Hetaoni: The Very Last Moment escrita por Kyra_Spring


Capítulo 1
I - Japão




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/134653/chapter/1

            Quando demos conta, o monstro já estava ali.

            Já havíamos percebido que não tínhamos condições de lutar contra aquilo. Fracos e confusos, só nos restava mesmo fugir e implorar por nossas vidas a qualquer deus disposto a nos ouvir. Que piada, dez das maiores nações do passado ou do presente fugindo daquela forma. Era uma situação tão absurda que nem parecia real.

            Mas era. A dor que eu sentia me dizia isso.

            Eu não conseguia correr rápido como os outros. Eles tentavam me esperar, me incentivar, e ao longe eu podia ouvir os “droga, agüente só mais um pouco” do Inglaterra e os “estamos quase lá, aru” do China. Mas eu já não acreditava tanto nisso. Quase lá? Quase lá aonde? Estávamos indo a lugar nenhum, e todos ali sabiam disso.

            Quando chegamos à sala do piano, minhas pernas pararam de obedecer e me lançaram ao chão, de joelhos. Minha cabeça girava. Senti o sangue empapar as ataduras em minhas costas. Perdendo tanto sangue assim, e correndo tanto... é claro que cedo ou tarde eu iria acabar desmaiando. E, quando isso acontecesse, eu só iria atrasar os outros.

            Foi nessa hora que ouvi aquele som. Era ele se aproximando.

            Nessa hora, tudo ficou muito claro para mim.

            Eu não conseguiria sair dali, conseguiria?

            E também não ouvia mais os passos dos outros, mas sabia que eles não tinham sido atacados. De repente, me pareceu que eles nunca estiveram ali, a princípio. Talvez tivéssemos nos separado muito antes, e eu, num lampejo de inconsciência, busquei as vozes deles sem querer, como se isso pudesse me salvar.

            No meio daquela insanidade, eles talvez nem se lembrassem mais de mim.

- JAPÃO! – outra voz? Eu estava tonto e letárgico, e não conseguia raciocinar direito. Mas eu conhecia aquela voz que se sobrepunha ao som do monstro. Forcei minha visão a voltar a foco, e me deparei com alguém.

            Itália. Pálido, olhos turvos de lágrimas, uma expressão de pânico no rosto. Mas vivo, e aparentemente ileso.

- Você está bem...? – aquilo foi meio uma pergunta, e meio uma afirmação – De onde você veio?

- Eu não sei onde os outros estão – a voz dele estava reduzida a um murmúrio trêmulo e desesperado – Mas eu vou salvar você! Eu vou...

            O som ia ficando mais alto. Ele estava se aproximando.

- Itália – eu o cortei, tentando fazer minha voz soar tão decidida quanto fosse possível – Pode me ajudar a ficar de pé?

- N-não! – ele sacudia a cabeça, parecendo-se de repente com uma criança perdida – V-você tem que descansar, e...

- Por favor – deixei minha voz mais firme – Acho que podemos segurá-lo mais um pouco. E eu já estou melhor, só precisava descansar um pouco.

            Eu quis tanto que você fosse tão inocente quanto parecia... quis tanto que você acreditasse naquela última mentira...

            Que bom. Você acreditou. Murmurando um “está bem” quase inaudível, Itália me fez apoiar em seu ombro e ficar de pé. Minhas pernas ameaçaram falhar outra vez, mas eu me apoiei na parede. Ele não me encontraria caído e inútil, disso eu me certificaria. Desembainhei minha katana, e ela pareceu muito mais pesada que o normal. Ela estava toda riscada e manchada de sangue...

- Agora... – murmurei – Pode vir...

            Como se atendesse ao meu chamado, a criatura surgiu arrebentando a porta. Eu só precisava afastá-lo por tempo suficiente para que Itália pudesse correr para longe dali. Eu não conseguiria avançar mais de qualquer forma, mas ele conseguiria. E, talvez assim, ajudaria os outros a escapar dali, onde quer que estivessem.

            Eu o havia visto morrer, uma vez. E jurei que isso nunca mais aconteceria.

