comida e bebida, sem nenhum escrúpulo... TUDO o que aquele garoto fazia tinha a intenção subjetiva de irritá-la até a morte (a morte dele, obviamente).

Porém, mesmo que Kukkai fizesse todas essas coisas, ela ainda não conseguia ver nele um lado ruim. Kukkai era naturalmente gentil. Não como aqueles garotos que Utau conheceu, que eram simplesmente bem-educados, e se obrigavam a oferecer ajuda por causa da etiqueta. Kukkai gostava de ajudar. E o seu sorriso! Era tão lindo, e espontâneo. Não era de maneira nenhuma forçado ou falso. Não havia nada de falso naquele garoto. Ele era... único.

Essa enxurrada de afirmações deixava Utau tonta. Ela apertou o travesseiro entre os dedos, cerrando os dentes. Empenhava-se para manter a coerência e não se deixar levar.

Mas, não importava o quanto Utau lutasse para manter a linha de pensamentos natural e despreocupada, eles sempre voltavam a se focar naquele garoto. Ela tentou pensar na antiga escola, em como as coisas poderiam estar por lá, e então antes que percebesse, já estava imaginando como seria se Kukkai estudasse com todos aqueles herdeiros bem-nascidos de quem ela era colega. Com certeza seria engraçado, ele ficaria irritado com tanta frescura, e provavelmente bateria em um ou dois daqueles almofadinhas de cabelo engomado. Sem se dar conta, Utau ria da situação hipotética, para só então perceber que Kukkai tinha o poder de fazê-la rir até em pensamento. Sentou na cama, sentindo a cabeça girar por causa do movimento repentino.

— Me desculpa por antes... eu... Ei! O que você tem, Utau? - da soleira da porta, Kukkai perguntou. Estava inteiramente vestido dessa vez, porém o cabelo continuava molhado, e a água escorria por todos os lados, escorrendo pela pele – Tá toda vermelha! Você tava pensando em alguma coisa indecente?? – ele fez cara de profunda indignação, levando as mãos até a boca aberta em surpresa. Logo começou a rir, sem conseguir segurar o teatro forçado por muito tempo.

Embora ainda estivesse perturbada por causa do rumo dos seus pensamentos, Utau não conseguiu evitar rir junto. A risada de Kukkai, melódica e um pouco rouca, era contagiante.

— Ei, você quer ver uma coisa? – ele perguntou subitamente, sem que Utau esperasse. Ela desceu da cama, desamarrotando o vestido.

— O que? Você vai finalmente cortar esse cabelo?

— Claro que não! Isso aqui é estilo! Eu tô falando sério! Hoje de noite, vai ter uma coisa legal. Você quer ver comigo?

Utau perdeu a habilidade de raciocínio por poucos segundos, e o único movimento que seu corpo paralisado era capaz de realizar era balançar a cabeça afirmativamente. Ver as coisas postas por esse ângulo: “Você... comigo” a fez ficar completamente sem chão.

 — Tudo bem. Hoje à noite então! – ele disse piscando um olho.

Assim que se afastou, Utau deslizou até o chão, escorando-se na cama e abraçando os próprios joelhos.

— Droga, Kukkai. Nós somos irmãos! – sussurrou pra os joelhos, no tom de quem repreende um ato falho.

-

Utau encarava o vazio no próprio armário, esperando que alguma roupa legal saída de revistas de moda pulasse no seu colo gritando “eu estou aqui, mamãe!”. Claro que isso não aconteceu, e Utau, completamente irritada pela sua falta de criatividade fashion ser herança da mãe (já que Aruto e Ikuto sempre souberam se vestir muito bem e sem esforço, mesmo sendo homens).

— E aí? Já tá na hora! – Utau ouviu Kukkai gritar do outro lado da porta.

— O que? Eu ainda não...

Antes que ela pudesse terminar a frase, porém, Kukkai empurrou a porta e invadiu o lugar, andando com determinação na direção dela. Segurou com força a mão de Utau, impedindo-a de se opor, e rebocou-a para fora.

— Ei, espera! Deixe-me colocar pelo menos um rímel! – ela protestou, ciente do fato de que rímel algum do mundo seria capaz de transformar aquela camiseta larga de lanchonete e o calção jeans puído em algo decente. Sem citar o fato de que ela estava de pés descalços, e os cabelos que costumavam estar sempre bem alinhados agora estavam em duas marias-chiquinhas malfeitas e tortas.

