A Confusão Mora ao Lado escrita por FrannieF


Capítulo 2
Parte 2




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– Eu acho que já vou indo... – Danny avisou antes de erguer os braços para cima de sua cabeça e se espreguiçar molemente. – Tenho que terminar um projeto da faculdade ainda.

Dougie resmungou algo, o nariz enterrado em um livro ridiculamente grande onde se lia na capa, em letras azuis e de fôrma, “Cálculo II – Introdução a Logaritmos e Derivadas”. O olhar de Danny automaticamente recaiu o olhar sobre a capa do livro, enfeitada com vários números aleatórios, e deixou que uma risada divertida escapasse.

– É, meu caro, colegial é uma vadia que fode com todos nós.

– Não tire sarro só porque você está na universidade. – Dougie resmungou novamente, virando uma página do livro com tanta força desnecessária que ela quase se desprendeu. – E eu já estou no meu último ano, aliás.

Ainda sem erguer o olhar para Danny, Dougie molhou a ponta do polegar e virou mais uma página, escaneando a folha de papel com a vista cansada.

– Mas não sou eu que tenho que estudar cálculo em plena quarta-feira, às sete horas da noite.

– Obrigado pelo incentivo, campeão.

Danny riu. Depois se ergueu da cadeira de rodinhas de Dougie e se espreguiçou mais uma vez. Embora suas juntas doessem um pouco de passar tanto tempo sentado, ele se forçou a caminhar até o amigo, sentado sobre sua cama, e lhe afagar minimamente os cabelos loiros. Logo em seguida, apanhou sua mochila jogada em um canto qualquer e deixou que seus olhos caíssem novamente na figura meio encolhida de Dougie.

– Ei, você acha que ele continua lá?

– O quê? – Dougie ergueu confuso o olhar de seu livro. As suas sobrancelhas se arquearam automaticamente.

– Aquele cara... Você sabe, de hoje mais cedo. O seu novo vizinho. – Danny sacudiu as mãos em um movimento bobo e expansivo.

– Ah... – Dougie marcou a página de seu livro, o fechando e o largando sobre a cama antes de se erguer também. – Não sei. Eu não escutei mais barulho algum, então... Ele deve estar lá ainda. Ou desistiu e foi embora.

– Em todos os casos, eu vou sair pela porta dos fundos e pegar o elevador de serviços, OK? – Danny ajeitou as alças da mochila em seus ombros e sorriu minimamente, parecendo meio envergonhado por algum motivo. – Não quero confusão pro meu lado.

Socando um dos ombros do amigo, Dougie concordou rindo e caçoando de Danny. Ele sabia que não tinha nenhuma moral para fazer debochar do ruivo, no entanto, porque a única pessoa com quem ele desejaria arranjar confusão no momento seria o seu novo vizinho. Mas estando ali, na segurança da sua própria casa, ele simplesmente não conseguiu controlar a boca.

– Acuado, Jones? – Dougie saltou sobre as costas de Danny, lhe grudando pelo pescoço enquanto os dois oscilavam pelo corredor em direção à cozinha. – Não sabia que se amedrontava tão fácil assim.

– Larga mão, Doug, você vai me deixar com uma dor fodida nas costas amanhã. – Danny reclamou, suportando o peso de sua mochila e do amigo com muito esforço sobre as costas. – E pelo o que eu me recordo, quem estava quase urinando nas calças era você.

O abraço em torno do pescoço de Danny pareceu afrouxar por um momento.

– Eu não estava com medo! – bradou Dougie em um tom fino e esquisito de voz.

– É, você está convencendo muito com esse gritinho, princesa Léia. – zombou Danny, afastando os braços de Dougie de seu pescoço. – Dê um beijo na sua mãe por mim.

E, assim, Danny desapareceu pela porta dos fundos enquanto Dougie lhe gritava os xingamentos mais chulos de todo o seu vocabulário que conseguia se lembrar no momento. O loiro ainda conseguiu escutar a gargalhada alta e escandalosa do amigo antes de tudo à sua volta cair em um silêncio opressor.

Para Dougie, essa era sempre a pior parte de seu dia. Ter que esquentar seu jantar e comê-lo sozinho, sem a companhia de ninguém, era algo que parecia sempre tomar muito mais do que meros 15 minutos diários. Tomar banho e ir para cama, esperando acordado (na maioria das vezes, quando conseguia evitar ao máximo o sono) até ouvir sua mãe chegar do trabalho, também parecia tomar muito mais tempo do que algumas poucas horas.

