Eu me recuperei totalmente dos ferimentos da noite anterior e me espantei com a velocidade de cura de meu corpo. É, eu não esperava falar tanto de mim pra Gabriel, mas eu senti uma coisa estranha enquanto estávamos deitados no escuro e reparei, depois de um tempo, que o que me incomodava era justamente o silêncio. Ele tinha me ajudado a um nível que eu jamais pensei que faria e julguei que contar um pouco sobre mim fosse uma forma de retribuir.

Devia ser o sangue dele, ainda fluindo em minhas veias, que estava me deixando tola e sentimental, vai saber. O fato é que ao acordar na noite seguinte, eu sabia que não era mais a mesma, de novo.

Eu estava me encarando, olhando pro reflexo estranho no espelho – e sim, vampiros possuem reflexo. Foi logo após descobrir no que tinha me tornado, que eu resolvi mudar radicalmente. Fazia dez longos anos que olhava para o vermelho vivo em meus cabelos que agora, estavam castanho- escuros mais uma vez. Resolvi seguir o conselho de Gabriel e comprei outro tubo de tinta. Realmente ser ruiva tinha quase me custado a vida – não-vida – ontem.

Gabriel havia saído para resolver qualquer coisa durante o fim do dia e retornou por volta das nove. Ele parou na porta do quarto quando me viu.

- E aí? – perguntei encarando o azul profundo de seus olhos – Acha que me reconheceria na rua?

Ele entrou e fechou a porta. Secretamente, eu estava ansiosa pra saber o que ele tinha achado do meu novo cabelo castanho.

- Reconheceria você em qualquer lugar. – ele disse – Mas acho que agora fica mais difícil para os vampiros que nunca te viram.

Eu virei e encarei a morena no reflexo do vidro da janela. Aquela era eu, eu de verdade, antes de tudo acontecer. Foi por isso que mudei, pra não ter que me olhar sempre no espelho e lembrar de como era, do que fui, do que perdi. De um jeito bizarro e estranho pra mim, eu estava infeliz ao me ver daquele jeito.

Vi quando ele se aproximou por trás.

- Eu sei que deve te trazer recordações, mas é mais seguro assim.

- Eu sei. – falei baixo, encarando-o através do vidro.

Virei para encará-lo. Ele estava lindo, como sempre. Vestia uma camiseta preta e calças jeans escuras, mas era como se a roupa fosse feita sob medida e se ajustasse perfeitamente ao seu corpo atlético. Meu olhar desviou para as marcas em seu braço direito. Eram tão perfeitas.

Tive uma vontade súbita de tocá-las. Dei um passo lento na direção do Anjo apenas para mostra-lo que não faria nada de surpresa, mas vi os músculos dele se tencionarem levemente. Cheguei ainda mais perto e meus olhos estavam completamente presos aos riscos negros em seu braço. De longe parecia como um tribal bastante trabalhado e perfeito, mas de perto, muito perto, consegui ver que não eram desenhos pintados totalmente, mas eram letras minúsculas e que preenchiam as formas.

- Nossa... – eu sussurrei. Minha mão automaticamente estendeu para frente, tentando tocar as maravilhosas micro-escrituras em sua pele. Gabriel, no entanto, foi mais rápido, e parou minha mão no ar segurando meu pulso.

- Temos que ir.

Encaramos-nos por um tempo assim, bem de perto. Eu não estava gostando daquilo que sentia, era estranho e quente. Eu desejava estar perto dele, tocando-o, sentindo-o, mas ao mesmo tempo que meu corpo o desejava, minha mente o repelia. Era uma confusão total e naquele momento eu soube que além de vampira, eu estava ficando louca. Quem em seu juízo perfeito estaria tão atraído por seu inimigo mais mortal?

- É claro. – respondi, quebrando o contato visual.

- Estamos a menos de duas horas do início dos domínios de Julius. Anariel estará lá, mas será bem mais difícil pra nós, nos escondermos.

Caminhei de volta ao espelho do banheiro e sacudi os cabelos com a mão, dando um volume sexy a eles. Voltei a encarar o Anjo.

- Quando quiser.

Saímos do hotel e andamos alguns quarteirões a procura de um local isolado para alçar voo. Ele não queria usar ônibus, na certa estariam vigiando aeroportos, rodoviárias e terminais de táxi da cidade e a melhor opção que tínhamos ainda era via asas. Bom, não que eu não gostasse, mas acho que nunca ficaria confortável fora do chão.

Ele me passou a nova mochila e ajeitei nos ombros antes de abraça-lo. Pra não perder o costume, gemi baixinho quando os braços dele me envolveram.

Menos de uma hora e meia depois, estávamos pousando num beco bastante escuro, ao lado de um pensão barata – novamente.

Entramos mais que depressa no lugar.

- Como você sabia onde descer? Conhece o lugar? – perguntei enquanto subíamos as escadas para o segundo andar de quartos fedorentos.

- Eu pesquisei a cidade entes de virmos.

- Pesquisou?

- Já ouviu falar de internet? – ele perguntou enquanto entrávamos naquela espelunca que o dono chamava de quarto.

Sorri irônica antes de responder:

- Não sabia que tinha banda larga no Paraíso, me desculpe.

Ele devolveu a ironia retirando um iphone do bolso de trás da calça jeans e sacudindo em minha direção.

- Iphone e internet, eu quero que conheçam Michaela.

- Iphone e internet, eu quero que conheçam meu dedo do meio. – respondi levantando a mão e fazendo o gesto característico.

