A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 35
Cara esse troço virou CASA DA MÃE JOANA


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal!
Primeiramente, alô alô pros pernambucanos! Temos alguns por aí? Queria saber porque estive em Recife e arredores semana passada, cidade maravilhosa ♥ subi no letreiro do Marco Zero, realizei sonho de tirar selfie com boneco de Olinda, apaixonei por frevo, é tão lindo! Tentei aprender mas não deu certo, resolvi voltar pro meu território mineiro e continuar só escrevendo porque isso eu sei fazer mais ou menos rs. Enfim, só queria saber se tinha algum recifense/olindense/PE no geral na área, mesmo. Apaixonei pelo sotaque de vocês ♥

ENFIM NOVAMENTE, cá estamos, após tanto tempo! Esse cap tava pela metade desde o hiatus, aproveitei o silêncio da madrugada de hoje pra tentar acabar, e deu certo! Quase 7 mil palavras! Cês merecem né kk perdoem-me por qualquer erro ou parte sem noção ou similar, eram quatro da manhã, tem que dar um descontinho

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/157251/chapter/35

35. CARA ESSE TROÇO VIROU CASA DA MÃE JOANA

Parte I: Point of View — Nico di Angelo

Era um plano bem simples na teoria: ir ao Mundo Inferior, impedir a Hannah de entrar na sala dos juízes, usar as chaves de meu pai que podem ou trancar ou livrar uma alma do Hades para desfazer a morte dela. Pena que na prática era um pouco mais complexo, já que houve uma pequena interrupção daquilo que restou depois do tio Apolo foder a tia esquisita, também chamada de Melinoe.

Não é possível. O Muke é um deus. Não qualquer um, porque se ele fosse o deus dos putos eu estaria pouco me importando, mas é ele era o deus das ilusões, das mentiras e das distorções mentais, o que me deixava bastante apavorado com as coisas que ele poderia ter nos feito imaginar todo o tempo. Talvez parte da busca tenha sido diferente, talvez ele tenha nos atrapalhado com as Claves, talvez..

Merda, merda, merda. Era a única coisa que passava pela minha cabeça enquanto as possibilidades aumentavam.

— Todo esse tempo, você estava contra a gente — digo enfurecido, sem nem ao menos ter um palavrão bom o bastante para xingá-lo. Embora alguns chegassem bem perto.

Muke batuca o indicador no queixo, pensativo.

— Eu não colocaria ‘contra’ vocês. Diria apenas que estava com objetivos distintos dos seus.

— Objetivos distintos, claro — Percy ri sarcasticamente — Nós queríamos levar a Han de volta pro Olimpo, e você só precisava desviar um pouquinho a rota pro Mundo Inferior.

A tia esquisita, Melinoe, encara o filho de Poseidon com uma careta. Meu santo Hades, ela fica ainda mais bizarra com a cara atravessada.

De repente, algo me acertou feito um trem sem rumo. Foi tão rápido que nem sei de onde minha mente tinha desenterrado as memórias de todos os dias que, em alguma conversa curta e grossa com o Muke, ele parecia adivinhar aquilo que passava pela minha cabeça. “Só se lembre que não são todos os deuses que estão do seu lado, Playboy”, foi o que ele disse depois que me lembrei do que havia pedido no meu aniversário (que a vida continuasse indo de boas e etc etc como estava naquele momento, se não me engano). Era tão óbvio. Como eu não tinha percebido?

Ele estava lendo minha mente todo esse tempo.

— É verdade — Muke dá de ombros— Eu estava fuçando as mentes confusas e embaralhadas de vocês muitas das vezes que conversávamos, então sei que me chamaram de nomes bastante criativos. E também, Playboy, você acha que a Hannah tem gosto de menta, e tudo que posso dizer é, bom, é verdade — ele me encara e sorri de modo maldoso — Eu conferi.

Se quer saber, o mínimo de razão que eu estava usando para ~tentar conversar civilizadamente sumiu tão depressa que me fez questionar se eu realmente tenho razão pra qualquer coisa.

Eu avancei com o punho fechado pra cima do Raio de Sol. Toda a raiva que eu já senti na vida surgiu misteriosamente, tão forte que me faria arrancar suas tripas com as unhas e usá-las como cinto em plena Manhattan. Mas Melinoe se colocou na frente dele cinco segundos antes de eu acertá-lo, e de repente, ela não era mais Melinoe.

Deixa eu explicar pra vocês uma coisa sobre a deusa dos fantasmas: ela não deixa você raciocinar direito. Por mais que pareça impossível alguém ser capaz de fazer você pensar naquilo que ela quer, no momento que a deusa aparece na minha frente e muda de forma, eu não percebo que é um truque. Minha mente não é capaz de distinguir o que é real e o que está sendo colocado ali por esses puttanos distorcedores de pensamentos, de forma que paro onde estou, com o punho no ar.

— Pelo amor de Deus garoto, é assim que você me recebe? Quase acertando a minha cara? — ela franze as sobrancelhas, irritada. Abaixo o braço lentamente, perplexo, o que não ajuda muito no seu humor — Nossa, obrigada pela recepção calorosa.

Minha garganta está fechada, e preciso respirar fundo várias vezes até conseguir responder qualquer coisa.

— Han?

Ela me encara com os olhos marcados de preto, impaciente, mas logo suaviza a expressão. Parece tão normal com as roupas surradas e coturnos que não parece a mesma que vi a algumas horas, morta.

