Saga Sillentya: Espelho do Destino escrita por Sunshine girl


Capítulo 19
XVIII - Ritual


Notas iniciais do capítulo

Enfim trazendo o penúltimo capítulo para vocês!

E uma surpresinha no final!

Se tiver qualquer errinho tosco (e sei que provavelmente terá), mais tarde retorno para revisar e corrigir...

Boa leitura!!!



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Capítulo XVIII – Ritual

“Não quero deixar isso me abater desta vez

Afogar o meu desejo de voar

Aqui na escuridão eu conheço a mim mesma

Não posso me libertar até que o deixe ir, deixe-me ir!”.

“Querido, eu te perdôo por tudo,

Qualquer coisa é melhor do que ficar sozinha

E no final acho que eu tinha que cair

Sempre encontro o meu lugar entre as cinzas”.

(Evanescence – Lithium)

- Mamãe? – chamei-a mais uma vez, interrompendo-a em sua tarefa, cruzando os tornozelos embaixo da mesa.

- Sim, meu amor? – respondeu-me ela com um sorriso jubiloso nos lábios, tombando o semblante belo para mim.

Seus olhos negros cintilavam como a mais bela noite estrelada. Sempre quis que meus olhos brilhassem como os dela.

Mordi o lábio inferior, cruzando meus dedos sobre meu dever de casa incompleto. E hesitei...

Minha mãe jamais gostava quando iniciava aquela série de perguntas. “Não é assunto para crianças remoerem”, dizia-me sempre ela, mas...

- Mamãe, o papai... o papai gostava de mim?

Minha mãe interrompeu-se em sua tarefa doméstica, visivelmente preocupada comigo. Nada disse enquanto secava as mãos no pano de prato, vinha até minha figura receosa, e então se ajoelhava diante de mim, a mão ternamente pousada sobre meu ombro.

- Por que está perguntando isso, meu bem?

Tive receio de encontrar seus olhos, então fitei minhas mãos educadamente cruzadas sobre meu colo.

- É que me disseram que meu pai não gostava de mim.

O ultraje de repente tingiu a voz de minha mãe, sobressaltando-me:

- Quem lhe disse isso?

Recusei-me a contar a ela o quanto era alvo de piadinhas na escola. Que era muitas vezes discriminada, excluída, e caçoada por não ter um pai, por jamais tê-lo conhecido.

Minha mãe envolveu meu queixo com meus dedos, fazendo-me encará-la.

- Agatha, quem lhe disse isso? Diga-me agora!

Arfei. Eu não queria que minha mãe se zangasse. Não era esse o meu intuito.

- Ninguém. Eu só... eu só... – cerrei os olhos, buscando forças, procurando algum meio de dizer a ela o quanto doía em mim a ausência paterna – Eu só fico imaginando se o papai...

- Meu amor, ele te amava mais do que tudo. – sussurrou, embalando-me e ninando-me com um aconchegante e carinhoso abraço, eu sabia que ela devia estar contendo as lágrimas naquele momento, não queria magoá-la, mas bastava tocar na memória de meu pai que minha mãe desabava, acho que ela ainda não havia superado aquela perda.

- Não chore. – disse a ela, afagando seus cabelos sedosos. – Não gosto de te ver chorando desse jeito.

Ela fungou, afastando-se de mim a fim de me fitar com seus olhos chorosos.

- Nunca duvide do amor de seu pai por você, Agatha, nunca! Duvide do que quiser, mas jamais do amor imensurável que ele tinha por você, meu bem.

Ela deslizou seus dedos por uma mecha de meu cabelo, seus lábios tremiam.

- Desculpe. – sussurrei, baixando o olhar. Eu não gostava de ver minha mãe entrando naquele estado. Mas minhas dúvidas a respeito de meu pai sempre me corroeram. Sempre me deixavam confusa.

E todas as noites eu amaldiçoava o nome daqueles que me tiraram meu pai. Que jamais permitiram que eu o conhecesse.

- Está tudo bem, meu amor. – murmurou ela, mas eu sabia que aquela ferida aberta em nós duas quando meu pai foi assassinado jamais fecharia, jamais cicatrizaria. Jamais pararia de doer.

- Mamãe... – chamei-a uma última vez, fazendo-a sustentar seu olhar no meu.

- O que foi?

- Como é... morrer?

Dessa vez, ela puxou-me para o seu colo, encaixando seu queixo no alto de minha cabeça, segurando-me junto a si como se eu fosse o seu bem mais precioso.

