Signatum escrita por MilaBravomila


Capítulo 1
Prólogo




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“E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles.” Apocalipse, 9:6.

A chuva caía fina sobre os corpos amontoados. Eu estava ali, ainda trêmula, com a adaga na mão. O sangue negro e espesso pingava lentamente da lâmina prateada. Jules estava ao meu lado. As asas abertas revelavam as cicatrizes de batalhas passadas. Minha respiração começava a se regularizar e o vento era somente frio, não mais fantasmagórico e fedorento como em outrora.

Era sempre assim. Essa minha paralisia momentânea sempre vinha depois do jorro de adrenalina que eram as batalhas. Eu acho que o dia em que eu parasse de fazer aquilo, meu corpo pereceria. Eu era uma viciada, viciada em adrenalina e cheiro de morte, como um bêbado que necessita de álcool, meu corpo necessitava de ação, daquela ação, especificamente.

Jules começou os trabalhos para se livrar dos corpos retorcidos dos demônios. Estava piorando. A cada semana, a cada dia, a cada hora, eu sentia, com todas as células do meu corpo, eu sentia que o princípio do fim estava próximo.

Jules finalmente ateou fogo nos corpos e a fumaça negra com cheiro forte impregnou o ar. Eu já não podia ver suas asas. Ele sempre as recolhia quando tudo acabava pra que não corrêssemos o risco de que algum humano idiota percebesse. Aliás, tudo em minha raça me dava nojo: humanos são fracos, vulneráveis, susceptíveis. Eu odiava ser uma deles.

Os humanos são ignorantes. Eles não enxergam o que está bem no seu nariz e quando enxergam, agem como se nada tivesse diferente. Humanos não gostam de mudanças. Eles gostam de sentir a segurança da rotina e do “conhecido”. Mas eles – eu não gosto de me incluir nesse grupo lamentável – não fazem idéia da merda que os cerca. O mundo em que vivemos é apenas um campo de batalhas, um tabuleiro de carbono, onde nós somos as peças e Deus e o Diabo passam suas eternas horas vagas a brincar.

O cheiro foi suavizando e a fumaça já não era tão negra. Jules e eu voltávamos em silêncio para casa, pensando em tudo o que tinha acontecido. Eu tinha que me apressar pra essa noite, pois tinha combinado de ir ao cinema com uma conhecida e fazer compras. Eu mantinha as aparências, apesar de tudo. Eram dias difíceis e eu sabia que tudo estava prestes a piorar, eu só não fazia idéia do quanto...

...

Respirei fundo, deixando o ar frio penetrar em meus pulmões. Estava enjoado do cheiro delas. Ao meu lado, três humanas formosas dormiam profundamente, com um sorriso no rosto. Eu não gostava de ver os humanos dormindo, pois eu não podia fazê-lo. Levantei da enorme cama e apaguei a incômoda luz, não precisava dela para enxergar.

Acendi um cigarro e andei até a janela da suíte. Era uma bela vista a desse quarto; eu podia ver a cidade inteira brilhando com suas luzes fluorescentes. O clima estava diferente, eu podia sentir. Tudo estava tenso, quieto, como era todas as vezes que algo grande estava para acontecer.

Olhei meu reflexo no vidro e sorri. A vaidade é uma das minhas qualidades. O cabelo liso, loiro estava bagunçado. Os olhos verdes se sobressaiam num rosto perfeito e atraente. Era bom quando o vermelho ficava encoberto. Voltei a encarar as três mulheres destruídas sobre a cama. Tinha sido uma noite razoável. Elas eram experientes, mas não conseguiram me satisfazer. Nada conseguia me satisfazer.

Eu sentia sempre esse vazio comigo, sempre como se algo estivesse faltando. Mas não me faltava nada. Sabia que isso era só porque eu era um demônio e demônios nunca teriam paz. Por isso, nunca estávamos satisfeitos, sempre queríamos aquilo que nunca teríamos.

Invejei as três mortais. Dormiam serenas e satisfeitas com o que lhes dei, mas eu não. Por um ínfimo instante, pensei em mata-las. Isso não levaria mais que um ou dois segundos, bastava eu estalar os dedos e suas vidinhas medíocres estariam acabadas. Mas eu não era assim. A morte ou a tortura pura e simplesmente não eram de meu feitio. Eu era maior que isso. Além do mais, todos iriam perecer em pouco tempo.

Uma delas acordou e me encarou. Sorriu automaticamente. Eu sentia tudo que ela sentia, sabia tudo o que se passava em sua mente. Ela primeiro estranhou a cena, estar dividindo a cama com mais duas mulheres nuas. Depois foi se recordando do que tinha acontecido e sorriu ainda mais. E ficou assim, sorrindo bobamente em minha direção. Era sempre assim com as fêmeas, humanas ou não, eu as deixava sem palavras.

A mulher estava pensando em como poderia ter um homem como eu, tão magnífico. Segurei o riso quando ela se questionou se eu era real. Chegou a pensar que eu era um anjo, imagine.

Ela estava certa e errada em muitas coisas. Sim, eu era real. Não, eu não era um homem. Sim, eu a tinha escolhido, embora o motivo fosse simples e torpe como o sexo. E sim, eu era um anjo, bom, meio anjo, afinal, o meu pai também já foi anjo um dia, não é?

...

Eu sei que as coisas andam estranhas. Muitos de meus irmãos parecem agitados, inseguros. O Paraíso já não é um lugar tão pacato e tranquilo quanto antes. Há rumores de uma guerra. Uma guerra sem precedentes. Eu não sei bem como tudo começou, nem mesmo sei o motivo, mas eu sinto que tenho que fazer alguma coisa.

Há alguns meses, um grupo pequeno de irmãos caiu, por vontade própria. Caíram para ajudar aos humanos na batalha que viria. Eu não fui com eles, não tive coragem. Nunca estive na Terra, nunca tive contato com humanos. Mas eu os amo, mesmo assim. Eles são o objeto do amor de meu Pai e, portanto, também são o meu. Ele os fez sua imagem e semelhança e nos criou para guia-los e protege-los. Eu sinto que devo fazer isso, devo protege-los do que está por vir, mesmo estando cega sobre tudo isso.

Respirei fundo, minha decisão já tinha sido tomada. Eu sabia das consequências de ir até os humanos sem permissão. Mas diante de tamanha necessidade, como poderia eu não ajuda-los?


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