A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 38
MORREU (e se pá não passa tão bem assim) – II


Notas iniciais do capítulo

Então galera, momento rolê aleatório: nesses quatro anos que eu morri eu acabei fazendo aula de russo kk e a primeira coisa que vou ensinar procês é o título: "do svidan'ya, Mama" significa "adeus, mamãe"....... seria um SPOILER?

Ps. Inclusive tem uma música russa bem famosa de uma banda chamada Moralny Kodex com esse nome, que eu acho INCRÍVEL. Se alguém tiver curiosidade, é só pesquisar no Spotify ou no Youtube o nome em cirílico: Моральный кодекс - До свиданья, мама

Passado o momento cultural, resta-me apenas dizer: BOA LEITURA



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38. MORREU (e se pá não passa tão bem assim) – parte II:
Do svidan'ya, Mama

Parte única: Hannah Nebavskaya

O caminho pro Elíseo não é muito emocionante. Só atravesso as paredes do castelo com minha existência fantasmagórica patética e volto pro caminho de onde eu vim. Sigo as placas. Esse tipo de coisa.

Agora estou passando pelo que Shirley dizia ser o estágio mais importante das minhas impulsividades: a culpa. Mais importante porque é a partir dela que você para pra pensar e diz: hum, se pá eu deveria mudar. Mas é mais fácil falar do que fazer, entende? São muitos anos de escolhas ruins pra eu simplesmente chegar um belo dia e dizer: mudei! É difícil. Até esse rolê doido de virar deusa. Eu só virei pros céus e falei: PAIÊ, EU ACEITO. Sem pensar muito bem no que realmente isso queria dizer. As responsabilidades e tal. É menos divertido na prática que na teoria.

Eu adoraria ficar sozinha com minha Culpa, minha Tão Grande Culpa, alimentar ela de remorsos e paranoias até ela estar grandinha o suficiente pra se tornar um bichinho de estimação, mas–

— A fantasma!

Que maravilha. Aquele é o Muke? Eu não tinha falado pra ele esperar?

Ele, Percy, Annie e Rachel estão ao pé dos portões Magníficos do Elíseo, uma pequena caravana inesperada. Rachel arregala os olhos verdes pra mim.

— Meu Zeus, você realmente está...

— Morta — falo, sem emoção — Eu sei.

Ela parece sem graça.

— Eu ia falar diferente. Mas tudo bem.

Annabeth me dá uma Cara Triste, porque é o que as pessoas fazem quando você bate as botas.

— Eu sinto muito pelo que aconteceu.

— Tá tudo bem. Apesar de tudo, foi até divertido.

Ela me examina com o olhar, sem saber pela minha voz se estou falando a verdade ou sendo irônica.

— Cadê o Nico? — Percy pergunta, e eu penso em explicar, mas chego à conclusão de que já fui honesta demais por hoje. Falo que ele está lidando com o rolê das chaves e me mandou esperar, o que parece deixar Percy frustrado.

— Esperar? A gente não tem tempo! E eu odeio cada segundo a mais que passo nesse lugar.

Olho em volta, pro design Sad Vibes do Mundo Inferior. Não é a sala de espera das mais agradáveis. Deviam ter contratado um designer de interiores melhor, tipo o do palácio, se pá.

— A gente não pode esperar lá dentro?

Aponto pra além dos portões do Elíseo. Não conseguimos ver lá dentro daqui, mas qualquer coisa é mais agradável do que uma eternidade de grama preta.

— Acho que não — diz Annie, a mais esperta de nós — A gente não conseguiria abrir os portões. Só um deus do Mundo Inferior conseguiria fazer isso, ou um filho, é claro.

Dou um suspiro frustrado.

Mas espera... O que é que Nico tinha dito sobre a mãe de Muke? A tia esquisita?

— Ei, cê consegue abrir os portões?

Muke olha em volta, até que percebe que eu estava falando com ele.

— Eu? Por que eu iria conseguir isso?

Rachel parece tão confusa quanto ele, mas Percy olha pra mim como se soubesse do que estou falando. Não faço ideia se Annabeth sabe, mas ela é esperta, vai entender.