A sua rotina não mudou. Quietamente, ele pôs a sua janta para esquentar e esperou, em silêncio, o micro-ondas apitar. O macarrão meio grudado e sem sabor caiu esquisito no seu estômago, mas Dougie não reclamou uma vez sequer. Ainda com uma ânsia contínua de vômito, ele lavou toda a sua louça e a guardou em seu devido lugar, apagando as luzes da cozinha enquanto se arrastava para a sala.

Logo a voz de Danny invadiu sua mente. Dougie relembrou a conversa de alguns minutos atrás com o amigo e imaginou – simplesmente imaginou – se seu vizinho ainda estava encolhido na sola da porta de seu apartamento. A curiosidade, obviamente, o venceu.

Dougie se pendurou sobre a porta da frente de seu apartamento e espiou pelo olho mágico. Havia, ali, uma silhueta um pouco distorcida de alguém sentado no chão, amontoado em um canto. Aquela imagem deu a Dougie uma sensação de um cachorro sarnento e abandonado, meio morto, meio chutado, completamente ignorado.

Em conflito com a sua bondade e orgulho – afinal, o cidadão em questão parecia não ter nenhuma educação e ainda havia chamado Dougie de “moça” – o loiro se viu no meio de um impasse. Ajudar ou não ajudar?

O seu lado orgulhoso logo acabou cedendo.

Sem que ele ao menos percebesse, Dougie se viu parado na sola da porta de seu apartamento, os olhos vidrados na figura amontoada à sua frente. Ele carregava um cobertor em uma das mãos e um copo de leite na outra, incerto, sem saber exatamente se aquilo era o correto a se fazer. Sem ruído algum, no entanto, ele se aproximou do desconhecido nas pontas dos pés, se amaldiçoando em mente por não ter calçado seus chinelos antes de sair do apartamento. Dougie ainda vestia suas roupas do colégio e, se ele sentia algum frio vestido daquela maneira – shorts e meias, camisa, jaqueta e gravata –, o outro provavelmente estaria congelando dentro daquele moletom surrado e as calças rasgadas.

Hesitante, o garoto se agachou ao lado da criaturinha encolhida e encostou o copo de leite no chão, nem muito perto nem muito longe do desconhecido, por precaução. Depois desdobrou o cobertor nos braços e o jogou por cima de seu vizinho, quietamente, em movimentos vacilantes, já que Dougie definitivamente não queria atrapalhar o sono do outro. Ele estava prestes a se erguer e correr para dentro de casa quando algo simplesmente o parou.

Os seus olhos automaticamente recaíram sobre as suas mãos e, ali, ele viu dedos que não eram seus. Dedos longos e meio tortos que aos poucos se fecharam em torno de um dos seus pulsos.

Por instinto, Dougie quis puxar seu braço para trás, mas o esforço usado não se comparou nem minimamente com a força do outro. O garoto tentou recuar sua mão uma segunda e terceira vez, mas os dedos em torno de seu pulso só pareceram corresponder com mais força ainda. E então ele gemeu em dor, amedrontado.

Como seu vizinho havia acordado tão rápido e quieto que nem ao menos Dougie percebeu, ele não fazia ideia. A única coisa que ele queria era poder voltar no tempo, talvez, e convencer o Dougie no passado a não fazer nenhuma ideia estúpida como tentar ajudar seu vizinho, por exemplo.

– O que você pensa que está fazendo? – murmurou o estranho naquele mesmo tom rouco e intimidador de voz, fazendo os pêlos da nuca de Dougie se eriçarem.

Ele continuava encolhido em um canto – agora debaixo da coberta de Dougie –, os joelhos flexionados contra seu torso e os pés virados para dentro, de uma maneira quase que infantil. Apesar da sua linguagem corporal incerta, o seu olhar e tom de voz refletiam exatamente o contrário.

– Me d-desculpa. – fora a resposta patética do garoto, gaguejando e relutando contra o apertão em torno do seu pulso. – Me s-solta.

– Dougie, não é mesmo? O seu nome. Mora no apartamento ao lado e aparentemente estuda no colégio Ethelburga. Os seus dedos estão vermelhos e cheios de calos, o que me leva a pensar que você está terminando o colegial ou é um aluno muito estudioso... – o rosto encovado do desconhecido se entortou para o lado e, em seus lábios finos e rachados, se abriu um sorriso macabro. – Filho único, eu já vi sua mãe entrar e sair do apartamento algumas vezes. Eu nunca vi outras pessoas, no entanto. Talvez seu pai te abandonou? Ou morreu, na pior das hipóteses?