- É como dormir, meu bem. – respondeu-me, a voz triste e vazia – É como mergulhar em um sono muito, muito profundo. Um sono do qual jamais se desperta.

- Então, o papai está dormindo esse sono? – perguntei, a voz abafada contra o cerco protetor de seus braços.

- Está sim, meu anjo. – ela suspirou profundamente e prosseguiu, mesmo com certa dificuldade – Seu pai está dormindo um sono eterno.

- Mas... – comecei hesitante – Se ele está dormindo, então pode sonhar, não pode?

- Eu não sei... – sussurrou ela, ainda mais mergulhada em uma tristeza imensa, uma a qual ninguém poderia tirá-la, uma tristeza causada pela morte de meu pai.

- Se ele puder sonhar, tomara que sonhe comigo. – disse, fitando as palmas de minhas mãos, e realmente desejando que isso pudesse ser verdade, e enterrando o rosto no seio de minha mãe, ouvindo a palpitação acelerada, enquanto ela tornava a me abraçar, mais e mais forte...

A lembrança perdeu-se em uma névoa misteriosa, juntamente com várias outras.

Uma lágrima escorreu de meus olhos. Uma que ainda lamentava a saudade que tinha de minha mãe.

Meus olhos nada focalizavam. Nada procuravam ver. Apenas permaneciam vagos. Esperando o momento em que tivessem de ser selados para sempre.

Ali, deitada sobre o divã, eu refletia. Eu me lembrava de cada momento fútil de minha vida. Cada lembrança impregnava em meus pensamentos, e não descansava enquanto eu não a revivesse em seus mínimos detalhes.

Sempre que tentava afugentá-la, já era tarde demais. E assim, minha infância, minha adolescência, minha curta passagem por este mundo passara como um filme diante de meus olhos.

Toda a minha existência resumia-se a solidão, ao perigo que me sempre me rodeou, e principalmente às pessoas que me mudaram, que fizeram a diferença em minha vida.

Arrependo-me amargamente de não ter podido despedir-me da forma correta de todas elas.

Mas de certa forma, estou feliz...

E estava pronta.

Quando a maçaneta tremeu, não me movi. Apenas desfrutei de meus últimos segundos de calmaria. De meus últimos momentos com uma alma, um corpo, viva.

Meus olhos foram testemunhas de quando meus dois carrascos arrastaram-me para fora de meu clausulo, levando-me para o meu calvário, para a minha forca.

E eu fui conduzida, sem apresentar resistência alguma. Sem esquivas. Destemida eu seguia, não vacilando, não me deixando abater.

As portas duplas abriram-se, revelando a minha última jornada. O grandioso salão mostrou-se para mim uma última vez. Meu sepulcro.

Mas, não havia ninguém lá ainda. Nem os espectadores que apreciariam o espetáculo, nem as sete figuras supremas que realizariam o tão esperado ato; matar-me bem ali, naquele momento.

Dessa vez, um altar havia sido cuidadosamente posicionado diante dos sete tronos. Uma mesa de madeira enegrecida com quatro orifícios – dois na extremidade de cima, dois na extremidade de baixo –, dos quais brotavam grossas correntes, e em suas extremidades pesados grilhões.

Naquele altar, meu sangue seria derramado, minha alma seria destruída, minha existência seria apagada. Tudo o que vivi, tudo o que testemunhei, tudo o que amei se perderia bem ali.

Novamente não mostrei resistência quando um dos sujeitos posicionou-se atrás de mim, puxando minha blusa – cuja frente encontrava-se de forma lamentável devido à tentativa frustrada de violentar-me de Benjamin –, retirando-a com velocidade, expondo minha marca de nascença ali dentro pela primeira vez, meu selo.

Fui obrigada a me deitar sobre o altar, respirando com dificuldade enquanto meus pulsos e tornozelos eram presos pelos grilhões.

Assim que fui completamente imobilizada sobre o altar, as figuras em mantos vermelhos desapareceram pela mesma porta que me trouxeram, deixando-me sozinha ali.

Olhei em derredor, sentindo o peso do oxigênio em meus pulmões, meu coração retumbando, desesperado pelo fim iminente.

Tentei puxar meus pulsos, que se encontravam acima de minha cabeça, mas foi impossível. Eu estava presa ali, e só seria liberta quando enfim cedesse ao ritual que me condenaria para todo o sempre.

Mordi o lábio inferior, sentindo na pele a dor que a constatação de estar completamente sozinha e sem saída trouxera-me.

Porém, eu não poderia prever o próximo movimento de Ducian. Nem em um milhão de anos eu adivinharia que ele ainda não havia se saciado em seu jogo sádico e doente.