— Porque–

— Porque você é um herói, cara — Percy me interrompe — Você salvou nosso amigo do rio do esquecimento. Só heróis de verdade conseguem um feito desses.

Muquêncio pode estar amnésico, mas ele não é (tão) burro.

— Mas ela acabou de dizer que só um filho do Mundo Inferior....

— Ah não, eu me confundi — Annie entra na história, uma ótima atriz — As primeiras pessoas a abrirem os portões do Paraíso são sempre os deuses e filhos do Mundo Inferior. Mas se você for um grande herói em vida, tipo Hércules, Teseu...

— Perseu — Percy adiciona, como quem não quer nada.

— E, bom, Perseu — ela dá o braço a torcer — Você pode conseguir abrir os portões. Porque... Bom, porque...

— Porque você é incrível — Rachel completa — Porque além de bonito e gostoso, você é incrível.

Muke cruza os braços, pensativo, alheio aos elogios.

— Faz sentido.

Ele se afasta do nosso grupo e se aproxima dos portões Magníficos do Elíseo. Percy aproveita a brecha para murmurar pra nós:

— Será que vai dar certo?

— Sei lá — diz  Rach — Mas vale a tentativa. E ele fica lindo pagando de heróico.

Apesar da nossa descrença, no momento em que Muke segura o cadeado ele dá um estalo: creck!

— Deu certo!

Muke acena pra nós o seguirmos rumo ao Elíseo, mais feliz que pinto no lixo.

— Eu sou um herói!

Rachel saltita e engancha no braço dele.

— Eu sabia! Meu xuxu, você arrasou.

Assim que passamos pelos portões, a atmosfera muda. O ar seco e abafado do Mundo Inferior se torna uma brisa agradável, quase à beira-mar. Os intermináveis morros de pedra e grama preta puída se tornam pradarias verdes e vivas, e o céu não é mais o subsolo, mas céu de verdade.

É o paraíso, literalmente.

— Uau. Isso é incrível — Percy diz ao meu lado, tão surpreso quanto eu — Aquilo... aquilo é uma cachoeira?

O Elíseo parece se estender ao infinito, e podemos ver lagos e cachoeiras até onde a vista alcança. E tem várias almas, o que é meio óbvio, todas semi transparentes com seus vestidinhos gregos, fazendo caminhada pela natureza, conversando e até sentados em rodinhas de música. Será que o cara chato do rolê que chega com violão chegou até no Elíseo, meu deus?

Mas não importa. É tudo tão bonito, pacífico e perfeito que eu me esqueço por um segundo de todas as coisas ruins que aconteceram e estão pra acontecer, rodopiando olhando pro céu azul e tentando entender como têm nuvens e Sol por aqui.

— Nana? Eto ty, Nana?

Paro de rodopiar e me viro em direção à voz. Parece uma miragem. Isso realmente tá acontecendo? Mas eu a vejo, tão linda e pacífica e perfeita quanto os Campos, e preciso de um momento pra acreditar que, sim, está acontecendo.

— Mama?

— Nana!

Coloco a mão na frente do rosto, como que em choque. Mamãe me puxa nos seus braços, e ao contrário do que acontece quando tento encostar em humanos vivos, nós conseguimos nos abraçar.

Meu deus. Meu deus, meu...

— Nana, eu senti tanto a sua falta — ela fala comigo, a mesma voz suave e delicada que eu não ouvia a séculos — Achei que nunca mais ia te ver!

Ela está chorando, e sinto os olhinhos enchendo d'água também. Feito um bebêzinho. Por pensar que eu quase a esqueci.

— Mamãe — porque é a única coisa que eu consigo dizer. Ela afaga meu cabelo.

— Eu sei. Eu sei — ela se afasta para examinar meu rosto, preocupada — Mas o que você está fazendo aqui? Você... morreu?

Seco minhas lágrimas fantasmagóricas com a mão.

— Mais ou menos.

— Nana!

Decido que é melhor não mencionar minha treta com um nazista, primeiro porque não quero deixar ela preocupada, segundo porque ela morreu uns trezentos anos antes da Segunda Guerra existir.