Muke está a alguns passos atrás dela, o que me irrita. Mas ele logo tremeluz e some do meu campo de visão, me deixando muito mais feliz. Já vai tarde, colega.

— Parabéns, você sabe me reconhecer — ela revira os olhos, sorrindo. Não sei se rio, se choro, ou se simplesmente agarro ela e saio correndo. Ou os três ao mesmo tempo, o que seria bizarro.

Nico — Percy agarra meu braço e tenta me arrastar para longe da Han, mas afasto suas mãos de mim e permaneço onde estou. Por que ele está tentando me levar pra longe dela? Era o que nós viemos fazer no Mundo Inferior, não é? Salvá-la?

Ignoro o filho de Poseidon gritando no meu ouvido e me concentro na Hannah, que sorria pra mim com os fios de cabelo loiros e pintados caindo sobre os olhos azuis. Enquanto estou atordoado pensando no quanto estava bonita, ela passa os braços em volta do meu pescoço, me abraçando.

Engraçado, não estou vendo problema nenhum com abraços agora.

— Você não faz ideia do quanto eu fiquei preocupado com você — digo suspirando. Percy está puxando a minha camisa. Por que ele está puxando minha camisa?

Que seja.

— Estou aqui agora, não estou? — ela levanta a cabeça e olha pra mim — É o que realmente importa.

Sorrio, meio atordoado. Eu podia não admitir pra ninguém nem pra mim talvez, mas com Bianca e minha mãe mortas, agora ela era o mundo pra mim.

— É, acho que sim.

Seguro seu rosto entre as mãos e todo aquele peso maldito nas minhas costas some de uma vez quando nos beijamos. A lembrança da sua morte quase que apagada minha memória enquanto ela arranha nem tão de leve assim o meu pescoço.

Não.

Calma.

As unhas da Hannah são roídas até onde Judas permite, porque de acordo com ela mesma, é impossível tocar violão com unhas do tamanho das do Zé do Caixão. Ela não conseguiria me arranhar nem se quisesse.

..

Puta que..

Puta que pariu.

PUTA QUE PARIU QUE MERDA É ESSA VELHO ALGUÉM CHAMA A PORRA DO SAMU.

Empurro-a pra longe de mim, limpando a boca com as costas das mãos. Credo!

— Sua filha de uma puttana grega — xingo a deusa de vários nomes em italiano, e embora não ache que consiga entender, ela apenas ri da minha cara. De início continua com a aparência da Hannah, mas então a mulher metade branca metade preta tremeluz para a garota loira, minha cabeça doendo diante do esforço de tentar separar as duas.

Credo, acho que eu nunca escovarei meus dentes o suficiente para tirar meu trauma desse dia.

— É tão fácil atingir vocês jovens — a deusa dos fantasmas me encara com os olhos pretos, feliz por conseguir o que queria —, têm o coração tão frágil que suas mentes mal tentam me impedir. Elas simplesmente aceitam a distorção.

Droga, de todas as formas possíveis de me atingir, ela escolheu uma das melhores. Pelo visto Percy percebe que estou atordoado demais para reagir, já que bufa e agarra a deusa pelo vestido de forma violenta.

— Me faça o favor de ficar calada, moça, ou eu faço você beijar o chão dessa vez — então ele se vira pra mim — Anda, vai atrás dela. Está desperdiçando tempo com essa mulher.

Ela sibila feito uma cobra, uma maneira bastante psicótica de rir da minha cara.

— Realmente. Pena que não é filho de Cronos, querido, não pode mexer no precioso tempo que perdeu — Melinoe continua a dizer alguma coisa, mas o filho de Poseidon tira a tampa de Contracorrente e ela se cala.

Jackson sorri pra mim, mas não aquele sorriso levemente triste de ‘meus pêsames por sua amiga (?) ter morrido de forma bastante cruel’, e sim aquele entusiasmado de ‘vá acertar algumas caras e chutar umas bundas pelo caminho’.

— Traz de volta sua loira, Nicolau — diz, simplesmente, com a tampa azul da caneta ainda entre os dentes.

Não espero que ele fale outra vez. Fecho os punhos, determinado, e corro até o Julgamento, um salão numa área afastada dos Campos perto do rio do esquecimento. Agora, longe de Melinoe e do Muke, consigo pensar com mais clareza, sem distorções confundindo minha cabeça. Se meu sexto sentido estivesse certo, a Hannah não estava neste salão, o que por um lado é bom porque quer dizer que ela não está sendo julgada ainda.

Ou não mais. Esse é o lado ruim. Mas minha determinação não quer pensar muito nesse ponto.

Paro no portão só salão, ofegante, e enquanto levo alguns instantes para normalizar minha respiração, escuto vozes familiares.

Argh, mas que merde! Por que hoje Hadès danou a me mandar esses eslavos mautids? Eu joguei pedrrrrra na crrruz de Jésus por acaso?

— Quieto, Napoleão! Chega de seus pitis. Filho de Nêmesis, diga seu nome, garoto.

Empurro as portas com os ombros, interrompendo quem quer que estivesse sendo julgado.

— Mikhail Illarionovich Golenishchev Kutuzov, senhor.. — o réu, que além de ter um nome incompreensivelmente grande tem um sotaque estranho, para de falar enquanto franze as sobrancelhas em minha direção. Respiro aliviado por não ser a Han, mas a possibilidade de ela já ter sido julgada ainda é possível.