E apenas me permiti desesperar enquanto uma escolta de Mediadores trazia Aidan para que pudesse assistir ao espetáculo de minha execução, juntamente com todos os outros.

Ele ainda estava debilitado demais!

E mesmo assim, o forçariam a assistir a minha tortura, a minha queda.

Prendendo seus pulsos nos mesmos elos do dia anterior, colocando-o bem próximo a mim, e posicionando-o de um ângulo que ele poderia ver tudo.

Sua fronte permanecia abaixada, seus olhos eram reclusos, fugiam de mim. Talvez ressentidos demais por eu me permitir abater como um animal. Pelo menos, suas feridas estavam limpas e cicatrizando, e eles o haviam vestido com uma camisa nova, já que a que usava foi rasgada e manchada com seu sangue.

Assim que a escolta deixou-nos a sós novamente, tombei meu semblante para ele, desejando olhá-lo nos olhos, desejando consolá-lo de alguma maneira, embora soubesse que nada seria capaz de tal nesse momento.

Então, deixei que minha tristeza inundasse meu semblante e sufocasse meu coração, enterrando-me no mais profundo e negro abismo.

- Sinto muito... – sussurrei para ele, apertando os olhos para não permitir que a umidade embaçasse minha vista – Eu não queria que você tivesse que ver isso... Não queria...

Minha garganta fechou-se, levando-me quase a sufocar. Aidan não me respondeu, muito menos elevou sua face para que pudesse ao menos me fitar.

E durante longos minutos o silêncio foi meu único companheiro.

Pelo menos até que as portas abriram-se novamente, e revelando-se através delas as figuras que se preparavam para o inicio do grande espetáculo.

Entrando uma a uma, elas vieram – inclusive Ellian, que disfarçadamente me lançou um olhar de piedade – Benjamin e Crystal pareciam não serem capazes de conter suas alegrias e satisfações. Mas não deixei que isso me atingisse.

Por último, adentraram as sete figuras, as sete grandes autoridades presentes ali, enfileiradas, disciplinadas, mais uma vez elas cessavam todos os murmúrios, aquietavam a inquietude, instauravam o silêncio.

Caminhando de forma elegante, como os perfeitos e letais predadores que eram, eles vieram até mim.

Cercando-me, acuando-me, encurralando-me como uma pobre ave rodeada por felinos em um beco pútrido e sujo.

Tão logo eles me cercaram, formando um círculo perfeito – apenas Ducian permanecia mais próximo a mim, e reconheci porque, a adaga preciosa cintilava entre seus dedos, guardada em um suporte de prata com vários detalhes incrustados.

Quando atingíssemos o ápice do ritual, aquela mesma adaga seria cravada em meu coração, delimitando o fim, estabelecendo o limite, sepultando-me em trevas por toda a eternidade.

As sete figuras deram-se as mãos, os capuzes de seus mantos ocultavam seus semblantes de mim. Eu nem poderia olhar nos olhos de meus carrascos, e assim morreria, ali padeceria. Ali, iniciaria a minha última e perdida batalha contra a tormenta que me esperava.

Uma tormenta tão monstruosa, tão grandiosa, tão assustadora, que não haveria chance de escapar. Eu estava perdida.

Meus batimentos aceleraram em meu peito, minha respiração era cada vez mais dificultosa, cada vez mais pesada, sentia-me sufocar lentamente, afundando em um pântano pútrido e úmido.

Cerrei meus punhos, ainda tensionando meus membros, tentando libertá-los, mas eram esforços inúteis.

Eu havia traçado esse destino para mim. Eu o havia escolhido.

Em detrimento da minha própria vida, eu salvaria a vida de Aidan.

Eu o manteria vivo com a minha morte.

De mãos e dadas, e semblantes concentrados, as Sete Tristezas, deram enfim inicio ao ritual que traria o meu fim.

De suas bocas, palavras não foram pronunciadas, de seus corpos nenhum movimento foi feito. Mas eu vi, meus olhos testemunharam, embora preferisse não tê-lo feito, vi quando o primeiro ato do espetáculo teve o seu inicio.

O ar acima de mim tornou-se frio e denso, abruptamente. Minha pele arrepiou-se em contato com aquela nova atmosfera ao meu redor. E centelhas prateadas foscas cintilavam, como pequenos fragmentos de ronitas, centenas e centenas delas, todas se agrupando e agrupando-se, fundindo-se umas às outras.