— Aconteceram umas coisinhas...

— Mas você era imortal!

— Talvez tenham sido muitas coisinhas.

Mamãe balança a cabeça em negação pra mim, mas está sorrindo.

— Você é impossível, minha filha. Mas eu não posso reclamar. Você não puxou isso do seu pai.

Mamãe deve ter morrido jovem, o que não é anormal, porque as pessoas morriam por qualquer coisa em 1600 e lá vai pedrada. Sua alma não aparenta mais de trinta e tantos anos. E ela é tão linda! E (isso não é um auto elogio), fico feliz de saber que ela parece com o que vejo no espelho todos os dias.

Ai, eu não sei. Foram tantos anos sem lembrar dela, sem saber que ela existia, e agora que ela tá aqui, é como se uma partezinha de mim que eu nem soubesse que tava faltando tivesse completa outra vez.

— Como ele está? Seu pai?

Eu poderia dizer que não sei, mas vou precisar explicar que não o vejo a um bom tempo, e daí vou precisar dizer por que não o vejo a tanto tempo, e conhecendo ela pelas minhas memórias, ela vai me escurraçar por ter passado por todos esses perrengues (só pra ter tido a burrice de morrer no final).

— Ah, ele vai bem. Derrubando uns aviões de vez em quando, queimando umas parabólicas, fazendo filhos...

Espera, mamãe sabe o que são aviões? Ou parabólicas? As pessoas atualizam os mortos do mundo lá fora?

Sabendo ou não, ela entende o contexto.

— O de sempre, então — ela suspira, um suspiro cansado de quem já lidou bastante com os pitis divinos de Zeus — Quanto mais eu penso no seu pai, mas eu percebo que deveria ter escolhido Poseidon.

— Mama!

— O quê? Eu nunca te contei do nosso triângulo amoroso?

Faço uma cara de pavor.

— Não!

— Ah, não se preocupe, nada aconteceu — o jeito arrependido com ela diz me faz querer vomitar ectoplasma — Mas o seu tio... ele é bonitinho. Escolhi mal.

— Eu não quero saber!

Mamãe ri, achando graça da minha sem gracice.

Que horror.

Pra uma serva do Império Russo, mamãe era muito pra frente. E apesar de essa conversa ter me causado uns três traumas diferentes, só deixa ela mais incrível.

Mas eu não vou falar isso em voz alta, porque é traumatizante.

— Eu vou fingir que essa conversa nunca aconteceu. Ok? Nunca.

Ela suspira.

— Tudo bem. Eu posso conviver com os meus erros — felizmente ela muda de assunto — Mas e você? Como foi sua vida no Olimpo, até suas... coisinhas?

Cavuco minhas lembranças para saber de onde começo a contar, o que estava rolando na época em que ela se foi e nós paramos de nos ver, mas percebo com horror que não foi porque ela morreu. Foi pouco depois da minha divinização. Depois de terem me transformado, a gente só se viu uma vez na vida outra na morte.

— Meu deus — falo em voz alta, perdida nos flashes que passam pela minha mente, assim que percebo o que fiz. Mamãe não segue meu raciocínio, e parece preocupada.

— O quê? O que houve?

— Eu abandonei você.

Ao contrário do esporro que eu esperava, ela franze as sobrancelhas.

— Nana! Por que você diria isso?

— Eu abandonei você, mama! Eu... — coloco as mãos no rosto, sem saber lidar com meu choque — Eu sou uma pessoa horrível!

— Nana, pare com isso. Você não é uma pessoa horrível. Às vezes é um pouco rebelde, sim, mas você nunca, como disse? Me abandonou. Por que você diria uma coisa dessas?

Porque ela não sabe o que está na minha cabeça agora. Eu decidindo me deusificar para ajudar com a questão dos monstros e impedir Mama de um casamento ridículo, só para ficar alheia demais com minhas obrigações idiotas e deslumbramentos mais idiotas ainda.