O réu é um cara que provavelmente está na casa dos vinte e poucos, e me lembra Rachel por ter sardas na pele e o cabelo ruivo escuro. A única coisa estranha é que ele parece ter saído de um livro de história pelas roupas estilo general de mil oitocentos e lá vai pedrada, mas estou com pressa demais para perguntar.

— Traz mais ordens de seu pai, mini Hades? — um dos trabalhadores do dia, Bob Marley, pergunta, provavelmente porque nos dias que passo no Mundo Inferior eu ando de um lado para o outro mandando ordens de Hades.

— Bonaparte, Platão, Marley — faço uma mesura rápida aos Juízes, apenas curvando ligeiramente o corpo. Pela teoria deveria ser o contrário já que meu pai é, digamos, o patrão deles, mas na prática não me importo muito com isso — Desculpe-me por interromper, mas preciso saber se vocês já encaminharam uma alma.

— Hum, não julgamos muita gente desde que você passou por aqui — Platão alisa a barba e eu franzo as sobrancelhas. Meus deuses, que povo lerdo. Havia quase um mês que eu não os via — Mas tudo bem, qual alma você quer saber? Leyena Padopoulos ou Martin Ramirez? Se sim, acabaram de passar por aqui.

— Hannah Nebavskaya, senhor.

Assim que digo seu nome, o cara ruivo me encara estupefato. Me pergunto se teria algum motivo específico para isso, mas não quero atrasar ainda mais as coisas. Os três homens nos tronos também parecem confusos.

— Ora, di Angelo, não estou entendendo — diz Platão.

— É uma longa história, mas a Hannah é uma deusa que foi morta.. acidentalmente — isso aí, acidentalmente. Muito acidente metade do Olimpo estar atrás dela — e por isso deve retornar ao Olimpo. Ela permanecer no Hades seria um erro contra a natureza divina dos imortais — digo com a voz firme, embora não faça a mínima ideia do que esteja falando realmente.

Os Juízes piscam, confusos, e Napoleão faz uma careta. Imaginei que ele fosse perguntar como uma deusa conseguiria morrer mesmo que acidentalmente, mas não.

— Ora, di Angel. Vous acabou de tirrrrar a rrrrapariga daqui, por que está nos perrrguntando?

A cena se inverte, e agora eu que encaro o francês sem entender.

— Com licença?

— É sim. Vous apareceu enquanto eu convencia a tóds que ela deverrria pagar o que fez comig nos Campos de Puniçón, e disse que Hadès orrrrdenava a libertaçón da garrrota — o francês range os dentes — E ainda chamó Napoleón de afeminado. Absurde.

Encaro o piso xadrez, tentando assimilar o que ele disse. Eu apareci e... Merda.

Estou falando muito merda hoje.

Mas merda.

— A quanto tempo ele.. eu passei por aqui? — não faz muito tempo desde que eu fui enganado por Melinoe, ou faz? Ela mexeu no meu tempo psicológico também?

— Deve fazer uns cinco minutos, ou menos — Platão levanta uma das sobrancelhas, desconfiado — Algum problema, di Angelo?

Merda. De novo.

— Eu disse para onde a levaria?

— Não — Marley faz uma pausa. Parece preocupado — Tá tudo bem, mini Hades? — Balanço a cabeça negativamente. Merda. Merda. Merda!

Antes que me dê conta estou fora do salão, respirando o ar quente do Mundo Inferior novamente. Sinto o coração batendo com mais força enquanto olho a paisagem vazia ao meu redor, e de repente tudo que eu tenho é raiva.

Muita raiva.

Na verdade, acho que se eu visse o Muke nesse momento, eu faria ele engolir aquele chapéu pomposo e levemente enviadado de Napoleão. E depois usaria ele como oferenda para os deuses dos mortos dos chineses (?).

Eu estava concentrado em odiar o filho de Apolo (e Melinoe, droga, preciso urgentemente de um Listerine), quando escutei gritos insistentes de uma voz fina. Levo menos de meio segundo para perceber o quanto ela era familiar. Giro e sigo em direção à voz até que chego próximo ao rio Lete e a primeira coisa que vejo é a Hannah, ainda em sua forma física fantasmagórica e translúcida, se debatendo nos braços de alguém... que sou eu. Ou quase.

Sinto uma pontada de dor atrás da cabeça quando consigo me livrar da ilusão e ver o Muke empurrando Hannah em direção ao rio do esquecimento.


Parte II: Point of View — Hannah

Eu estava tendo problemas pra aceitar o fato de que ia morrer. Mesmo. Algumas pessoas poderiam dizer que eu estou ficando louca porque os soldados zumbis de Niké, mais especificamente o alemão metido a besta Chucrute, já tinham feito o favor de me trazer ao Mundo Inferior, mas essa não era a questão.

Eu sabia quem era. Como eu era. E graças a Platão sabia um pouco mais agora a cada segundo que se passava, mas se eu caísse no rio Lete, tudo isso ia fugir outra vez. Não faria ideia de nada, de novo.

Isso que é morrer pra mim. E, como dito antes, eu estava tendo problemas pra aceitar esse detalhe.

— Me larga, sukin syn — xingo o Nico, ou ao menos quem se parece com ele, de tantos palavrões que nem percebo que o ‘filho da quenga’ saiu na língua errada. Meu rosto está molhado enquanto tento loucamente me desvincular de suas mãos que me empurram para dentro do rio, sentindo meus pés sendo arrastados pela grama preta mesmo que eu estivesse pairando a alguns centímetros dela.

— Não adianta, Hannah — diz ele, irritado com minha relutância — Você tem que entrar de qualquer forma.

