Frostnatter escrita por Blue Dammerung


Capítulo 6
Capítulo 6: Skydda Dig.


Notas iniciais do capítulo

"É difícil ser religioso quando certas pessoas nunca são incineradas por relâmpagos." - Gilbert na oitava série após ser delatado pelo aluno mais nerd da sala na hora da prova, quando dividia questões com Francis e Antonio.



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Sentado na poltrona, olhando o corpo daquela criança debaixo de vários cobertores, ao lado do telefone que parecia quebrado por quase nunca tocar.

Me levantei, certo de que deveria fazer alguma coisa se não quisesse correr o risco de enlouquecer ali, e pensei no que faria quando aquela criança, aquele garoto, acordasse. Certamente, ele não poderia ficar, eu não teria como criá-lo, então o mais óbvio a fazer seria colocá-lo num orfanato.

Peguei uma mochila velha minha e comecei a colocar coisas dentro, como roupas, brinquedos muito velhos de Thomas e outras coisas, alguns livros. Não queria deixá-la sem nada.

Deixei a mochila sobre a mesa, e quando voltei para vê-la, meu coração vacilou por alguns instantes. Seu peito subia e descia com mais facilidade agora, e seu rosto tinha assumido uma coloração rosada tão terna que suspirei, com um certo alívio.

E não mais me importei se alguém me ligaria naquele natal.

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Meu professor conseguiu me tirar do hospital, embora eu tivesse recebido mil e uma recomendações para não fazer nenhum movimento brusco de todos os médicos e enfermeiras que encontramos pela frente.

Lógico que chegamos atrasados no colégio, mas ele deu um jeito de fazer com que eu entrasse e o resto da manhã correu bem, ao menos para mim. Tentei ao máximo descer escadas, e no intervalo não fui no refeitório, tanto porque não queria sentir mais dor quanto pelo fato de que se eu encontrasse o The Bad Friends Trio ali, provavelmente seria meu fim.

Fiquei na sala, sozinho, esperando que o toque soasse novamente para que as aulas recomeçassem, mas então a porta se abriu. Ergui o olhar, desejando que não fosse alguém desagradável, mas eram apenas Lukas e Stefán, que se aproximaram de mim.

-Achei que estaria aqui.-Lukas disse, cruzando os braços enquanto Stefán se sentava numa carteira ao lado da minha, esperando.

-Bom dia para vocês também.-Eu disse, sorrindo, embora doesse um pouco.-Estavam procurando por mim?

-Você sabe, precisamos fazer aquele trabalho que envolve as salas... E como eu sou do terceiro, e o Stef é do segundo e você é do primeiro ano, além de que nós dois somos umas das poucas pessoas que falam com você, seria mais fácil se nos juntássemos.-Lukas disse, com uma pitada de arrogância.

-Tudo bem.-Eu consenti. Seria algo a menos para me preocupar então.

-Ainda vamos definir as coisas do trabalho, mas isso vamos acertar no sábado, na minha casa. Você pode vir?-Lukas perguntou.

-Ham... Eu... Vou falar com meu pai.-Disse, já pressentindo o pior.

-Okay então. Temos que ir, o intervalo já vai terminar. Te vejo mais tarde.-Lukas disse, saindo da sala e sendo seguido por Stefán, e no exato momento que eles saíram pela porta, o toque soou nos corredores e logo a sala estava cheia novamente.

Teria que me preocupar com aquele trabalho mais tarde, ou não tão tarde assim, uma vez que teria que ter uma resposta no sábado e já era quinta-feira.

As horas passaram rápido, e quando a aula acabou, juntei minhas coisas lentamente. Berwald não dava aulas nas quintas e nem nas sextas. Saí da sala com o professor de geografia me olhando com raiva porque tinha que fechar logo a sala para ir embora.

Fui pelo corredor até o estacionamento, já sentindo que teria que fazer todo o percurso até chegar em casa e ainda a pé, mesmo todos me dizendo para não me mexer demais. Quando cheguei na rua, um carro saiu pelo estacionamento e parou na minha frente, o já conhecido Honda Civic.

Instantaneamente sorri enquanto meu professor abaixava o vidro, olhando para frente com ambas as mãos no volante, sempre sério.