Então, percebi meu erro. As centelhas não eram nada mais e nada menos do que um véu de energia, sombrio e acinzentado. Assemelhava-se em certos pontos ao véu que eu vira e sentira há cerca de um mês quando consegui ter acesso aos meus poderes durante o Wayeb.

Mas este véu não era brilhante, suave e quente como o que estava contido dentro de mim. E sim frio e tenebroso, como o manto que reveste os Devoradores de Alma, o manto da morte.

Embora vivo, e moldando-se como um lenço transparente e iridescente acima de mim, soube naquele momento que aquela era a energia manipulada pelas Sete Tristezas.

Uma pequena parcela, insignificante para alguns, mas o suficiente para selar minha alma. Então era isso. A energia de minha alma seria suprimida pela energia oposta a dela. A energia de um Antigo.

O véu estendeu-se, esticou-se até que tivesse o meu exato tamanho, suas bordas cintilavam como se tivessem centenas de cristaizinhos incrustados, e então, finalmente, ao som das primeiras palavras, o véu atendeu ao chamado, e lentamente repousou sobre o meu corpo, envolvendo-me com uma dor lancinante.

Como a inserção de mil agulhas frias e afiadas em meu corpo, o véu me encobriu. Em meu peito, meu coração sofreu um forte solavanco, o oxigênio ficou preso em meus pulmões, e meu grito de dor preso na garganta.

Depois de penetrar minha pele, o véu desapareceu, mas dentro de mim, o caos estava instaurado.

Era difícil respirar, era difícil raciocinar, meus pensamentos colidiam-se em minha mente atordoada, eu era incapaz até mesmo de lembrar quem era.

Tudo o que conseguia registrar era a dor, como se alguém estivesse me revirando de dentro para fora, virando-me do avesso bem lentamente.

Àquela altura, eu não era mais capaz de reprimir meus gritos de dor. Embora tivesse jurado a mim mesma que não permitiria que Aidan soubesse o quanto eu estava suportando, meus instintos eram mais fortes do que meu desejo de poupá-lo de tudo isso.

Cerrei meus punhos até o ponto que minhas unhas rasgassem as palmas de minhas mãos, e deixassem que o sangue fluísse naturalmente.

Retesei meus membros, encolhendo-os, e depois deixando que tombassem flácidos e sem vida sobre o altar. O que meu corpo sentisse a necessidade de fazer para aliviar um pouco daquela dor.

Minha garganta queimava, suplicando por um pouco de água, eu parecia estar ardendo no poço mais profundo e escaldante do Tártaro naquele momento. Com as chamas mais intensas consumindo-me como um animal sacrificado.

Não importa o quanto eu me debatesse.

Não importa o quanto eu relutasse.

O fim era óbvio.

O desfecho era apenas um, e eu tinha total consciência dele.

Em uma parte reservada de minha mente, uma que se fechara para o caos que agora me encontrava, eu conseguia me lembrar, conseguia pensar com clareza, e me sentir aliviada, enquanto todo o meu restante se desesperava e se afogava em dor e agonia.

E eu era perfeitamente capaz, estava perfeitamente lúcida para saber, lá no fundo, que cada ancestral meu havia passado por essa tormenta. Havia lutado e batalhado até o final contra ela, então, não deveria ser diferente comigo.

Eu não me entregaria, antes consumiria cada força minha, extirparia cada uma delas, e só então me permitiria desfalecer, só então eu entregaria para a morte o meu corpo e a minha alma.

No momento em que tomei minha decisão, naquela parte reservada de minha mente, meu corpo reagiu instantaneamente, agindo por reflexo.

Meus dentes encontraram minha língua, cravando-se com tamanha violência, que senti o gosto metálico de sangue em minha boca.

Mas eu estava convicta. Estava determinada.

Não me renderia sem antes lutar até o final naquele campo de batalha de vida ou morte.

Meu avô, meu pai, todos eles passaram por essa mesma provação, e embora tenham perecido ao final, tenho certeza de que resistiram como eu, suportaram como eu.

Não se deixaram abater. Antes morreram como os verdadeiros bravos guerreiros que sempre foram.

E ainda assim, suas memórias, seus legados continuam vivos, de alguma maneira. Exatamente como alguma parte de mim ficaria viva, ainda existiria. Talvez a única parte que valha a pena salvar em mim: meu amor por Aidan.

Disse que se essa parte se mantivesse viva e intacta, eu poderia resistir a qualquer coisa. E de fato isso é verdade.

Apertei os olhos, afugentando as lágrimas que ameaçavam embaçar minha vista, e lutei, usando de minhas escassas e débeis forças, eu relutei contra aquela estranha entidade que se apossava de mim e que me tragava para dentro de si.