É complicado. A cabeça dos deuses não funciona que nem a dos mortais. Coisas que são óbvias pra gente (feito como é importante estar com as pessoas que você ama) não fazem sentido nenhum pra eles, porque eles são eternos. Quando você vive pra sempre, é meio idiota perder tempo com os outros, porque esses outros também vivem pra sempre e podem tolerar um atraso de um ou dois milênios. Só que não funciona assim com os mortais. Se você fica um ou dois milênios sem lembrar de visitá-los, eles morrem. Triste que os deuses estão ocupados demais com coisas idiotas pra perceber, e é por isso que eles são pais tão ruins. Não faz sentido pra eles.

Ou... filhos tão ruins.

Eu entendo agora. Onde eu errei. Eu não entendi na época, porque a imortalidade mudou a forma como eu via o tempo dos mortais e me fazia pensar que trinta anos eram duas semanas, mas agora eu entendi.

— Eu deixei você sozinha. Em casa. Com os monstros, e o trabalho, e Leonov, e...

Mamãe dá outro suspiro, dessa vez mais triste.

— Meu amor... você passou todos esses anos se culpando por isso?

Não, porque eu não entendia, e isso deixa tudo pior.

— Você nunca me abandonou — ela continua, antes de eu poder me martirizar — Você fez uma escolha que mudou a vida de nós duas, e está tudo bem.

— Mas eu fiquei tão ocupada que nem pensei em–

— Sim, mas nós já sabíamos disso desde que seu pai propôs isso pra você — ela diz, séria — Eu nunca fui ingênua de pensar que ter minha filha se tornando deusa seria fácil. Estar longe de você e te ver crescer de longe... com tantas responsabilidades. Foi difícil. Mas em nenhum momento eu pediria pra você fazer diferente — mamãe segura minha mão, as dela ásperas e grossas de uma vida de servidão — Porque é isso o que os pais fazem. A gente não cria nossos filhos pra nós mesmos. Seria confortável, mas egoísta. A gente cria vocês pro mundo, e eu sempre soube que seria assim. Mesmo se você recusasse, um dia você ia acabar indo pra longe.

Eu entendo o que ela diz, mas ainda me parece errado.

— Não é a mesma coisa.

— Claro que é! Eu não esperava que você ficasse contando cabras e limpando estábulos pra sempre. Talvez você se casasse–

Uma voz raivosa quebra a calmaria do Elíseo e interrompe a fala emocionada de mamãe.

— O que DIABOS vocês tão fazendo aqui?

Meu deus. Eu já tinha esquecido–

Não quero interromper nossa conversa agora, não em um assunto tão importante, mas sinto que preciso.

— Mama, me desculpa, mas eu preciso de um minutinho.

Ela me olha com curiosidade, depois para Nico, e pra mim de novo.

— Você conhece aquele garoto?

— Sim. É um amigo, e eu preciso dar uma palavrinha com ele rapidinho — respondo já no meio do caminho — Um segundo. Eu vou voltar!

Percy e Annie já estão junto ao portão. Almas atentas e curiosas observam de longe. Nico, para variar um pouco de narrativa, está puto.

— Eu falei pra vocês esperarem nos portões do Elíseo, não dentro dele! É proibido! E ainda deixaram a porta aberta! — ele está dizendo ao Percy — Como ao menos vocês abriram o cadeado?

— O Muquêncio abriu — meu primo responde meio cuidadosamente, sabendo que não é a resposta que ele vai querer ouvir — A gente não tinha certeza se ele podia, mas, bom... Deu certo.

Nico solta um som de desgosto, observando Muke mais além nas pradarias com Rachel a tiracolo.

— Eu estou cada dia mais infeliz com a existência desse cara.

Me aproximo meio sem graça.

— E aí.

— Eu ainda não estou falando com você — ele responde carrancudo, e fala pro grupo como um todo — Olha, eu peguei as chaves. Ótimo. Agora a gente precisa bolar como a gente vai sair daqui e chegar no Olimpo, aproveitando que a Hannah teve a brilhante ideia de possuir meu corpo com a alma penada dela e mandar meu pai — ele põe ênfase em pai, e eu encolho os ombros fingindo que não fui eu — convocar uma assembleia especial com os doze, que provavelmente já estão esperando. Então, precisamos de ideias. Annabeth?