E então, minha mente aterrorizada e enfurecida se lembrou de um detalhe importante. Muito importante.

De acordo com esses filmes adolescentes e algumas de minhas experiências próprias, há três maneiras infalíveis de dar nocaute num cara, seja ele quem for. São elas: ferir o ego frágil que, embora não admitam, os homens têm; falar abertamente sobre certo acontecimento feminino mensal; e acertar as partes preciosas que os machos de qualquer espécie possuem.

E, me conhecendo, não é surpresa pra ninguém que eu tenha escolhido a terceira.

— Só por cima do seu cadáver — rosno.

Coisa feliz essa dele conseguir me tocar em minha forma fantasmagórica, porque assim que acerto com força meu joelho em seus países baixos, ele se grunhe ao se curvar para frente e me solta. Aproveito esses poucos instantes em que sua quase perda da capacidade de ter herdeiros no futuro é mais importante que eu para correr para longe de meu inimigo, mas mais importante, para longe do rio.

Estou uns bons metros longe quando escuto-o gritando meu nome atrás de mim, me mandando parar. Só que, maravilha, eu não respirava, portanto não tinha fôlego. Portanto, não perdia o fôlego. Continuei correndo até que avistei o Salão do Julgamento, mas a uma distância relativamente grande do portão, ele me alcança e agarra meu braço.

Ou ao menos tenta, já que dessa vez minhas condições de fantasma morta no Mundo Inferior resolvem funcionar e não sinto seu aperto, apenas um calafrio quando sua mão me atravessa.

É uma sensação horrível, se quer saber.

— Hannah, pelo amor dos deuses — quando me dou conta ele está na minha frente, inspirando fundo para normalizar a respiração ofegante — Não podia ter feito o favor de parar?

Sua pergunta me faz ter vontade de bater infinitamente na sua cara até que Bob Marley me desse umas ervinhas pra acalmar. Parar? Para ele me jogar nas águas pretas e medonhas esquecimento eterno?

Soou mais dramático do que eu pensei, mas a verdade é que eu estava enfurecida pelas duas explicações possíveis para isso. A primeira, Nico estava me traindo. Não no sentido amoroso, mas como.. tudo. Estava traindo tudo que eu havia acreditado até agora. E a segunda, alguém estava utilizando da aparência dele para me atingir, fazendo-me acreditar na primeira explicação. O que, porra, é mau pra caralho. Não é?

— Eu não sei porque você está fazendo isso comigo — encaro seu rosto em busca de alguma expressão familiar — Mas saiba que por qualquer motivo que for, eu te odeio.

Ele não parece ofendido. Na verdade, só parece preocupado.

— Han, eu sei que é difícil de acreditar, mas sou eu — diz com a voz apreensiva, mas eu não cairia nisso outra vez.

Antes que ele termine de falar me viro para o outro lado para sair correndo desembestadamente, mas bato a cara numa pilastra no processo. Nossa, a sorte realmente está do meu lado.

Espera, não é uma pilastra. É o Nico.

Oi?

— Jesus Cristo, que merda.. — dou passos pra trás, confusa. Ele está de cara fechada na minha frente, com os braços cruzados sobre o peito.

Olho pra trás. Ele também está com as sobrancelhas franzidas, o rosto vermelho com o que suspeito ser raiva.

AH MEU JOÃO DE SANTO CRISTO É UM MILAGRE. AO INVÉS DE MULTIPLICAR OS PÃES MULTIPLICOU O GAROTO PQP.

— Hannah, saia de perto dele — diz (um dos) Nico(s), o que estava atrás de mim. O outro, que eu achei ser uma pilastra (?), grunhe.

— Pare de confundir a cabeça dela — ele se vira pra mim — Sou eu, o Nico, tá legal?

Eu estava confusa demais pra responder.

— É você que está confundindo a cabeça dela! — o primeiro (oh Zeus, isso é confuso. Esse Nico, que não era uma pilastra, será chamado de Nico-que-não-era-uma-pilastra, certo?) grita, fechando os punhos — Hannah, pelo amor de Hades, ele não é real. Tá legal? Ele não é quem você pensa e ele está te confundindo ao se fazer parecer comigo.

— Ele? — nesse momento eu já estava quase me encolhendo no chão pra deixar os dois machões resolverem, de tanto que não estava entendendo mais nada.

— Não, não, ele que está te confundindo — Nico-que-era-uma-pilastra está com a voz apreensiva, tão real que estou quase acreditando nele — Quer te jogar no Rio Lete para apagar sua memória.

Encaro com raiva o Nico-que-não-era-uma-pilastra.

— Filho da mãe — agarro a mão quente do Nico-que-era-uma-pilastra (até isso já está me confundindo) e deixo que ele se coloque entre eu e o traidor. De alguma maneira o Nico-que-não-era-uma-pilastra tenta se aproximar de nós, mas uma barreira invisível como que vidro o impede.

Não! — ele bate os punhos contra a barreira, mas não consegue passar. Era como estivesse preso numa caixa. Habilidades de filhos de Hades, eu imagino — Hannah, pelo amor de Hades, ele está fazendo você acreditar que eu estou contra você, mas é o contrário!

Fuzilo-o com os olhos, enquanto seguro com mais força a mão do Nico-que-era-uma-pilastra. Ela estava tão quente que me fazia ter a impressão que eu não estava morta de verdade.