E no mesmo momento em que decidi resistir, a dor alcançou cada célula do meu corpo, cada centímetro de mim. Até mesmo aquela parte de mim que se encontrava alheia ao meu tormento, ameaçava sucumbir.

O selo em meu ombro agora queimava. E embora tivesse lidado com essa dor várias vezes antes, ainda assim, ela conseguia arrancar todo o meu fôlego.

De repente, meus ossos estavam molengas demais, meus membros pareciam perder consistência, e as agulhas geladas agora os penetravam.

Tombei minha face para trás, arfando, arqueando minhas costas sobre o altar, incapaz de conter o jorro de dor e pânico que agora fluía por minha corrente sanguínea. Cada parte do meu corpo respondia a aquela dor, como se tivessem arrancado minha pele, retalhado meus músculos, moído meus ossos e extraído todo o meu sangue.

Ainda assim, aposto que a dor seria mais amena, mais suave em comparação com a qual sofria agora.

As palavras desconexas e desconhecidas para mim, proferidas de formas tão rápidas e uníssonas, deixavam-me ainda mais confusa.

Eu não conseguia registrar nenhuma delas. Acho que nem mesmo em sã consciência seria capaz de tal. Afinal, uma reza tão antiga, tão primitiva, não estava reservada para meros mortais como eu.

As mudanças em meu corpo, em meus pensamentos, na minha sensibilidade e capacidade de sentir a dor, eram constantes. Quando eu achava que não poderia ser pior, que não haveria provação maior que aquela, eu era apunhalada, golpeada sem misericórdia alguma, e como conseqüência, permanecia vários minutos tentando me acostumar com o novo jorro de dor.

Mas meus esforços eram sempre inúteis, porque eu sempre perdia o fôlego, meu coração sempre acelerava novamente, e eu sempre gritava, tentando desesperadamente encontrar uma saída dali.

Não sei ao certo quando minha lucidez começou a esvaecer, sentia a minha própria mente se desintegrando lentamente. De qualquer forma, eu não era capaz de captar qualquer outra coisa no meu exterior, eu apenas conseguia registrar a dor. Nada mais.

Tudo girava. Tudo era confuso. Os rostos se distorciam, tornando-se monstros horrendos diante de meus olhos, com seus olhos famintos e seus dentes afiados cintilando para mim.

O delírio não trouxera o alívio que eu imaginara. Antes só prolongou meu sofrimento, porque agora até mesmo a minha razão se entregava.

Por várias vezes, devo ter desmaiado, ou desconectado-me de mim mesma. Porque a dor cessava, tudo se aquietava, e eu podia descansar por meros e inesquecíveis segundos, sempre sendo trazida violentamente de volta para a realidade, como se um par de mãos com garras afiadas invadisse meu local de descanso e me puxasse para o abismo negro novamente, soterrando-me lá.

Não importa quanto tempo passasse. Não importa o quanto eu gritasse. A dor nunca cessava. Antes parecia ter criado raízes em meu corpo, como alguma espécie de erva daninha.

Porém, em determinado momento, a dor recuou, a dor amenizou, mas somente para ceder espaço para o meu novo método de tortura: o fogo.

O fogo agora parecia irradiar do selo em meu ombro, espalhando-se por meus membros cansados, meu tórax, meu abdome, meu pescoço, e finalmente, a minha cabeça.

Estranhamente, as chamas desse fogaréu não se limitavam a consumir o meu exterior, antes se infiltravam por sob a minha pele, alcançando como o seu antecessor, os meus ossos, as minhas células, cada órgão do meu corpo parecia ser consumido.

Minha garganta arranhada não suportava mais gritar. Meu coração cansado não agüentava mais bater. Meus pulmões pesados não suportavam mais respirar.

Tudo dentro de mim era consumido pelo fogo, como se eu estivesse em uma fogueira da Santa Inquisição, só que de alguma maneira, era muito pior.

Dentro de mim, de minha mente debilitada e desconectada, eu pensava em desistir, cogitava essa possibilidade. Se simplesmente me entregasse, talvez a dor fosse menor, talvez não. Eu tinha medo de descobrir. Mas tinha mais medo ainda de abrir mão de meus últimos momentos com vida, com uma alma, com um corpo.

Eu sabia que assim que desistisse, eu seria apagada. Como se alguém passasse uma borracha em tudo o que vivi, em tudo o que fui, em tudo no que acreditei.

Cada lembrança minha – fosse doce ou amarga – seria tirada de mim. E eu ainda não estava pronta para deixá-las ir.