- Itália! – minha voz saiu milagrosamente mais forte do que eu esperava – Quando eu der o sinal, você corre e pede ajuda. Você é bom em correr, então logo vai achar alguém para trazer aqui.

            Ele hesitou por um instante, antes de assentir com a cabeça.

            Ouvi meu coração bater disparado. E me perguntei até quando ele bateria.

            A tensão e a adrenalina da batalha iminente, porém, entorpeciam minha dor e meu cansaço. Isso era bom, assim eu não teria que me preocupar com isso enquanto estivesse lutando. Num instante que pareceu eterno, olhei nos olhos sedentos de sangue do monstro. Eu não tive medo, como pensei que teria. Pelo contrário. Em algum lugar daquela casa infernal, os outros contavam com o fato de que Itália voltaria para eles.

            E então...

- AGORA! - berrei e, sem ver a direção que Itália havia tomado, parti para cima do monstro. Meus movimentos eram lentos e descoordenados, mas mesmo assim eu concentrava cada faísca de força em feri-lo o máximo que eu pudesse. Nem se eu estivesse na minha melhor forma, conseguiria fazer muito contra aquela criatura.

            Quanto tempo aquilo durou? Dez, quinze minutos? Acho que não chegou a tanto.

            Porque chegou o momento em que ele agarrou a minha katana e a quebrou como se fosse u graveto. Nesse momento, toda a dor e a exaustão me atingiram como um raio. Cambaleei, mal conseguindo me manter em pé. Mais uma vez o encarei, ele parecia me analisar.

            E um segundo depois, senti meu estômago ser rasgado por uma enorme garra.

            Foi como se meu corpo inteiro estivesse se partindo ao meio. A dor era mais enlouquecedora do que todas as outras somadas e multiplicadas por dez. O ar me faltou, senti uma rajada de sangue voar da minha boca. E, quando ele me soltou, meu corpo não me obedecia mais. Apenas deslizei, com as costas apoiadas no piano, em direção ao chão.

            Geralmente, a morte para alguém atingido no estômago é mais demorada do que em outros órgãos. Quinze minutos a meia hora, em média. No meu caso, seria menos por causa da perda de sangue. Mas a dor, também, era muito maior, tão intensa que me fazia lamentar o fato de ele não ter acertado o meu coração com aquela violência.

            Mas, naquele momento, também agradeci por aqueles minutos a mais.

            Se eu usasse mais energia, por menos que fosse, só desmaiaria mais rápido. Mas o que realmente eu tinha a perder, ali? Desenrolei o pergaminho, torcendo para que as manchas de sangue não quebrassem o encantamento dele. Encarei o monstro, uma última vez. Pelo menos um certo estrago eu tinha feito...

            Então, murmurei o encantamento. E um raio afastou de vez a criatura, que sumiu.

            Agora, sim, eu estava completamente esgotado. Mas também aliviado.

            Me encostei no piano, sentindo dores intensas em todos os pontos possíveis. Eu quase não conseguia mais me mexer. Quanto tempo mais eu tinha...? Já sentia uma acolhedora letargia tomar conta do meu corpo, pouco a pouco me tornando inconsciente da dor. Minhas pálpebras pesavam toneladas...

            E eu só queria dormir. Imaginava como seria estar no meu futon, naquele momento. Logo o inverno chegaria, e seria a época de colocar o kotatsu para funcionar. Esse ano eu deveria comprar um novo, o antigo já não funcionava bem desde o ano passado...

            Acabei sorrindo, sem querer. Eram coisas tão pequenas, e tão distantes...

            Eu não queria... estar sozinho naquele momento.

            Eu não queria morrer. Essa era a verdade. Não por medo, não porque achasse que não haveria nada me esperando, do outro lado. Mas porque... porque eu sentia que ainda havia algo mais que eu precisasse fazer.

            Não. Sem hipocrisia. Eu tinha medo, sim. Medo de morrer sozinho e esquecido, medo de não ter ninguém que me ajudasse a seguir em frente. E eu já não queria mais ficar sozinho. Mesmo que eu não entendesse aquele mundo, mesmo que muita coisa nele me irritasse... eu não estava pronto para deixá-lo para trás, ainda.

            Então, ouvi algo. Não, não era possível. Seriam... passos?

