Tributo. escrita por lillyjelly


Capítulo 3
Recepção.


Notas iniciais do capítulo

Nos vemos lá embaixo.



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            Depois de meu longuíssimo banho, do qual saí plenamente revigorada, enrolei-me em uma das dezenas de toalhas felpudas a minha disposição e sequei-me na cama, enroladas nas cobertas e completamente nua. Uma batida leve na porta me indicou que já era hora de eu começar a me arrumar para ao jantar. Soltei um suspiro, pois desejava evitar todo tipo de contato social, mas coloquei uma calça e uma camiseta, largando meu odioso vestido de festa no banheiro, e saí.

            Ivy já estava à mesa, com sua pontualidade impecável de acompanhante. Toda a sorte de pratos magníficos estava disposta à mesa, alguns de qual nunca tinha ouvido falar, mesmo tendo vivido bem nos últimos quinze anos. Assentei-me nas cadeiras confortáveis e forradas com veludo e esperei a chegada de Horn e Chalvord sem encarar Ivy, ou mesmo trocar alguma palavra com ela.

            Logo os dois chegaram e começamos a comer mudamente.

            Após encarar minhas opções por algum tempo, enchi meu prato com uma massa coberta com um molho cheiroso e espesso, que tinha um forte sabor de algum tempero que não conhecia, mas que era certamente delicioso. Em poucos minutos eu estava comendo como um animal faminto, como se eu apreciasse uma das últimas refeições de minha vida. O que, de certa forma, era verdade.

            Um pigarro de Ivy interrompeu meu entusiasmo alimentício.

            – Com licença? – respondi friamente. Ivy fingiu não notar meu tom malcriado e continuou.

            – Creio, Shaey, que conhece seu mentor, Chalvord Kater.

            – Olá – cumprimentei indiferente, voltando-me para meu prato, antes de um segundo pigarro de Ivy. Este me deixou com vontade de atirar-lhe a travessa de massa.

            – Com licença? – respondi pela segunda vez, reforçando meu tom ríspido.

            Ivy pareceu surpresa com minha irritação. Nenhum tributo do Distrito 1 jamais causa problemas. Eles abaixam a cabeça, escutam aos mentores e só demonstram a posse de um órgão vital denominado cérebro com qualquer arma em mãos.

            – Shaey – Ivy diz em tom polido, como se estivesse se controlando para não me dar uma voadora. – Creio que você deveria no mínimo esforçar-se para manter uma boa relação com Chalvord, uma vez que ele decidirá as dádivas que você irá receber na arena, assim como boa parte do seu destino nos Jogos.

            Chalvord, que assiste à cena com um ar divertido, assume repentinamente uma cômica postura séria e apenas assente.

            Avalio a situação. Minha vontade de ser amigável com Chalvord é comparável à minha vontade de mergulhar em lava quente, mas por outro lado a opinião dele sobre mim pode interferir no meu tempo de vida na arena.

            Desprezo Chalvord por um único e válido motivo: depois dos Jogos, a habilidade que ele adquiriu para passar tempo foi, principalmente, dormir com metade de Panem. Amantes bonitinhas vindas da Capital e de outros Distritos são frequentemente vistas indo e voltando do caminho que leva à Aldeia dos Vitoriosos, e todos sabemos que elas não foram levar uma torta de boas-vindas nem nada assim. A fama de mulherengo de Chalvord já estava feita antes mesmo dele aprender a articular palavras. Era o mais forte, mais boa-pinta, mais rico e mais desejado quando adolescente. Nada mudou pra ele. Agora ele é apenas o mais forte, boa-pinta, rico e desejado assassino do Distrito.

            Respiro fundo, esquecendo-me das conclusões que tirei no deprimente banho mais cedo, e abro um sorriso que chega a tremer, de tão obviamente forçado.

            – Mil desculpas, Chalvord. Podemos começar de novo?

            Ele abre aquele sorriso sacana que me encara como se eu fosse um pedaço de carne.

            – Claro, querida. Vamos ver as Colheitas juntos?

            – Ótima ideia – esforço-me para articular as sílabas, então a frase meio que soa um sibilo estrangulado.