Antes queria que elas fossem repassadas em minha mente, como um filme. Não me arrependo de minha decisão que tomei. Não me ressinto de nada ou ninguém.

Talvez apenas sinta falta de uma vida mais longa, mais plena, mais feliz. Mas estou satisfeita com o que tive. E minhas lembranças reforçavam-me isso.

Eu tivera o suficiente do amor de minha mãe. Estava feliz por saber que ela seria feliz ao lado de John.

Eu tivera o suficiente da amizade. E sei que Peter e Tamara seguirão suas vidas com normalidade, serão felizes, mesmo com minha ausência. Também sei que Max – onde quer que esteja – está feliz. Está descansando, finalmente.

Eu tivera o suficiente do companheirismo de Christian, e sei que ele encontrará um novo amor. Sei que ele será feliz, de algum modo. Ele jamais permite que algo o coloque para baixo. Talvez essa seja a sua marca, o seu otimismo com relação ao amanhã, um otimismo que eu jamais tive.

E finalmente, mas não menos importante, eu tivera o suficiente do amor de Aidan. Sei que ele encontrará a paz e a redenção que tanto almeja. E sei que de alguma forma, uma parte de mim estará com ele. Sempre.

Ainda ciente do fogo que me consumia, ainda ciente das minhas forças estarem em seu auge, no seu fim, tombei minha face para ele.

E dessa vez, ele já me fitava. Tão atormentado quanto eu. Quantas horas eu teria ficado ali?

Eu apenas queria o fim, nada mais.

E com o semblante tomado pelas lágrimas de dor, sorri, fraca e debilitada. Agora que voltava a mim mesma, era capaz de perceber que as algemas de ferro me feriram enquanto me debatia, cortando a pele de meu pulso, mas não tinha mais importância.

Apenas me importei em fitar aqueles olhos castanhos, aquele semblante tão bonito, mas que agora estava tão debilitado e ferido quanto o meu.

Abri meus lábios, respirando lentamente, e então, sussurrei:

- Eu... te... amo...

Quando fechei os olhos, a escuridão me envolveu, engolfou-me completamente. Estava pronta para partir.

Estava pronta para adormecer e nunca mais despertar, para mergulhar naquele sono profundo e permanecer no esquecimento. Eternamente.

Minha aparente desistência trouxe-me o alívio, mas não somente isso, trouxe o torpor.

Minha salvação.

Meus ouvidos foram testemunhas de quando a reza desconhecida subiu várias oitavas, mais rápido e mais rápido, o fim espreitava.

Agarrei-me ao torpor como último ato desesperado. Não queria mais sentir dor. Não queria mais lutar contra essa tormenta. Não queria mais sofrer.

Abri os olhos a tempo de ver Ducian desembainhar a adaga prateada, retirando-a lentamente da bainha prateada. A arma cintilou para mim, quase como se pudesse falar comigo.

Meu corpo finalmente relaxou, eu finalmente pude descansar verdadeiramente. Agora que o torpor se diluía em minha corrente sanguínea, eu estava salva, de alguma forma.

Os olhos safíricos de Ducian vibravam de satisfação por minha morte estar a caminho.

Sim, ela estava lá. Eu podia senti-la. Uma figura sombria, uma presença sinistra. Mas não a temia, de jeito nenhum. Sabia que ela portava o espelho do destino. Sabia que logo eu olharia dentro dele. Mas não temia, não conseguia temer.

Porque estava pronta. Havia constatado isso por mim mesma. E não havia enganação ou vacilo. Minha mente tinha cem por cento de certeza.

Era o que eu esperava.

E queria.

Salvar a vida de Aidan, em troca dando a minha.

Tornei a mim mesma quando Ducian estava prestes a terminar de desembainhar a adaga.

Sim, o fim estava próximo.

Respirei fundo, ainda ciente do torpor estar amenizando minhas dores. Os olhos azul-claros de Ducian faiscaram uma última vez para mim, crescendo, expandindo, até que tomaram tudo ao meu redor, ensombrecendo meu mundo, escurecendo meu céu mais uma vez.

Seus dedos esquálidos apertaram o cabo da adaga, eu era incapaz de desgrudar meus olhos da arma, sabia que ela simbolizava meu fim, sabia que ela traria minha morte, e então...

Algo explodiu no andar de cima.

Todos esbugalharam os olhos ao mesmo tempo, seus semblantes tornaram-se tão lívidos quanto cera, sem cor alguma, enquanto todo o prédio sacolejava pelo impacto da explosão.