            Pisquei um pouco, tentando reconhecer o vulto que se aproximava de mim. O cheiro de sangue fazia minha cabeça girar. Mas eu sabia quem estava ali. No momento, era a pessoa que eu mais queria que estivesse longe dali. Itália. Aquele idiota. Que, naquele momento, pousava as mãos dele sobre a minha barriga destruída, numa tentativa vã de conter a hemorragia. A pressão adicional fez uma onda adicional de dor correr pelo meu corpo, mas...

            ...mesmo assim...

            ...as mãos dele eram quentes... e gentis...

- M-me perdoe... - droga... eu queria que a minha voz tivesse saído um pouco mais forte, assim talvez o meio-sorriso do meu rosto parecesse menos falso - Acho que... é o fim para mim...

- N-NÃO! - Itália gaguejou, as lágrimas sufocando sua voz - Não diga isso! Espere um minuto! Eu irei fazer bandagens e parar o sangramento!

            Ele era realmente uma figura única... e eu admirava isso.

            Mas precisava me certificar de que ele chegaria aos outros e ficaria bem.

- Não - tentei empurrá-lo, manchando a casaca azul dele com uma grande marca vermelho-vivo - Isso é inútil... não há tempo... só me deixe e se junte aos outros...

            Respirar estava ficando mais e mais difícil. Eu só queria... só queria dormir...

            E ele continuava me encarando, um olhar desesperado e vazio.

- Felizmente eles esqueceram... que eu vim para cá... - a última parte saiu como um sussurro, e dizer aquilo foi doloroso em mais de uma forma possível - Onegai, me deixe.

- É claro que não posso fazer isso! - as lágrimas dele, mais e mais intensas, começavam a molhar meu ombro - Eu... eu vou fazer bandagens agora mesmo! Por favor...

- Itália - não, aquilo tinha que parar. Coloquei a mão sobre o peito dele, tentando impedi-lo uma vez mais. Ele murmurou um “o quê?” frágil, enquanto eu continuei - Você não tem mais sua bandeira branca, tem? Você já a usou toda para fazer ataduras para todos os outros...

            “Por favor, entenda”, eram as palavras que eu queria dizer. “Você não precisa fazer mais nada por mim. Você já... fez o bastante...”

            Você estava ali, não estava? Mesmo depois de eu te dizer para correr...

            E isso significava que eu não precisaria partir sozinho. Que bom...

- O-olhe! - eu podia ver nos olhos dele que ele já sabia que não poderia fazer mais nada por mim, mas mesmo assim sacudia a cabeça e continuava interpretando o tolo otimista de sempre. Será que ele fazia aquilo para me proteger, para que eu me sentisse melhor? - Eu farei qualquer coisa! Qualquer coisa! Só aguente um pouco mais!

            Sorri outra vez. O rosto dele desaparecia por trás de uma névoa espessa.

- Você é muito gentil, Itália - eu mal podia ouvir a minha própria voz - Mas eu sei que está mentindo... mesmo que... minha visão esteja ficando turva...

            Meus olhos já não queriam mais ficar abertos. E eu nem sentia mais dor.

            Não era tão ruim assim, afinal de contas. Pelo contrário, era até... acolhedor.

- Japão... - ouvi-lo também estava ficando difícil - Japão... por favor...

- Isso é tão... frustrante...

            “Você não merecia passar por isso, Ita-chan. Não você.”

- ...eu queria tanto...

            “Prometa que vai sair daqui. E que vai viver bem.”

- ...que tivéssemos saído...

            “Espero que possa me perdoar por ser tão fraco assim.”

- ..juntos.

            E, antes que meus olhos se fechassem para sempre, vi o rosto dele uma última vez.

            Eu não estava sozinho. Havia um amigo ao meu lado.

            E eu queria ter sorrido só mais uma vez, e dito que estava tudo bem, mas não consegui. Eu queria ter pedido desculpas. Eu queria ter dito tanta coisa...

            Mas, no fim, quando tudo desapareceu em névoa e silêncio, só restou mesmo uma última coisa a ser dita.

            Obrigado, Itália. Por tudo.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Hetaoni: The Very Last Moment" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.