Mas ela está ocupada demais estando em choque para botar o cérebro pra funcionar.

— Você fez o quê?

Eu já pedi desculpas, pô! — falo, exasperada — Será que a gente pode não falar sobre isso agora?

Percy dá um assovio impressionado.

— Hades vai te matar, irmão.

Nico resmunga alguma coisa incompreensível, e eu decido voltar ao que realmente importa.

— Tá bom, eu cometi um errozinho uma vez na vida, foi mal. Foi mal! Agora a gente pode voltar ao que realmente importa? — me viro para Nicolau — A gente não pode ir pelas sombras?

Apesar de não estar mais falando comigo, ele responde meio atravessado.

— Não dá. Não esse tanto de gente. Eu já fiz uma hoje da sua escola pra cá, e apesar de ter sido de curta distância, eu trouxe Percy e Annabeth comigo. Uma de longa distância com tanta gente vai ou me desmaiar por três dias ou me dar uma enxaqueca do inferno por uma semana, e considerando o que você já me fez passar hoje, não estou disposto a nenhum dos dois.

Ai.

— E Muke? — Percy surgere — Ele ainda é um deus. Ele pode nos levar até lá.

É Annie que responde, com hesitação na voz

— Eu não sei... Ele não parece saber que é um deus mais. Talvez não e lembre de como usar os poderes. E mesmo se souber, contar quem ele é pode fazer ele voltar a ser o que era antes. E a última coisa que a gente precisa agora é voltar com quem ele era a uma hora atrás — ela diz — Se pá a gente pede uma carona?

— De algum deus? Má ideia — diz Percy outra vez — Depois de Apolo, não sabemos mais em quem confiar.

Os três continuam discutindo a melhor forma de chegar até o outro lado do país, mas eu continuo calada. Eu penso... Não. Eu não sei. Dou uma olhada em Mamãe, nos observando de longe sem entender o que dizemos ou o que está acontecendo, e decido falar.

— Gente. Gente. Gente! — Eles param de discutir e olham pra mim. Engulo em seco, sem saber como começar — Eu... Eu estive pensando. Com tudo isso que tá rolando e tal. E eu não sei, hum, eu não sei se é uma boa ideia vocês me reviverem agora.

A minha frase não cai tão bem como você imaginaria.

— Cê tá zoando com a minha cara?

Ao menos ele está falando de volta comigo.

Nico continua:

— A gente passa por tudo isso pra trazer você de volta, e você não quer mais? — tem algo na voz dele, e eu não sei se é raiva ou frustração — Por quê?

Você pode achar que eu sou doida. Mas estar aqui, no paraíso pós-vida, me fez perceber todas as coisas que uma vida imortal impede você de fazer. Eu nunca envelheceria, ao contrário dos meus amigos, que um dia ficariam velhinhos e (por sorte) se encontrariam outra vez no Elíseo e viveriam felizes para sempre. Eu perderia todo mundo que importa pra mim, e mesmo que eu encontrasse outras pessoas que importam, elas também acabariam morrendo algum dia. Ao contrário de mim, que continuaria lá pra sempre. Com afazeres, como diz Hades, sendo só mais uma deusa horrível no meio de tantos outros.

Mas e se eu só... ficar? Aqui? Não seria tão ruim, mesmo com os caras chatos do rolê nas rodinhas de violão. Eu estaria com mamãe, depois de todos esses anos sem vê-la e sem lembrar dela. Com sorte, meus amigos demorariam anos pra chegar, mas chegariam, e um dia estaríamos todos lindos belos e felizes nadando em cachoeiras mágicas–

— Talvez seja melhor! — digo — Eu lembro da minha vida de antes agora, e ela não era tão incrível. Era meio solitária. Eu era... triste.

— Mas você não está sozinha mais, você tem a gente — Annabeth se aproxima, tentando pegar minha mão — Você tem a gente, Hannah.