-Entre, lhe darei uma carona.-Ele disse, fitando a rua.

-Não, eu posso ir sozinho, estou bem...-Eu disse, sorrindo amarelo, mas antes que eu pudesse inventar qualquer desculpa, ele virou o rosto para mim e me direcionou todo aquele olhar duro que deixa bem explícita a frase “estou mandando. Agora”.

Olhei ao redor, esperando que ninguém nos visse, mas o lugar estava vazio exceto por pessoas que eu não conhecia, que não eram do colégio. Entrei então, colocando minha bolsa no colo e fechando a porta. Segundos depois estávamos em movimento.

-Eu moro na rua do Eixo, o senhor sabe onde é? É só ir direto por aqui e depois virar na terceira e passar pelo cruzamento e depois ir direto de novo.-Eu disse, olhando a paisagem passar vagarosamente.

Ele ficou em silêncio e tomou o caminho que eu indicara. Pensei o quão seria estranho um aluno num carro de um professor, mais velho e, eu acho, solteiro. Pedofilia na certa, as pessoas pensariam, mas Berwald nunca fizera nada para me machucar.

Na verdade, ele sempre me ajudara. Me salvara do desastroso episódio com o Francis, cuidara de mim, me levara ao hospital e me tratava melhor do que alguém me tratava em muito tempo.

Não sei que tipo de relação deveríamos ter, e se era muito estranha a nossa “amizade”, e apesar de ele ser assustador muitas vezes e de não falar nada e da sua feição sempre séria, acho que eu gostava de ficar perto dele... Éramos, eu acho, os amigos mais estranhos daquele colégio.

Ou não, considerando o The Bad Friends Trio.

-É naquela casa ali, aquela pintada de verde-escuro.-Eu disse, apontando e já me preparando para sair do carro quando ele estacionou. Abri a porta, mas então ele me chamou.

-Tino.

-Sim?-Perguntei, me virando, meio surpreso porque, pelo o que eu me lembrava, ele nunca tinha me chamado pelo nome.

-Você tem um celular?-Ele perguntou então, ainda olhando para a rua.

-Não, quando preciso ligar eu uso o telefone de casa, mas é só para emergências. Por quê?

-Tome.-Ele disse, tirando de seu bolso um celular que parecia relativamente caro e me entregando, agora olhando para mim.

-E-eu n-não posso aceitar! Não é meu aniversário nem nada e meu pai vai suspeitar se eu chegar em casa com algo assim!-Falei, segurando o telefone na mão, mas entendendo de volta para ele.

-Tenho outros telefones. Na agenda estão meus outros números. Ligue se algo acontecer.

-Mas... Eu...

-Fique.-Ele disse, referindo-se ao celular. Virou o rosto e voltou a olhar para frente, e entendi que aquilo era uma espécie de despedida.-E ligue, se precisar.

-T-tá, tudo bem... Até amanhã, professor.-Eu disse, saindo do carro e escondendo o celular no bolso antes de entrar em casa. Me virei para ver o carro do meu professor avançar na rua e virar na esquina, comigo acenando um leve tchau.

Agora sozinho, estava com medo de entrar em casa, mas já estava de noite e meu pai chegaria em breve, e estar na soleira da porta quando ele chegasse não era, nem de longe, boa coisa. Entrei e fechei a porta atrás de mim, vendo que as luzes estavam acesas.

-Cheguei.-Falei, enquanto via minha mãe na cozinha se virar para mim, bufar e então voltar a fazer o jantar. Suspirei e subi as escadas, indo para meu quarto e deixando minha mochila sobre a cama enquanto despia a farda e tomava um banho, vestindo uma roupa mais simples para ficar em casa, como uma bermuda e uma camisa simples.

Então lembrei do celular que Berwald me dera e o guardei dentro da gaveta do meu criado-mudo, ao lado da cama. Meus pais não costumavam a mexer nas minhas coisas, então não teria problema deixá-lo num canto tão óbvio.

Desci as escadas para esperar meu pai chegar, sentando no sofá e esperando enquanto ouvia sons vindos da cozinha juntamente com um cheiro agradável, mas comum. Lembrava que minha mãe sempre fora boa cozinheira, sempre. Para mim e meu irmão ela fazia mil e um tipos de doces e sorvetes, e na verdade, quando ela inventava novos, nós éramos suas “cobaias”.