Ele sacudiu a cabeça e depositou a mochila que deixei numa cadeira em cima da cama, que mais parecia um pulgueiro.

- Você só escolhe lugares horríveis pra passar o dia, já te disseram isso? – falei enquanto examinava o pequeno vestíbulo.

Era um lugar realmente imundo, repleto de poeira e móveis velhos. Não tinha televisão e o rádio estava enferrujado sobre a mesinha de cabeceira. O chuveiro se resumia a um cano na parede e a lata de lixo nem tinha sido esvaziada, havia papéis sujos e um monte de camisinha usada.

- Eu não sentaria na cama se fosse você. – eu falei alto ainda dentro do banheiro. Era tudo muito nojento.

Ele estava vestindo um casaco quando voltei pro quarto. Era preto e tinha um capuz com o qual cobriu a cabeça. Pôs o iphone dentro do bolso e me olhou.

- Vou dar uma volta, ver se encontro pistas de Anariel. volto ao meio dia.

Gabriel deu a volta, mas não alcançou a maçaneta, eu cheguei antes dele.

- E você acha que eu vou ficar aqui nesse lixo enquanto você vai pra rua? Tá, bom.

- Você não vai comigo. – ele disse.

Eu mostrei os dentes soltando um pequeno rugido.

- Ninguém manda em mim, Anjo. Eu vou com você e isso não é negociável.

Ele me avaliou. Eu sabia que estava bem, apesar de estar com a mesma roupa da noite anterior e ter retirado as meias que haviam rasgado pela surra.

- O que, não gosta do que vê? – perguntei enquanto os olhões dele passeavam por mim.

- Não sei qual será a reação de Anariel ao ver você, por isso não queria que fosse.

- Bom, vamos descobrir então. – eu disse definitiva.

Saímos e eu logo achei outra loja de departamentos para comprar um casaco e um gorro. O frio estava aumentando e era ótimo para nosso disfarce. Ele andava ao meu lado encapuzado e o gorro e as madeixas castanhas me tornavam difícil de identificar.

Ainda era meio da madrugada e teríamos algumas horas para rastrear o tal Anariel. Nós andávamos camuflados entre as pessoas Era madrugada de sábado e as ruas estavam cheias apesar da hora. As boates fervilhavam e o número de vampiros também era alto. Quando passamos na porta de um bar, ouvi três machos conversando e parei pra ouvir. Gabriel me acompanhou.

- Ela simplesmente sumiu? – um deles perguntou.

- Sim. – o outro deu um gole na cerveja antes de responder – O corpo do cara foi encontrado fatiado no beco, mas a ruiva tinha sumido.

- Então o Anjo devia estar lá com ela, a fêmea não podia ter dado cabo do macho daquele jeito, ainda mais que eu soube que ele já tinha dado umas boas porradas nela.

- Eu não sei... – o terceiro falou – não é possível que estejam agindo juntos. Ele já a teria matado, de qualquer forma. Eu acho que ela deve ter se livrado do macho sozinha, podia estar armada, sei lá, e depois fatiou o cara pra pensarmos que está com a Ser Alado.

Os outros dois pareciam divididos e nenhum deles estava certo de nada. Eu andei pra mais perto, me infiltrando entre os frequentadores do bar que dançavam, bebiam e gritavam. Senti Gabriel me seguir de perto, ele também tinha ouvido a conversa dos vampiros.

Um dos machos que conversavam, olhou por cima do ombro e seu olhar cruzou com o meu. Desviei na hora, mas vi que o outro ficou intrigado.

- Oi princesa, está sozinha?

Olhei pro lado e um humano enorme estava sorrindo pra mim, me convidando pra dançar. De relance, vi que o vampiro macho levantou da mesa e virou o corpo em minha direção.

- Aceita uma bebida, minha linda? – o humano tentou de novo.

- Não, ela não aceita.

Foi a voz perfeita de grave de Gabriel que respondeu. O Anjo estava de pé ao meu lado e, apesar de ser menor que o humano, impôs respeito. Ele passou um braço ao redor do meu ombro e eu posso jurar que me senti mais quente por dentro.

O humano se rendeu e saiu de fininho.

- Temos que ir. – Gabriel falou ao meu ombro e eu vi que seu olhar estava na direção dos machos.

Eu o acompanhei e sabia que aos olhos dos outros, éramos apenas mais um casal – se eles soubessem... Apressamos o passo até dobrar a esquina e sumir da vista dos vampiros. Andamos mais duas esquinas até ter certeza de que não fomos seguidos.

Ele me soltou assim que estávamos sozinhos. Eu sabia que ele faia isso, mas foi rápido demais, brusco de mais. Parei de andar porque estava sentindo raiva. Bom, raiva não, era um sentimento diferente, intenso, era como... rejeição.

- Algum problema? – ele perguntou quando viu que eu parei.

Respirei fundo e fui até ele.

- Sabe, acho que os machos têm razão, é uma loucura total eu estar andando com você. – falei.

Ele semicerrou os olhos e ficou parado, sem falar nada. Ouvi o vento balançar as árvores que estavam perto. A nossa vota, apenas o vazio. Gabriel parecia tenso, concentrado. Eu percebi sua tensão e meu corpo respondeu imediatamente, ficando em alerta.

- O que foi? – perguntei.

- Anariel.

Senti apenas a movimentação. Gabriel passou por mim e vi o reflexo prateado de sua espada. Ouvi o barulho do metal contra metal, quando a espada de Gabriel chocou-se com outra que vinha em minha direção.