Não sei como responder, como se as palavras estivessem entaladas na garganta. Ela tem razão. Eu me sinto feliz, eu me sinto parte de alguma coisa, mas ainda me dá uma pontada no coração pensar que no momento em que eu me tornasse imortal outra vez, isso seria apenas temporário. Eterno pra eles que são temporários, e temporário pra mim que seria eterna. Poético, mas triste.

Alguém toca meu ombro.

— Tem alguma coisa errada, Nana?

Mamãe está do meu lado, preocupada. Os outros estranham a aproximação, mas faço um gesto para esperarem. Eles observam enquanto me afasto para ter privacidade, mas não interrompem.

Eu respondo:

— Meu amigo, ele disse que pode me fazer viva outra vez.

— Pode? — ela olha admirada para Nico, que parece confuso com minha conversa numa língua estranha com um espírito desconhecido que, pra ele, acabou de chegar — Nana, isso é maravilhoso!

— Sim, o problema é que eu não tenho certeza se quero.

Ela faz aquela Cara de Mãe ouvindo coisas que não quer ouvir e prestes a brigar com o/a Filho/a, mesmo que não veja esse/a Filho/a a séculos.

— Mas por quê?

— É só que, agora que eu tô aqui — faço um gesto amplo pro Campo — eu percebo que não é uma ideia tão ruim. Eu não sei se você sabe como tá o mundo lá fora hoje em dia, mas ele tá bem deprimente. E eu vou poder ficar com você, depois de todo esse tempo... Eu quase esqueci que você existiu, mamãe.

Achei que ela ficaria triste e me incentivaria a ficar ao saber disso, mas ela mantêm a Cara de Mãe.

— Hannah, eu não quero que você fique comigo. Eu quero que você viva, que honre o compromisso que fez com seu pai e continue exercendo seu papel no Olimpo. Não é sua hora de estar aqui, agora.

— Por que não? Eu cumpri meu compromisso, por vários anos, até. Cumpri tão bem que ignorei todo o resto.

Mamãe parece hesitante, parecendo decidir se diz algo ou não.

— Eu não quis te contar antes sobre isso, porque não sabia como ia reagir. Mas eu não fiquei sozinha depois que você se foi — tem algo nos olhos dela, acho que é receio. Receio de me contar — Eu me casei.

Faço uma cara de horror.

— Com Leonov?

— Não! — ela faz um cara de nojo — Não, deuses, não, com Pietr. Você se lembra dele?

Pietr? Pietr Ivanov. Quando penso nesse nome, lembro de um homem com a aparência um pouco intimidadora — alto, forte, o famoso Armário —, mas extremamente gentil. Ele era o ferreiro do feudo, viúvo, e morava com o filho três casinhas abaixo da nossa. Nos invernos, quando as temperaturas ficavam negativas e insuportáveis (numa época em que não existia aquecedor elétrico, né), ele abria sua oficina para os mais miseráveis passarem à noite, já que ela era sempre quentinha por causa das forjas.

Eu gostava dele. De vez em quando ele me deixava ajudar na ferraria, um trabalho bem mais emocionante que o meu real, que seria limpar o esterco dos estábulos. Eu escapulia dos guardas de Leonov, homens tão bêbados e desagradáveis quando seu senhor, adeptos de surras de incentivo para volta ao trabalho, me esgueirando até a oficina dos Ivanov. O filho dele, um garoto de cara vermelha e magricela chamado Egor, era meio preguiçoso e tinha mais costume de dormir do que realmente fazer algo que prestasse, então Pietr deixava que eu ajudasse contanto que não espalhasse minha escapulida pros outros, algo que traria problemas pra nós dois.

Lembro de uma das vezes em que ajudei ele a forjar armas para os guardas, espadas e facas e escudos com a insignia do senhor feudal. Em algum momento ele estava de costas, concentrado nos detalhes de uma espada, e Egor como sempre estava babando em pé. Aproveitando a deixa, eu escondi um dos punhais que a gente tinha feito, sabendo que ele seria muito mais útil e afiado para me proteger dos monstros (que me farejavam cada vez melhor a medida em que ia crescendo) do que as facas cegas que tinha em casa. Quando eu me despedi, com o punhal escondido nas dobras infinitas do vestido puído, Pietr disse com calma: você sabe que poderia só ter pedido, não sabe, devushka? E em vez de me impedir de voltar à ferraria ou (pior) contar pra Mama, que teria me escurraçado, ele me deu o punhal de presente com a condição de que, da próxima vez que precisasse de algo, iria pedir antes de surrupiar.