            Depois do jantar, Chalvord, Ivy, Horn e eu nos agrupamos na frente de um televisor que ocupa uma parede inteira e assistimos, uma por uma, as Colheitas nos doze distritos. Ocasionalmente soltamos comentários aleatórios, como “ótima postura”, “cara de doente” e “babaca”. Não posso deixar de dar uma risadinha, pois esse último foi da parte de Horn, o maior babaca que o ser humano já pôde gerar.

            Alguns deles me impressionam particularmente. A garota do 12, que, apesar de seu visual de morta de fome, tem uma força tão impressionante no olhar que eu chego a ver faíscas de excitação com a perspectiva de participar de tão hediondo massacre. O garoto do 7, que exibe um sorriso maníaco após o anúncio. Os cantos de sua boca tremem, e ele parece tem uns bocados de substâncias tóxicas correndo por suas veias. Meio que um serial killer. O garoto do 4, alto e forte, mas sem chegar a ser grandalhão, que solta uma risada antes de curvar seus lábios em um sorriso cínico que estremece o povo do Distrito 4. Venceu com setenta e um por cento dos votos. A menina do 8, que, apesar de seus 17 anos, é tão miúda que arranca uma risada de Chalvord. Seus cabelos escarlate chegam até sua cintura, presos em uma trança, e ela apenas encara a multidão com gélida doçura, com talvez um toque de indiferença.

            Finalmente, assistimos ao nosso anúncio. Eu pareço perigosa, uma louca descontrolada que desconta sua fúria em todos em seu alcance. De certo modo, isso pode ser bom, passando a impressão (errônea) de que os outros tributos devem se preocupar comigo. Horn parece orgulhoso, como se tivesse salvado um gatinho preso em cima de uma árvore. Reviro os olhos para sua expressão presunçosa e assisto em silêncio os comentários conclusivos de Chalvord e Ivy.

            – Parabéns, antes de tudo, pela sua postura impecável, Horn – elogia Ivy, bagunçando os cabelos platinados dele. Não consigo conter minha expressão entediada, mas garanto para que Ivy não veja meu desrespeito. Depois de lotarem Horn de todos os adjetivos conhecidos, viram-se vociferando para mim.

            – Você, mocinha, foi demasiado malcriada – repreende Ivy, como se fosse minha mãe. – Como pôde ser tão insolente?

            Dei de ombros, contendo meus instintos de enterrar minhas unhas (que, por acaso, ainda estava sujas com o sangue dos Carreiristas) em seu rosto plastificado. Ivy suspirou pesadamente e desligou a televisão, mandando-nos todos para a cama. Senti um espasmo de alívio percorreu meu corpo, pois não podia passar mais um segundo na presença de tão desprezíveis seres.

            Retirei minhas roupas, enojada por estar vestindo algo que me foi designado pela Capital, e adormeci apenas com a roupa de baixo. Não fazia frio, mas o céu estrelado estava coberto com as espessas nuvens que indicavam a proximidade da chuva. Adormeci em poucos instantes, apesar do turbilhão de pensamentos que corria por minha mente.

            Chegamos à Capital pela manhã.

            Fui acordada por uma batida na porta e uma campainha, assim como na noite anterior. Desta vez, Chalvord, Ivy e Horn estavam todos reunidos ao redor da mesa, que estava isento do costumeiro batalhão de comida.

            Caímos em terra e fomos logo abordados por uma enxerida trupe de fotógrafos que a todo custo procurava pegar um close melhor de nossos rostos. Na noite anterior, Ivy me instruíra a manter a pose que eu escolhi naquele dia na Colheita, a de insolente e malcriada garota do Distrito 1. Estou cansada demais para forçar uma aparência mais ameaçadora, então me igualo a uma garota revoltada com a ausência certo sapato de seu número em termos de futilidade ou profundidade de sua cólera.

            Não ligo. Abaixo a cabeça e encaro gelidamente os que ousam me falar.

            Somos transportados para um edifício gigantesco, que se destaca como um dedo médio sobre as outras construções da Capital. As dezenas de andares são conectadas por um elevador com portas transparentes, que permite uma ótima vista da cidade enquanto você transita por entre os andares.

            Nunca estive na Capital antes. Nenhum de nós, dos distritos, jamais esteve.

            Nossos quartos ficam no primeiro andar do complexo de apartamentos. Distrito 1, primeiro andar. Faz todo o sentido e, além do mais, é fácil de lembrar.