Dougie quis gritar. Os seus olhos ardiam enquanto ele observava em choque o estranho falar sobre sua vida como se aquilo fosse algo corriqueiro. A sua garganta havia se fechado e logo ele começou a se sentir sufocado, atordoado, confuso demais.

– Você deve ser o típico “filho perfeito”. Que tira boas notas, que é educado e amigo de todos... Isso deve ser um porre. – os dedos em torno do pulso de Dougie se apertaram consideravelmente.

O garoto, revoltado, puxou o braço para trás mais uma vez. Em vão. O estranho o puxou de volta para frente, grosseiro, cravando seus dedos contra a pele agora já rosada do loiro. A sua outra mão, livre, subiu simplesmente até o rosto de Dougie, o fazendo parar estático ao chão, ainda agachado em frente do desconhecido.

– Com esse seu rosto de criança, eu diria que você tem no máximo 14 anos. Mas você é mais velho, não é? – continuou o outro, os dedos longos e tortos rolando pelas bochechas coradas de Dougie, vez ou outra afastando uma mecha loira de cabelo para trás. – 16 ou 17 anos, talvez?

– Me d-deixa ir... – Dougie murmurou acuado antes de virar o rosto para o lado e fechar os olhos, enjoado, tentando se esquivar dos dedos do outro.

– E você provavelmente nunca teve uma namorada. Com essa reação patética, acho que nem ao menos chegou a beijar alguém. Eu estou certo, Dougie? Ou talvez... Talvez você não goste de garotas? Oh, será que eu acertei dessa vez? – o estranho riu. Depois desceu os dedos até o queixo de Dougie e, sem muito sucesso, o obrigou a girar o rosto de volta. – Você gosta de garotos, Dougie? O ruivo de hoje mais cedo era seu namorado? Vocês se fodem feito dois cachorros no cio, é isso?

Insuportável. As palavras ordinárias, a voz rouca, o cheio enjoativo de perfume misturado ao de alguma droga... Aquilo tudo era insuportável.

– Cala a boca! – Dougie se viu rosnando. – Cala essa maldita boca, seu drogado de merda! Você não sabe nada sobre mim!

E, mais uma vez, tudo pareceu congelar milagrosamente. Não havia mais uma pressão em torno de seu pulso. Não havia mais as palavras, o cheiro enjoativo, o sorriso sarcástico, a voz, as provocações.

Dougie se afastou o máximo que pôde de seu vizinho, se arrastando pateticamente pelo chão com a ajuda de seus cotovelos. No processo de se afastar e se erguer, o copo de leite talvez tenha tombado com um tilintar mínimo, mas ele nunca virou o rosto para trás para se constar disso. Ele só queria ir embora. Sumir. Desaparecer.

Em uma rapidez impressionante, o garoto correu de volta para seu apartamento, desajeitado, se embolando nos próprios pés e quase tropeçando, no desespero de se afastar do outro. Com as mãos trêmulas, trancou a porta da frente depois de parar uma ou duas vezes para inspirar pesado, em um ato bobo para tentar se acalmar. Aquilo não ajudou em muita coisa.

A bile do seu fígado subiu para a sua garganta subitamente. Ele correu até o banheiro mais próximo e, choramingando com os braços em torno do vaso sanitário, eviscerou todo o seu jantar em um único jato de vômito. Os seus olhos ainda ardiam, os seus joelhos agora doíam pelo baque contra o piso frio do banheiro e a sua garganta estava áspera e dolorida. O gosto de vômito na boca ainda lhe torturava infernalmente.

A sua única vontade no momento era a de enterrar o rosto dentro do vaso sanitário e dar descarga até morrer engasgado. Uma ideia considerável, se não pelo fato de ser um tanto quanto nojenta.

Com um novo choramingo, Dougie se ergueu do chão e lavou a boca com as costas das mãos, trêmulo. Ele pôde ouvir seu estômago roncar – por falta de comida ou enjoo, ele não conseguiria saber –, mas decidiu simplesmente ignorá-lo. Se arrastando de volta para seu quarto, Dougie deixou que suas pernas cedessem, fazendo com que ele caísse estatelado sobre sua cama. O travesseiro serviu como isolação acústica, cobrindo sua cabeça. As cobertas, como meio de proteção.

E então ele simplesmente se viu quieto, imóvel, se negando a pensar em qualquer coisa que fora obrigado a escutar mais cedo por puro e simples medo de estarem certo. Estar, de qualquer maneira, porque o bastardo do seu vizinho era a única pessoa que já havia falado da vida de Dougie de uma maneira tão crua e tão correta ao mesmo tempo. Não que Dougie fosse admitir, de qualquer forma.