Eu mesma mal podia acreditar no que sentia. A reza fora interrompida, inconclusiva, enquanto todos se entreolhavam, assustados e confusos.

Pelo canto do olho, vi Aidan, e havia um brilho diferente em seus olhos. Seria... esperança?

Quando a estrutura parou de tremer, um falatório infernal deu-se inicio. Todos murmuravam, parecendo-me muito temerosos. Acima de mim, as Sete Tristezas sussurravam:

- O que foi isso?

- De onde veio?

Mas, foi de Ducian, o mais impassível, que a resposta viera:

- Lucius, ele está aqui.

- Não, isso não é possível! – exclamou Gustav, seus olhos castanhos arregalando-se de pavor.

Ducian apenas o olhou com seus olhos frios, como uma piscina de águas geladas e mortíferas.

- Não sentem sua presença? Ele está aqui, e parece que tentará tirar a garota daqui a qualquer custo.

- Isso é loucura. Estamos enfraquecidos pelo ritual, Ducian! Não podemos confrontar Ephemera, não agora! – murmurou Olívia, desesperando-se.

- Você acha que eu não sei disso? – respondeu ele, friamente.

- O que devemos fazer então? – indagou Hui Ling, visivelmente preocupado.

- Devemos nos retirar, levaremos uma escolta de lutadores, deixe que o resto atrase Lucius e suas forças. – respondeu Gustav, despreocupadamente, decidindo que eles sacrificariam quantos fossem necessários para assegurar suas sobrevivências.

- Ótimo. – respondeu Mileena, enquanto todos concordavam com o plano.

Porém, antes que pudessem se retirar, Ducian os interrompeu, seus dedos moendo o cabo da lâmina que portava.

- O ritual não foi concluído, vocês não irão a lugar algum enquanto essa garota estiver viva!

- Você só pode estar louco se acha que ficaremos aqui para concluir o ritual! – esbravejou Gustav, furioso – Além do mais, a alma dessa menina... Eu nunca vi algo parecido como isso antes, ela resiste ao ritual, Ducian, é poderosa demais. Não tenho certeza se poderia ser selada.

O quê?

Ducian o olhou, fuzilando-o com o olhar, mas ele apenas deu de ombros.

- Se quiser ficar para trás e matá-la, fique, eu não farei nada para impedi-lo, mas não nos carregue junto na sua insanidade.

- Sim, Ducian! – exclamou Olívia – Mate-a de uma vez por todas! Não há necessidade de nos desgastarmos à toa, quando nem ao menos sabemos se o ritual surtirá efeito nela!

Ducian não disse a ele uma palavra, mas no instante seguinte, todos já se retiravam, pelo menos a maioria deles, enquanto a estrutura toda tornava a tremer, seu rosto ainda era uma máscara de impassibilidade. Vários Mediadores subiram as escadarias, prontos para se sacrificarem por seus lordes, enquanto Benjamin e Crystal seguiam com vários outros lutadores juntamente das seis Tristezas por outra porta.

- Muito bem, se eles são covardes o suficiente, eu assumo o fardo sozinho. – murmurou ele consigo mesmo, suspendendo seus braços acima de sua cabeça, levando a adaga consigo, mirando-a em meu coração. Seus olhos azuis arregalaram-se, e de seus lábios, uma última frase foi pronunciada – Eu mesmo matarei a garota! Adeus, criança, tenha o mesmo destino de seus ancestrais.

Arfei, arregalando meus olhos, porque o fim viria de qualquer maneira, fosse pelas mãos do destino, fosse pelas mãos de Ducian.

Eu estava amarrada a aquele altar. Não havia escapatória. Então, não tentei relutar. Cerrei meus olhos, pronta para o fim, ouvindo os gritos desesperados de Aidan, implorando a Ducian que não fizesse isso. Então, ele puxou seu braço, forçando a corrente que o amarrava à coluna da direita, trincando os dentes e esforçando-se. Mas era inútil.

O som de correntes sendo repuxadas e  moídas reverberava em meus ouvidos, mas era irrelevante, porque o único som que captava era o da lâmina rasgando o ar ao seu redor, pronta para ser cravada em meu corpo, em meu coração.

Preparei-me para receber o golpe fatal, a estocada letal. Mas ao invés disso, o ar agitou-se ao meu redor, um calor reconfortante envolveu-me, acalentando-me, e no silêncio presente, o som da adaga rasgando a carne ouviu-se.

Perguntei-me se deveria sentir algo. Se o torpor que há pouco me envolvia, ainda surtia efeito sobre mim. Talvez fosse isso. Mas então, eu já havia... morrido?