O Nico encaixotado continua a esmurrar o que o prende, e o peso do medo se esvazia quando o outro Nico, o real, diz algo que não entendo para ele. Na verdade, acho que o peso que se foi era tão grande que, quando percebo que estava segura agora que o verdadeiro Nicolau estava comigo, fico um pouco avoada. O Encaixotado continua a berrar alguma coisa, mas não presto muita atenção.

Ok, eu não presto atenção nenhuma até que escuto o garoto que segura a minha mão sussurrar ‘perdeu, Playboy’. Foi extremamente baixo, como se ele apenas esboçasse com os lábios ao invés de realmente dizer, mas meus ouvidos aguçados para notas musicais foram capazes de ouvi-lo.

Levo alguns instantes para estranhar a frase, e quando finalmente estranho, me afasto rapidamente.

— O que foi isso? — pergunto, perplexa. Ele franze as sobrancelhas enquanto o Nico preso me encara de olhos arregalados.

— Isso o quê? — diz — Não foi nada. Agora, nós temos que humanizar você outra vez..

— Não.

— Como assim, não? — estende a mão para tentar encostar no meu ombro, mas me afasto.

— Você disse Playboy.

— Não disse não.

— Disse sim.

Nico morde o lábio.

— Olha, Han, acho que a morte está fazendo você escutar coisas. Se nós pudermos apenas fazer o ritual de reviver uma alma.. — ele retira um pequeno frasco transparente do bolso, com o que me parece se água suja dentro — Eu só preciso derramar isso em você.

Pausa.

Isso faz sentido. Eu morri. Às vezes eu não estou pensando direito. Se ele me reviver, vou começar a raciocinar..

Não! — o Nico encaixotado grita, com a voz abafada — Isso não tem nada a ver com reviver você, pelo amor de Hades não encoste nessa água! É uma ilusão, ele está tomando conta da sua mente!

Paro minha mão a cinco centímetros de agarrar o frasco, sua voz me tirando de um transe que eu nem mesmo sabia que estava. Tudo estava completamente errado e eu não havia reparado.

A mão do Nico, quente? Ele dizendo Playboy? É como se eu não estivesse conseguindo comandar meus próprios pensamentos, e de repente estivesse retomando o controle outra vez.

Oh meus deuses. O Nico de verdade era o encaixotado.

Fudeu a porra toda.

Dou passos cautelosos para trás, batendo as costas contra a barreira. Era eu sozinha outra vez porque única pessoa que poderia me ajudar nesse momento estava preso na bOSTA DE ARMADILHA TRANSPARENTE QUE NÃO FAZ SENTIDO NENHUM.

E só por ela não fazer sentido nenhum, eu sabia o inimigo era ainda pior do que eu pensava.

Encaro o garoto com a aparência do Nico com dificuldade, não conseguindo focar direito meu olhar. Forço até que minha cabeça começa a doer, e como se eu tivesse acabado de sair de um nevoeiro, minha visão se clareia pouco a pouco. Os olhos estão mais claros que o do Nicolau. A pele não está pálida. Os músculos dos braços um pouco mais definidos. Talvez esteja mais alto.

De repente, quem está a minha frente é o Muke, em toda sua loirice californiana.

— Você? — arregalo os olhos — O que...

— Parece que sua cabeça está mais forte do que antes, Han — agora sua voz está como a que eu escutei pela primeira vez a tantos anos, num orfanato maldito de Los Angeles. Mas isso não me deixa nem um pouco mais feliz. Ainda mais quando uma das íris de seus olhos deixa de estar castanho-esverdeado e fica tão preta quando piche.

— O que há de errado com você? — pergunto, a voz trêmula. Tudo que eu queria agora era quebrar em pedaços essa barreira maldita e conseguir me agarrar ao Nico. Sei que ele está atrás de mim, mas me sinto completamente vulnerável.

— Absolutamente nada, Punk — e ele suspira, parecendo cansado — Pra ser sincero, é a primeira vez que você me vê de verdade, sem nada borrando a imagem que você tem de mim. Se não contarmos as vezes que você me viu antes da amnésia, claro.

É informação demais pra mim, ainda mais com trocentas coisas em russo pipocando de segundo em segundo na minha cabeça.

Aliás, cabeça em russo é golová. Eu tinha acabado de descobrir no momento que pensei nessa coisa de informação demais.

— O que você quer dizer com isso? — pergunto desconfiada, me apertando ainda mais contra a barreira quando ele dá um passo na minha direção.

— É uma caso bastante longo.

— Você sabe que eu gosto de histórias grandes.

Ele sorri, mas ao invés do garoto bonito que eu via antes, tudo que vejo é um ensaio de psicopata prestes a matar a vítima.

— Sabe, eu sinto falta da época que era só nós dois. Sem nada de mitologia, Clave, Playboy.. — ele faz cara feia enquanto diz — Aqueles tempos que sua maior preocupação era se seu melhor amigo bonito algum dia perceberia que você era uma garota de verdade, e não só a pessoa que ele usava pra conversar quando não tinha mais nada pra fazer.

Fico sem saber como responder. Ele sabia? Todos esses anos ele sabia que, naquela época, eu gostava dele?

Não Hannah, para, isso não é o mais importante.

Muke ri pelo nariz no exato momento que penso por que Hades estou estranhando mais ele saber da minha antiga queda do que ele estar aqui.

— Você não é a única que tem um passado que ninguém conhece, Punk. Lembra que, lá em Los Angeles, eu falei com você da minha mãe? — ele cruza os braços sobre o peito enquanto pergunta, sem muita expressão no rosto. Balanço a cabeça que sim — Então. Melhor eu começar por aí. Ela é a deusa dos fantasmas.