É, eu gostava de Pietr. Até de Egor, apesar de ele estar dormindo na maior parte das nossas interações. Mas ainda é estranho pensar que ele meio que virou meu padrasto, e eu nunca nem fiquei sabendo.

— O ferreiro — eu digo, simplesmente, porque ainda não sei o que acho sobre isso. Mas acho que estou feliz. Por ela. Mamãe faz que sim com a cabeça.

— Quando você se foi, eu tive que contar a todos que você tinha morrido — ela explica — Ele sabia como era difícil lidar com o luto, por causa da mãe de Egor, e me visitava para ver se estava tudo bem. Apesar de não estar de luto de verdade, eu ainda sentia sua falta e apreciava muito a companhia dele. Então quando ele perguntou se eu queria me casar, eu disse sim.

Eu não sei o que responder, então ela continua:

— Ele era um homem muito bom, Hannah. Me fez muito feliz. E Egor se provou um enteado muito simpático, quando estava acordado — ela dá um sorriso, mas depois fica séria outra vez — Mas o que eu quero te dizer é que estar longe de você foi difícil, mas eu sabia que você estava bem e que estava longe por um bom motivo. Então em vez de me sentir abandonada, como você acha, eu me senti orgulhosa. E mesmo que nenhuma nova família jamais substituísse você, eu vivi minha vida. Agora é hora de você viver a sua.

Sinto as palavras entaladas na garganta. Ela tem razão. Mães sempre têm razão, e é um saco.

— É só que eu fico triste de pensar que eu nunca te veria de novo.

— Eu sei. E é triste pra mim também, mas eu odiaria saber que você continuou no mundo por mortos por minha causa — ela vê minha carinha triste e me abraça — Tá tudo bem, Nana. Eu vou ficar bem.

— Tá bom — falo contra o ombro dela — Meu amigo é filho de Hades. Eu vou pedir ele pra falar com você de vez em quando. Nem que seja uma vez a cada mil anos. Ele não está mais falando comigo porque tá bravo, mas eu vou pedir todos os dias até ele dizer que sim.

Mamãe me aperta mais forte antes de me soltar.

— Espero que sim — então ela olha pra trás de mim, até os três semideuses nos observando, e algo na sua expressão me diz que ela sabe exatamente de quem estou falando — Mas não se preocupe. O quer que tenha feito, ele vai te perdoar.

— Espero que sim — repito com uma voz frustrada, e ela sorri.

— Eu sei que vai — ela diz com aquela voz Mães Sempre Sabem — O jeito como ele olha pra você me lembra o jeito que eu olhava pro seu pai. Zeus me tirava do sério e me dava raiva por semanas, mas ao fim do dia ele era sempre meu primeiro amor.

Fico meio sem graça quando ela diz amor em uma comparação com a gente, porque assim, a gente tá aí e tal, só que amar é um rolê completamente diferente. Mas não comento.

— Achei que você quisesse ter escolhido meu tio.

— Na teoria sim, mas na prática Zeus foi uma das melhores coisas que aconteceu comigo. Porque ele me deu você, não é? — Mama acaricia meu rosto, e o gesto é tão familiar que eu quero chorar — O amor é complicado, Nana. Um dia você vai entender. E quando esse dia chegar, eu espero que você peça ao seu amigo pra me fazer uma visita pra você poder me contar tudo sobre.

Faço que sim com a cabeça, emocionada, e Annabeth se aproxima de nós duas.

— Hum, oi — ela acena pra mamãe, que a observa curiosa — Desculpa interromper, mas o nosso tempo tá contado. Quanto mais tempo você passa aqui, mais difícil é te fazer voltar.

Percebo pela voz que ela está na dúvida se ainda estou decidida a ficar aqui ou não, mas acho que independentemente do que eu escolher, eles vão aceitar. Porque é pra isso que servem os amigos, não é mesmo?