Com um grunhido irritado, o travesseiro afundou um pouco mais sobre a sua cabeça e, aos poucos, em meio aos seus pensamentos turbulentos, Dougie se entregou a um sono eminente.

Feliz ou infelizmente, o raro momento de paz pareceu acabar cedo demais. Com crash’s e bam’s ensurdecedores, Dougie se viu rolar para o lado, assustado, e cair com um grito sonolento ao chão, amortecendo a queda com os cotovelos. Ele, descabelado e rosto vermelho marcado na testa onde um dos seus braços havia servido de apoio para sua cabeça, lançou à cama ao seu lado o seu olhar mais mortífero e então escaneou com o olhar ainda grogue demais à procura da fonte de tanto barulho desnecessário. No meio do processo, a sua visão alcançou o despertador sobre o criado-mudo e ele precisou estreitar os olhos para atualmente conseguir ler as horas.

11:00 PM. O que obviamente denunciava que ainda era noite e, não, o escarcéu inteiro não havia provindo do seu despertador. Na realidade, a pequena comoção parecia não vir do seu apartamento, mas sim de algum lugar muito próximo a ele. Ao alcançar esse pensamento, Dougie demorou menos de cinco segundos para escutar uma voz já bem conhecida gritar algo abafado, acusatório, podendo distinguir apenas seis palavras que não eram palavrões esdrúxulos: “eu nunca mais volto para cá”.

Numa rapidez impressionante, os seus pés subitamente pareceram ter vida própria e em segundos Dougie se viu novamente pendurado à porta do seu apartamento, os olhos espremidos para tentar enxergar algo, qualquer coisa, através do olho-mágico.

– Nem pense, Harold! – uma voz feminina impôs. – E é melhor você me respeitar!

– Que piada! – Dougie pôde ouvir claramente a mesma voz rouca, agora ligeiramente alterada, ressoar pelo andar inteiro do prédio. Os pêlos dos seus braços automaticamente se eriçaram. – Eu não sou obrigado a viver nesse inferno! Principalmente, não com você!

– É mesmo? E o que você pensa em fazer? Sair sem rumo e vadiar da mesma maneira que faz há quase um ano? É isso? – a voz feminina subiu uma oitava acima do normal. Dougie estremeceu involuntariamente. – Pois fique sabendo que você ainda é meu filho e, dessa maneira, vai continuar a me obedecer até tomar alguma vergonha nessa cara!

Se a mente de Dougie já estava confusa demais para os seus próprios pensamentos, após toda aquela gritaria ela definitivamente não havia melhorado. Ele considerou por um instante deixar os dois se resolverem em paz (ironicamente, é claro), mas a sua curiosidade, por algum motivo, ainda estava falando mais alto. Exatamente por esse motivo que ele continuou pendurado à sua porta – ele já havia aprendido que, perto de seu vizinho, o melhor era manter uma distância ao mínimo considerável –, esperando conseguir enxergar algo que pudesse esclarecer um pouco os seus pensamentos nublados.

Subitamente, a porta do apartamento ao lado se escancarou aberta com um bem audível “bam” e Dougie esperou por algo que não sabia o que era para esperar. Uma mão de dedos tortos e compridos demais se mantinha agarrada à maçaneta, mas o seu dono não pareceu se mover.

– Talvez quando você tomar vergonha na cara, eu possa seguir o mesmo exemplo. Pelo menos por uma vez na vida!

A única resposta que Dougie escutou da mulher que obviamente era mãe de Harold (“Harold” aparentemente era o nome do seu vizinho) fora um ecoar típico e estridente de pele contra pele. Fora então que Harold apareceu diante dos seus olhos, levemente corado enquanto tentava esconder uma das bochechas com os dedos trêmulos, emanando a mais pura e completa raiva. Dougie não conseguiu não estremecer mais uma vez, simplesmente porque ele podia sentir toda a raiva do outro perpassar pelo seu corpo.

– Quer saber? Foda-se, foda-se! Eu não preciso de você! – seu vizinho acusou entre dentes, o rosto praticamente desfigurado de raiva e frustração e dor e tudo ao mesmo tempo.

Dougie assistiu quietamente a Harold chutar a porta de seu apartamento e caminhar destinado pelo corredor do 13° andar, sem olhar para trás uma vez sequer. Ele ainda vestia as mesmas roupas de anteriormente e, se possível, parecia ainda mais sujo e simplesmente errado. Tudo nele era errado.

Uma pena Dougie ter essa sensação de que, apesar de errado, Harold era tão igualmente certo. No quê, ele não fazia a mínima ideia. 

TBC.


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