            Somos ordenados a tomarmos um banho antes do café da manhã. Obedeço sem pestanejar, já que, apesar de ter tido uma plena noite de sono, minhas pálpebras estão tão pesadas e meu raciocínio tão lento que não tenho vontade nem mesmo de contestar.

            Meu apartamento é muito mais até que minha casa no Distrito 1. O carpete vermelho-escuro estende-se por todo o quarto, onde uma cama com dossel dourado jaz, forrada por camas e mais camadas de cobertores, fronhas e almofadas fofas. Móveis folhados a ouro por todos os lados. Uma penteadeira, criados-mudos, uma estante de livros, uma cômoda, uma escrivaninha. Devem ter feito uma meticulosa pesquisa sobre nossos gostos pessoais, concluo após conferir que todos os livros que jazem na estante consistem basicamente em volumes que eu estava ávida para ler. Folheio alguns antes de ir conferir meu banheiro e meu closet.

            Este último, além de parecer conter dezenas de milhares de peças de roupa, conta também com um programa especial que ajuda o usuário a programar sua roupa para o dia. Você digita a ocasião e ele forma dúzias de combinações possíveis para o compromisso, além de indicar onde você pode encontrar cada item.

            Nunca fui uma pessoa de vestidos ou algo assim, mas fico especialmente entusiasmada com aquilo.

            Meu banheiro, assim como meu quarto, tem a paleta de cores de vermelho e dourado. Até mesmo meu vaso sanitário, que cheira a alfazema, tem uma coloração escarlate que, dependendo de seu ponto de vista, emite um reflexo ouro. Meu espelho tem moldura dourada, e o armarinho de maquiagens é completamente vermelho. Minha banheira, mais parecendo um aquário, tem a mesma cor do vaso sanitário, além de um painel com infinitas combinações de sais, sabões, produtos para todos os tipos de cabelo, e umas trinta opções de temperatura de água diferente. Aciono uma que parece um bom meio-termo entre congelante e fervente e combino uma série de aromas que resultam em algo levemente cítrico, porém frutal. Uma boa combinação para meu humor, que melhorou consideravelmente com as surpresas de meu quarto. Se vou acabar morta de qualquer jeito, por que não aproveitar os últimos luxos que a Capital me oferece? Eu não tenho honra, dignidade ou reputação para estragar, de qualquer maneira. Sou um peso morto neste mundo.

            Ao contrário do banho desastroso de ontem, eu reflito os mesmos pensamentos, porém de modo estranhamente positivo. Decido que desfrutarei sofregamente dos últimos luxos que a Capital tem a me oferecer. Não tenho nada a perder, afinal de contas.

            Termino meu banho uma meia hora mais tarde do que deveria, porém saio com a alma renovada. Passo mais algum tempo desembaraçando meus cabelos úmidos na frente da penteadeira, recusando-me a usar o desembaraçador e secador automáticos da Capital, mas com a promessa de que os usarei um dia, e depois me volto para meu painel de opções de trajes. Digito “café da manhã informal” no visor, apesar de eu ter plena ideia de como me vestir, e assisto o slide show de opções sem pressa. Por fim, escolho uma blusa simples listrada e uma legging preta para me reunir aos meus desagradáveis companheiros de distrito.

            Estou todos quase terminando sua refeição quando me sento. Apanho uma caneca de chocolate quente e um pedaço de bolo de chocolate com coco, deliciando-me com a textura macia deste último. Avoxes nos garantem que nenhum dos pratos jamais ficará vazio, sempre repondo a menor das migalhas que apanhamos. Sinto por eles, mas minha nova atitude despreocupada talvez não. Aprecio detalhadamente o toque de meus dedos ásperos na textura lisa e quente da caneca de chocolate, dando pequenos goles de tempos em tempos.

            Depois de um longo período onde me banqueteei com a maravilhosa comida da Capital, percebo que todos já se dispersaram, à exceção do casal de Avoxes que ficara responsável pela minha alimentação. Com um aceno de cabeça para os serviçais, retiro-me para meu quarto, aguardando novas instruções de Ivy.


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Notas finais do capítulo

eu tive uma delícia de bloqueio escrevendo esse capítulo, mas pelo menos saiu. O próximo será melhor, prometo! Nhac, deixem reviews! =33



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