— Não — rio de nervoso — Não, para. Isso é um sonho. Um pesadelo. Eu vou acordar no trailer, quentinha na minha cama, e vamos estar todos felizes indo tomar café pra buscar a última Clave..

Muke apoia as mãos nos meus ombros, o que me faz ter vontade de cuspir na cara dele ou algo parecido.

— Por que acha que eu consigo tocar em você, enquanto o Playboy não pode?

Eu não tinha resposta pra isso. Nem tinha pensado realmente nisso. Olho pro Nico, esperando que desminta essa coisa toda.

— É verdade — ele está com a cabeça apoiada na barreira, o rosto vermelho de frustração, ou raiva, por não conseguir fazer nada estando preso ali — Apolo fudeu a tia esquisita, Melinoe.

Ah, que beleza. E agora o filho deles está fudendo com a minha vida.

— O que você vinha vivendo que era um sonho, Punk — diz o loiro — Não tudo, talvez, mas muita coisa não aconteceu bem do jeito que você imaginava.

— Para com esse suspense idiota de vilão da Disney e pula logo pra parte que você conta porque está fazendo isso comigo — falo com os dentes rangidos enquanto empurro-o para longe.

— Tá legal, tá legal.. Onde eu estava mesmo? — ele apoia a mão no queixo, fingindo estar pensativo — Ah, certo. Minha mãe — pigarrea — Lá pros meados do século treze, enquanto um terço da Europa morria de Peste Negra e os deuses estavam ocupados demais tentando salvar seus semideuses da doença, Apolo e Melinoe se encontravam escondidos em lugares escuros e suspeitos de Constantinopla para evitarem serem alvo de Afrodite e seus seguidores. Sabe como é, o deus Sol com a deusa bizarra do Mundo Inferior, não era algo que eles queriam que se espalhasse — Muke dá de ombros, como se sua história fosse completamente normal — Mas acabou que em mil e quatrocentos camisinha não era uma opção, eu nasci e um bebê não é uma coisa muito fácil de se esconder.

— Lamento muito por isso — digo — Parece que não é de hoje que você arruina a vida das pessoas.

Muke sorri de lado, nem um pouco ofendido como eu gostaria.

— Meu pai usa a aparência dele deslumbrar as pessoas e assim sempre passar a impressão de herói, mesmo quando está longe disso. Minha mãe usa a dela para aterrorizar, fazer com que as pessoas se corroam por dentro de culpa pela morte daqueles que eles amam — ele lança um olhar rápido ao Nico, preso atrás de mim — Eles são mais parecidos do que qualquer um imagina. Os dois usam de seus corpos para colocar as pessoas numa ilusão, seja ela boa ou ruim — ele cruza os braços sobre o peito — Eu sou o deus da mentira, Hannah. Posso fazer qualquer um acreditar no que eu quiser, e é isso que eu vinha fazendo com você a um bom tempo.

Suas palavras me soam como uma grande cusparada no rosto, como se alguém com uma sinusite daquelas pigarreasse tudo que tem pra pigarrear bem na minha cara: primeiro fico sem reação, então ofendida e me perguntando por que alguém faria alguma coisa horrenda daquelas, depois puta pra caralho e com uma ligeira vontade de mandar de volta o café da manhã; sorte que mortos não ficam de estômago cheio.

— Eu confiava em você, sabia? Você era insuportável e eu tinha vontade de te socar na maioria das vezes que via sua cara, mas por muito tempo você era a única pessoa com a qual eu me importava — sinto meus olhos lacrimejando, mas tenho certeza absoluta de que é de raiva. Quando percebo, estou gritando na cara dele — Eu confiava em você, droga!

Muke suspira.

— Eu sei.

Ele segura meu punho e sai andando, me arrastando contra minha vontade. Grito e esperneio para que me solte, mas ele me ignora e continua na direção do rio Lete, maldito rio Lete. Nico grita meu nome, ainda preso na barreira transparente.

Aliás, que merda de negócio é esse? NÃO FAZ SENTIDO NENHUM.

Mas estou ocupada demais para pensar nisso, com licença.

— Muke! Pelo amor dos deuses, me deixa em paz! — nós já estamos na frente do Lete agora, as águas negras batendo nas pedras das margens e respingando a centímetros de nós. A sensação de pânico ameaça voltar a qualquer momento.

Ele me segura com mais força, mas dessa vez sua voz está até mesmo.. culpada?

— Me desculpa. Tá legal? Desculpa — ele me encara — Punk, nunca foi ideia minha fazer qualquer coisa com você. Só estou seguindo ordens de meu pai.

Fico sem palavras de repente, como se alguém tivesse acertado o punho na minha cara. Nem ao menos me lembro do rio, de qualquer outra coisa.

— Seu.. seu pai? — ele faz que sim com a cabeça — Oh meu..

Apolo? Mas..

— Papai nunca ficou muito feliz perder a música. Todo esse tempo.. — ele respira fundo — Eu sou o capacho dele, entendeu? Eu e todos os outros deuses envolvidos nisso.

Semicerro os olhos. Depois disso das ilusões, não confiava em sua expressão de culpa.

— Não acredito em você.

— Pois acredite, porque é a primeira vez que eu falo a verdade pra você.

E ele me empurra pra dentro do rio.

Nesses milésimos de segundo entre 'conversando' e 'oh mEU ZEUS', eu me lembrei de tudo aquilo que eu não queria esquecer. Também vale comentar de passagem que não sei porque fechei os olhos, talvez para não enxergar a correnteza, embora soubesse que a sentiria quando caísse nela.