— Fica fria – ele falou, contendo uma gargalhada. Garotas eram tão bobas!

Kukkai guiou, tendo que utilizar um pouco da força, Utau para fora da casa. No entanto, quando ela pensou que eles seguiriam reto até o portão, o garoto desviou para a esquerda, dando a volta até os fundos. Lá, além de um jardim em construção que só tinha ervas-daninhas e uma roseira morta, havia uma escada, apoiada na parede.

— Certo. Era uma piada? Sinto muito, é muito complexa para o meu entendimento. Não consigo rir. Boa noite. – Utau disse tudo em só fôlego, preparando-se para dar as costas de uma maneira dramática. Mas Kukkai ainda tinha sua mão entrelaçada na sua, e a impediu de avançar, puxando-a na direção da escada.

— Você podia parar de falar um pouco, só pra variar. É só subir.

— Que? Você quer dizer, até o telhado? Tá louco?

— Mas o que eu quero te mostrar tá lá em cima – ele resmungou, tentando encorajar Utau com tapinhas na cabeça, como se faz com cachorros – Vamos lá, você consegue!

— E qual a parte do “Eu tenho medo de altura” você tem dificuldade de entender?

— Ah, é mesmo... eu tinha esquecido dessa parte... Mas pensa que isso faz parte do seu tratamento, e assim você pode vencer o seu medo!

— Legal. Então amanhã eu posso colocar algumas caranguejeiras na sua cara? Sabe, só pra você vencer o seu medo...

— Aaaah, Utau! Deixe de ser chata e tente brincar pelo menos uma vez na vida! Prometo que não vai se arrepender, é só confiar em mim! Vai ser divertido!

Utau ponderou por alguns segundos, medindo todos os ângulos da questão. Os olhos verdes, esperançosos e persuasivos, eram um grande ponto contra. Isso era até covardia.

— Tudo bem. Mas... eu não sei se consigo subir... E se eu travar, que nem na árvore?

— Eu estou aqui, Utau, você não tem o que temer. – Kukkai bradou, exalando confiança em grandes quantidades.

— E quem você é? O Batman? Super-homem? Homem aranha eu sei que não... – ela tentou parecer descontraída, para esconder o quanto aquelas palavras a deixavam vacilante.

— Vai lá, Onee-chan! Se você cair eu te seguro! – Kukkai empurrou Utau perto da escada, e ela se afastou como se a madeira da escada, o quem sabe o toque dele, desse choque.

— Você é idiota? É óbvio que eu não vou subir primeiro! Vai você!

Kukkai suspirou, derrotado. Aquela garota era complicada demais!

— Ok. Mas é melhor você não tentar espiar, viu?!

— Espiar o que?

— Meu lindo traseiro, é claro – ele disse em um tom convencido, começando a subir. Utau teve a certeza de manter os olhos bem pregados na grama. Seu pé pinicava um pouco, em contato com a grama úmida.

— Pronto, sua vez agora! – ele gritou, com a cabeça surgindo lá em cima. Utau fechou bem os olhos, avançando para frente.

Era só imaginar que havia um chão sob seus pés. Não podia ser tão difícil. Ela deu o primeiro passo, sentindo-se elevada a alguns centímetros do chão. Segurava dos lados com tanta força que sua circulação sumiu. Com a base das pernas tão trêmulas que ela mal podia ouvir o ruído do seu próprio coração martelando como louco, ela avançou, lentamente. Kukkai esperava pacientemente no topo, com os braços estendidos prontos para alcança-la.

Utau dava um passo após o outro, concentrando-se na presença do garoto que ela podia sentir logo mais a frente. Ainda com os olhos bem cerrados, ela tocou a cabeça na aba do telhado. Receosamente, ela entreabriu os olhos. Visualizou o rosto de Kukkai, iluminado e com um grande sorriso. Estava perto demais. Essa constatação fez Utau perder completamente o equilíbrio, que já não era uma das suas maiores virtudes.

A escada balançou, e Utau sentiu seu corpo sendo levado para trás, as pernas praticamente suspensas. Ela já podia se ver estatelada como uma panqueca no chão, quando percebeu que ainda não havia caído. Abriu novamente os olhos, sabendo o que iria encontrar dessa vez. Kukkai a segurava pelos braços, com o semblante desesperado e pálido. A escada caiu com um baque, levantando uma nuvem de poeira, grama e insetos.

— Acho que não foi uma boa ideia. É melhor manter você bem longe de alturas a partir de agora... – ele riu, nervoso.