— Eu sei — digo pra ela, e me viro pra mamãe — Eu tenho que ir agora.

Ela faz que sim e me dá um beijo na testa.

— Está tudo bem, filhote. Boa sorte.

— Obrigada — respiro fundo antes de dar adeus — Do svidan'ya, Mama.

Do svidan'ya, Nana.

Me viro pra Annabeth e tenho certeza. Se eu disser agora que vou ficar no Elíseo, ela vai ficar triste mas vai respeitar minha decisão. É pra isso que servem os amigos. É tão estranho finalmente ter alguém com quem contar, que eu fico meio sem saber como agir nesse lance de amizade.

E sei lá, algo me diz que eu devia continuar no lance por um tempinho, pra ver se eu descubro de qualé que é.

Fecho os punhos enquanto volto até eles, com Annie a tiracolo. É isso. Mamãe tem razão. Eu sou muito jovem pra bater as botas e ter que aturar o chato do rolê que chega na rodinha com violão por toda a eternidade.

— Desculpa, eu precisava falar com minha mãe. Aquela é minha mãe, por sinal, desculpa por não apresentar vocês. — Eles me olham na expectativa enquanto falo, então completo — Vamos andar logo com essa porcaria pra eu poder ir chutar a bunda do meu irmão.

Percy deixa sair o ar num suspiro aliviado.

— Graças aos deuses. Cê quase matou a gente infartado, mulher.

— Ao menos se cês morressem, já tavam no Elíseo.

Olho pra Nico, e algo na forma como ele sustenta meu olhar me faz perceber que mamãe tem razão. Ele ainda está bravo, mas também parece aliviado com minha escolha, apesar de não querer transparecer.

Ele tira um cordão de pano do pescoço com uma chave pendurada. Ela é pequena, cinza, tipo uma chave normal da casa de alguém. Não deve ter mais de cinco centímetros.

— Presta atenção: você vai acordar onde morreu. Não sei o que vai estar rolando lá em cima, mas esteja preparada para qualquer coisa. Talvez os mortais já tenham acordado a essa hora, e o melhor que podemos esperar é que a Névoa ajude você — ele diz, a voz séria — Eu vou pelas sombras até lá, e a primeira coisa que a gente precisa fazer lá em cima é terminar de juntar a sua Clave.

A Clave...... meu deus. Eu cheguei tão perto, tão perto, e tudo deu errado desde então.

— Entendi. E vocês?

— A gente vai sair pela porta de Caronte e encontrar vocês — diz Annie — Não deve demorar muito. De lá, todos nós damos nosso jeito de chegar até o Olimpo. Mas a gente precisa ir rápido, porque os deuses não gostam muito de ficar esperando.

Talvez reunir uma assembleia não tenha sido a melhor das ideias.

Bom, acho que é tarde demais.

— Tá legal. Entendi.

— Entendeu? — Percy confere, e eu repito.

— Entendi.

— Vai demorar alguns minutos pra sua alma chegar até lá em cima — diz Nico, com a chave em mãos — Não vai doer, eu acho. Nunca tentei. Mas olhe pelo lado bom, se doer, vai doer menos que morrer.

Uau. Animador.

— Está pronta?

Olho para uma última vez para Mamãe, afastada alguns metros. Ela está chorando, mas faz que sim com a cabeça, me incentivando. Ela não está mais sozinha, mas abraçada com o fantasma alto de um homem de meia idade, forte e corpulento de vários anos na ferraria.

Pietr acena pra mim, sorrindo. Eu sorrio de volta pra ele.

Ela vai ficar bem.

— Tô pronta.

Ele atravessa a chave no meu fantasma, onde deveria estar meu coração. Acho que estou um pouco nervosa. Não sei.

— Vejo vocês do outro lado, eu acho?

Ele gira a mão.

O Elíseo explode em branco, e então tudo que há é apenas luz.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que tão achando até agora? Aguardo feedback!
Eu sou a chata dos spoilers, portanto: a próxima é a Rachel!
Até logo s2



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