Mas aí que está.

Eu não senti.

Bato em alguma coisa dura, que está longe de ser água. Eu deveria abrir os olhos? Pode ser o fim. Pode ser o portão do Elíseo que surgiu por alguma intervenção divina, ou dos Campos de Punição; pode ser qualquer coisa que eu provavelmente não vou querer ver.

Ah, foda-se, abro os olhos.

Eu bati em ossos. Uma mini jangada feita de esqueletos desmontados é a única coisa entre o rio e eu.

— Talvez você devesse aprender a não mexer com a parceira dos outros, Playboy — a voz tão familiar do filho do deus dos mortos chega aos meus ouvidos, me fazendo virar imediatamente até onde ela vem.

Nico está com sua espada de ferro negra nas mãos, vários esqueletos parados atrás dele. Devo também falar que a expressão em seu rosto era tão fechada quanto a dos mortos.

Espere, ele não estava preso? Muke parece tão confuso quanto eu (mas um pouco menos feliz).

— Não era pra você estar aqui — diz o filho de Apolo, encarando os mortos que se posicionam perto dele.

— Realmente — diz Nicolau — E você deveria ter percebido que, embora bastante real, é impossível manter uma pessoa numa ilusão física por muito tempo.

Arregalo os olhos, sem acreditar que a barreira era invenção de nossas mentes o tempo inteiro. Nunca imaginaria que ilusões podem ser mais fortes do que simplesmente o que a pessoa enxerga, mas sim o que ela acha tocar também.

— A casa caiu pra você — Nico dá um sorriso cínico antes de os mortos avançarem no outro.

Dois dos esqueletos inteiros andam na minha direção e me ajudam a ficar de pé na pseudo jangada, para passar para a margem do rio sem cair nele. Já em terra firme, tento fazer algo para ajudar (feito bater em alguém até a morte), mas os mortos são mais fortes do que aparentam e me impedem. Apenas observo enquanto Muke usa suas habilidades para a luta com os ossos, formando uma pilha deles algumas vezes e levando uns na cara em outras. Nesse meio tempo Nico dá ordens para eles, parado onde está.

Mas então algo acontece. Quando termina com os esqueletos, Muke pega um dos ossos dos lutadores desmontados e pula para cima do filho de Hades, causando um corte não muito bonito no rosto. Nico revida e em questão de segundos os dois já estão no 'rolando no chão' típico de filme de colegial americano, perigosamente perto demais do rio.

— Nico! Cuidado! — grito enquanto tento me livrar dos únicos mortos que restaram, que lutam fielmente para não me deixarem intervir.

Ele me manda ficar onde estou, mas antes que pudesse terminar a frase Muke o acerta uma, duas, três, seis vezes no rosto: não consigo medir o estrago daqui, mas o punho do filho de Apolo está bastante manchado de vermelho. Nico parece tonto por alguns instantes em razão do impacto, e o outro aproveita para imobilizá-lo na margem do rio, sua cabeça pendendo a centímetros da correnteza.

Uma gota. Apenas uma gota do Lete é capaz de fazer alguém esquecer tudo que já viveu.

Eu já tive essa experiência, e olha, ela não é nada agradável.

Acerto as costelas do primeiro esqueleto com o cotovelo e ele desmonta, me deixando livre para pegar *emprestado* o osso comprido de sua perna e acertar o outro guarda com ele. A cena deles se desmoronando se repete, me deixando livre para fazer alguma coisa realmente útil.

Não, espera. Eu consigo pegar nos ossos? Que coisa aleatória.

Vejo que Muke tenta empurrar a cabeça dele pra dentro do rio, e mesmo que haja um pouco de resistência, os golpes no rosto deixaram Nicolau grogue demais para impedir de maneira efetiva. Vou em direção a eles o mais rápido que posso, já que os dois esqueletos haviam me deixado a uma distância “segura”, leia-se eterna, da briga.

Reparo em algo caído na grama escura e paro rapidamente minha corrida, sem nem pensar se seria uma boa ideia ou não. Apenas agarro o objeto e continuo na direção dos dois.

— Você é.. a porra.. de um filho da puta — já estou próxima para ouvir Nico falando, mas não o bastante para tirá-lo daquela situação — Cê sabe disso, não sabe, Raio de Sol?

— É, eu sei. Mas será que você vai se lembrar disso daqui a cinco minutos, Playboy? — Muke força a cabeça dele para dentro do rio, tentando superar a força que Nico faz para manter ela erguida. Dá pra ouvir o sorriso dele na voz quando diz — Aposto que não.

— Aposto que sim — respondo, chegando por trás. O loiro se assusta quando escuta minha voz, afrouxando o empurrão por um instante — Já você, Muquêncio, não tenho tanta certeza.

— Han? — não sei se está dizendo meu nome ou “ahn?”, mas de qualquer forma, Muke se vira pra mim e percebe que estou segurando seu pequeno frasco com água suja, que deve ter caído no chão em algum momento da briga. Ele não tem tempo de reagir, apenas arregala os olhos e começa a gritar um não! antes que eu jogue tudo na sua cara.

Assim que o líquido acerta seu rosto, Muke para o grito no meio e pisca os olhos pra mim. Um deles é o castanho meio verde que sempre conheci, o outro está tão escuro quanto as gotas de água do Lete que escorrem em seu rosto.

Meu Deus, o que foi que eu fiz?