— Você pode me puxar antes de começar a filosofar sobre minhas habilidades?

Ele riu mais uma vez, soando mais como um lamento. Puxou Utau pelos braços, até que ela estivesse no alto, ao lado dele. Os dois respiravam ofegantes, com uma fina camada de suor sobre a pele, refletindo o azul da luz da lua.

— Isso que você quer me mostrar vai ter que valer muito a pena – ela resmungou, acomodando-se.

— Sim! – ele pareceu se lembrar do que estava fazendo, reclinando-se sob as telhas até estar em uma posição confortável, com as mãos apoiando a parte de trás da cabeça. – Você devia se deitar também...

Utau recostou-se também, receosa. Fitou com o canto dos olhos Kukkai, que olhava diretamente para cima, com o rosto completamente iluminado. Era difícil obrigar-se a desviar o olhar, mas com um pouco de esforço e orgulho próprio, ela conseguiu.

— E agora? –ela indagou com o tom de voz calculadamente distraído.

— Agora você espera – ele respondeu simplesmente, virando o rosto para Utau. Seus narizes se tocaram, e sentindo todos os seus sentidos esvaírem-se completamente, Utau se afastou bruscamente, disfarçando a inquietação.

— Esperar? – sua voz tremia, e não saiu desdenhosa como ela esperava – Você pode só explicar qual é o plano? Não me diga que está pretendendo fugir e me abandonar aqui. Eu terei que me alimentar de pássaros e gatos desavisados, e beber água da calha.

— Ah, Utau, não seja impaciente. Está quase na hora. – Kukkai sentou subitamente, apontando para o céu feliz como uma criança na manhã de Natal – Olha lá!

Utau olhou. Cortando o céu, tão lentamente que seu movimento só podia ser percebido quando comparado às estrelas ao redor, um rastro de luz se destacava. Brilhava intensamente, deixando para trás uma chuva de luz que lembrava fogos de artifício. Os olhos de Utau resplandeceram, junto com o lampejo que se movia. Antes que percebesse, ela sorria.

Kukkai fitou-a, discretamente, e sentiu-se satisfeito ao perceber que fora ele o motivo do sorriso, ainda que indiretamente. Aquela garota parecia sofrer muito mais do que demonstrava, com a separação dos pais, a fuga da mãe e a mudança brusca de ambiente. Ele só queria que ela ficasse feliz, feliz de verdade, pelo menos por alguns segundos. Utau desviou o olhar do céu por um segundo, e se surpreendeu ao perceber Kukkai a olhando fixamente, com um sorriso calmo no rosto. Corou, e então voltou a olhar para cima.

— Como você sabia...? – ela balbuciou, sem querer olhar para ele novamente.

— É um cometa. Ele passa pela Terra e se torna visível com certa regularidade. Eu achei isso na internet, e achei que você gostaria de ver. Quem sabe você possa fazer um pedido.

— Ah... acho que seria bom voltar para casa, não é...? – ela respondeu, rindo sem graça. Kukkai ficou surpreso, mas então sorriu e acenou para ela.

— Tenho certeza que sim... isso faria você feliz.

Utau sentiu algo, ao olhar de novo para ele. Era cálido e confortável, e se espalhava rapidamente, desde a ponta dos pés até sua face, tornando-a quente e enrubescida. Havia alguma coisa na forma que Kukkai se referiu a ela, que a fez estremecer.  Seu coração se agitou, e de repente, Utau pensou que tudo o que ela tinha antes, as falsas amigas, as bolsas e sapatos, as roupas de marca, a piscina, o carro particular... nada daquilo realmente importava. Nada daquilo era relevante. Ela trocaria, a qualquer hora, a chance de ter sua vida de volta para ficar ali, no telhado, com uma roupa grande demais e na companhia dele.

E então, ela percebeu. Era um pouco tarde demais, mas ainda assim, ela percebeu. Ao mergulhar novamente no mundo verde e aceso que eram os olhos dele, tudo o que acontecia em seu interior fez sentido finalmente.

Que merda, Kukkai. Olha só o que você fez! Eu... estou...apaixonada por você.

— Hmm... Utau? – ele chamou. Ouvir seu nome ser dito pela voz dele, agora que ela havia tirado uma conclusão, fazia com que ela se sentisse estranhamente trêmula e cautelosa. Um pouco embaraçada, ela atendeu

— O que?

— Como vamos descer?


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