Foi então que senti algo pingar sobre meu corpo, um líquido espesso e quente.

Ousei abrir os olhos, e quando de fato o fiz, arrependi-me. Descobrindo o motivo de não ter sentido dor alguma.

Porque eu não levei golpe algum, estava intacta.

Mas o corpo acima de mim, debruçado sobre o meu, sim.

Ele sim levou o golpe, recebeu a estocada. E agora, a lâmina cravada em suas costas, atravessara seu peito, deixando que o sangue escapasse pelo talho aberto e pingasse sobre mim.

Arregalei meus olhos e entreabri meus lábios.

Não era possível.

Não... Não... Não... Tinha que ser um pesadelo, uma ilusão, um devaneio. Aquilo não podia ser real de forma alguma!

Porque quem recebera o golpe no meu lugar, arrebentado as correntes e se lançado sobre mim no último instante, era Aidan.

Ofeguei, assustada demais para assimilar corretamente os fatos, mortificada demais para entender o porquê, pasmada demais para acreditar que ele havia se sacrificado por mim.

As lágrimas acumularam-se em meus olhos, e eu as verti sem me preocupar com mais nada. Porque agora, Aidan sangrava novamente. No meu lugar.

- Não... – sussurrei.

Seus olhos castanhos estavam apertados pela dor, seus dentes trincavam-se em um som audível. Seus braços estavam apoiados um de cada lado de meu corpo, enquanto que seu próprio corpo funcionava como uma espécie de escudo para me proteger.

Acima de nós dois, Ducian remexeu a adaga cravada nas costas de Aidan, fazendo-o arfar pela dor. Então, ele a puxou de uma vez só, deixando que meu amado tombasse sobre mim, cansado e exausto.

- Aidan! – ele murmurou – Eu não esperava que fizesse isso.

Lutando contra meu desespero, contra minhas lágrimas, eu o fitei demoradamente, desejando mais do que tudo tocá-lo, afagar seu rosto. Mas meus pulsos ainda estavam presos pelas algemas ao altar.

A estrutura tremulou novamente, dessa vez com uma intensidade maior, fazendo-me olhar em derredor, alarmada. Lucius realmente havia chegado na hora certa.

Mas... onde estavam todos?

Surpreendi-me quando umas das paredes explodiu, uma explosão tão poderosa, que o concreto foi atirado longe, lançando uma grossa camada de pó sobre nós três.

Assim que a nuvem de poeira baixou, vi a fenda que havia sido aberta, e uma silhueta moveu-se, caminhando lentamente na nossa direção.

Aidan não esboçou nada, mas Ducian arregalou os olhos, primeiro pela surpresa, depois pelo choque, estreitando-os suavemente logo em seguida de indiferença.

- Isso sim é uma surpresa. – murmurou ele, enquanto a figura aproximava-se em passos despreocupados.

Logo o reconheci.

- Christian – Ducian exclamou delicadamente. – Pelo que vejo, Aidan desobedeceu muitas ordens minhas.

Com as mãos nos bolsos de seu jeans, ele sorriu de canto, mas a fúria era tangível em seus olhos azuis.

- Há quanto tempo, Ducian! – então, retirando as mãos dos bolsos e estendendo os braços, ele emendou – Não vai dar um abraço no seu filho caçula, afinal, não nos vemos desde o dia em que você e sua corja mataram Caroline!

- Ainda ressentido com isso? – ele o provocou, sorrindo um pouco, exibindo para Christian a adaga ensangüentada em suas mãos.

Mas, ele apenas deu de ombros e adentrou ao seu joguinho maldoso:

- Você não faz nem ideia, velhote!

- Ótimo! – ele exclamou em resposta – Assim, os irmãos Satoya serão sepultados juntos, e de uma vez só!

Fitei Aidan, alarmada.

Uma batalha de vida e morte teria seu inicio.

Talvez a última delas.


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Notas finais do capítulo

Ahhhhhhhhhhhhhhhh!

E então o que acharam?

Nem eu esperava por isso! *mentira*

Lucius chegou na hora certa! Ufa!!

Mas e agora???

Aidan está ferido de novo e será Christian páreo para Ducian e sua maldade???

No último capítulo, a última batalha da fase! Aidan e Christian lutarão lado a lado para tentar salvar Agatha! Será que eles vão conseguir??? Hmmmmm...

E também, Agatha toma uma última e desesperada decisão!

Aí sim, teremos o grandioso desfecho dessa 3ª fase!

Até lá!

Não deixem de comentar!

Beijinhos!!!!