— Muke. Muke? — ajoelho do seu lado e chamo, tentando perceber alguma mudança. Ele continua piscando para mim. O fato de ele ainda estar em cima de Nico me deixa aflita, mas tenho medo de gritar e a magia do Lete ser falsa e ele terminar de empurrar o garoto pra dentro do rio.

— Muke, estou falando com você — me forço a olhar nos olhos dele, tentando ignorar a agonia que me dá encarar sua íris preta.

— Muke? — ele repete.

— É, Muke, Muke é você — meu coração estaria batendo mais rápido se eu estivesse viva, ao ver que funcionou de verdade — Pode sair de cima do meu amigo, por favor?

Ele desvia o olhar de mim pra Nico, que ainda tem o rosto ensanguentado e pena para manter a cabeça acima das ondinhas da beirada. Muquêncio o observa minuciosamente por instantes antes de se levantar e ficar parado de pé, do meu lado.

Tento afoitamente puxar di Angelo pra longe do rio, mas não consigo segurá-lo. Com certo esforço ele se coloca sentado sozinho, ignorando minhas falas (“Cê tá bem? Lembra de mim? Meu Deus, meu Deus”), e se arrasta para longe da margem. Quando numa distância segura, ele se deixa cair na grama. O fato de não me responder me deixa preocupada, e se tiver passado de raspão no rio, e se a água que joguei em Muke tiver respingado nele? Ainda sabe quem eu sou, ainda sabe quem é? Mais uma vez, tento encostar em seu rosto machucado, mas minha mão atravessa seu crânio.

— Pare de fazer isso, por favor — diz de olhos fechados — É irritante. E dói.

Acho primeiro que vou começar a chorar, mas depois começo a rir, e quando me dou por mim estou enxugando lágrimas fastasmagóricas com as costas das mãos enquanto sorrio.

— Obrigada por você ainda ser você.

Ele mantém os olhos fechados, mas levanta um dos cantos da boca dessa vez.

— De nada.

Quero perguntar o que fazemos agora, porém ainda estou perdida demais com tudo que aconteceu para falar em voz alta alguma dúvida comprida e elaborada sobre como agir depois que se morreu. Por isso, apenas olho de relance para a correnteza do Lete, percebendo que o pânico que surgia em mim ao olhar para ela havia passado. Ainda havia um medo de chegar perto daquelas águas e de repente esquecer como dar um nó nos cadarços, mas ainda assim, estar a alguns metros do leito já parecia suficiente.

Parece que morrer pode ser uma ótima terapia!

O novo Muke parece um pouco deslocado na cena, talvez por há alguns minutos ter tentado levar a mim e a Nicolau pra morte (ou quase) e agora estar caminhando calmamente em nossa direção e se agachando perto de mim. Continuo observando o vai-e-vem do rio até que sua voz quebra o silêncio.

— Ele está bem?

A inocência da pergunta quase me faz chorar outra vez, enquanto o filho de Hades resmunga um “nunca estive melhor” ligeiramente irônico. Percebo que Muke encara o punho ensanguentado, tentando usar sua mente ainda confusa e perturbada do esquecimento para juntar as peças do quebra cabeça.

— Ele tropeçou perto do rio e saiu capotando, se machucou feio — falo sem pensar — Você sujou um pouco as mãos porque conseguiu segurá-lo centímetros antes de cair e se afogar — ele arregala os olhos pra mim e tento dar o sorriso falso mais verdadeiro que consigo — Serei pra sempre grata por isso, Muquêncio.

— Eu? — ele ainda está surpreso com a possibilidade — Eu sou, tipo...

— Um herói? É, se quer chamar assim, até que pode.

Nosso novo amigo Muquêncio parece muito feliz com a possibilidade de ter salvado uma pessoa de um afogamento, e eu fico feliz com a possibilidade de poder ensiná-lo a ser uma pessoa mais legalzinha a partir de agora, que não pega trocentas gurias de uma vez só, não interrompe romance dos outros e não tenta, sabe como é né, matar os outros.

— Eu salvei alguém! — ele ri, só que dessa vez não tem ironia ou escárnio no seu riso. É um riso normal e feliz, tipo “Ajudei alguém a não se afogar! (mesmo que tenha sido eu a tentar afogá-lo, em primeiro lugar! Mas não tenho consciência disso!)” — Eu salvei seu.. Ele é seu amigo, você disse?

— Bom, é.. — olho mais uma vez para o garoto estirado no chão, cuja aparência está terrível. Acho que se tivessem derrubado o Pão de Açúcar com bondinho e tudo em cima dele, estaria um pouco melhor — Talvez seja um pouco mais que isso.

Di Angelo franze as sobrancelhas no “talvez”, mas não se pronuncia. Muke permanece em silêncio, refletindo.

— Porra, bem que eu suspeitei!

A espontaneidade com que diz isso me faz dar uma gargalhada, que ele responde primeiro com perplexidade e depois com um sorriso. E de repente parecemos dois amiguinhos de escola novamente, rindo da piada que ouvimos mais cedo no horário do almoço.

— Parece que você não é tão burro quanto parece, solnyshko*.

*solnyshko: apelido carinhoso, raio de Sol no sentido figurado (em russo)

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O que acharam? Muke mereceu, ou não? Foi pouco? Mereço um feedback, mas poxa vida. E MELINOE FINGINDO SER A HANNAH SOS

Enfim kkkkk eu sou muito idiota meu deus. Ignorem.
Até mais! s2



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Deusa Perdida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.