Bons tempos. Curtos tempos.

Fitei o chão e foi então que ouvi mais barulhos vindos da cozinha, dessa vez bem mais altos, com um estalo metálico, como se várias panelas e utensílios tivessem desabado no chão de repente. Minha mãe soltou um grito, curto, mas alto, e eu cogitei em me levantar. Não estar esperando meu pai quando ele chegasse me traria problemas, mas eu apenas queria saber se ela estava bem, só isso, depois eu voltaria o mais cedo possível.

Mesmo que ela não me amasse mais, ou me odiasse, era minha mãe, e antes de ser minha mãe, ela era uma mulher, uma pessoa, e eu tinha uma “estranha necessidade em ajudar quem precisa”, como meu irmão dizia.

Me levantei e fui até a cozinha, colocando apenas a cabeça e então um pé para dentro do cômodo, vendo minha mãe caída no chão com várias panelas jogadas e algumas quebradas e ainda com o resto do que seria um armário perigosamente perto dela.

Me aproximei, vendo que ela tentava se levantar, e estendi uma das minhas mãos para ele, dizendo:

-O que foi, mãe? O armário caiu? A senhora está bem? Precisa de ajuda?

Ela me fitou, olhando-me com aquele olhar frio, ainda tendo ódio e medo e receio e muitos sentimentos ruins, e talvez, apenas talvez, lá no fundo, um certo arrependimento, uma certa culpa, como se sentisse pena de mim, pena de me maltratar. Mas acho que foi apenas minha imaginação, porque então ela deu um tapa na minha mão e começou a se levantar, meio desajeitada, e se pôs de pé com esforço.

Me afastei alguns passos, sabendo que ela reclamaria, e comecei a recolher as panelas, querendo ajudar. Tinha pegado as maiores e colocado em cima da mesa quando vi que alguns facões e colheres grandes também tinham caído no chão, então me aproximei para recolhê-los, mas quando peguei alguns na mão, minha mãe se aproximou, gritando.

-Não! Deixe aí! Não toque nas minhas coisas, seu nojento!

-Mas...

-Não! Solte!-Ela gritou, batendo na minha mão e me fazendo soltar os facões no ar.

Naquela hora eu não pensei, apenas agi, sabendo que se aqueles facões pegassem nela, o ferimento seria grande e feio, então a primeira coisa que fiz foi empurrá-la e então me jogar para o lado, mas um deles acabou pegando de raspão no meu braço, soltando gotas de sangue pelo chão branco da cozinha.

Me levantei do chão, encontrando minha mãe também nele, fitando-me enquanto eu ouvia um barulho conhecido lá fora. Meu pai tinha chegado, e a cozinha estava uma bagunça, o jantar não estava feito, havia sangue no chão e minha mãe tinha uma feição estranha no rosto.

Me aproximei para tentar ajudá-la, mas ela começou a gritar enquanto levava as duas mãos até os cabelos e os puxava, urrando coisas sem nexo e vez por outra o nome do meu irmão enquanto eu já ouvia a porta de casa ser aberta e então, lá estava meu pai, na porta da cozinha, nos olhando sem entender.

Acho que pelo sangue no chão branco, que chamava atenção, o estado da cozinha, com o armário que provavelmente teria caído por causa do peso ou porque estava velho, e aqueles facões espalhados e um sujo de sangue e até pela minha própria cara, não muito calma, e principalmente pela minha mãe chorando, meu pai automaticamente teve uma certeza não muito certa que eu era o culpado.

-O que diabos aconteceu aqui?!-Ele exclamou, se aproximando e me empurrando para um lado enquanto corria até minha mãe e tentava acalmá-la.

Eu fiquei calado, sabendo que seria pior falar a não ser que ele se dirigisse diretamente para mim, e como minha mãe estava tendo um daqueles ataques e apenas gritava, meu pai não obteve resposta.

Eu fiquei sem me decidir entre correr para o meu quarto ou ficar ali. Se corresse, assumiria que a culpa era minha, mas se ficasse, poderia ser culpado de qualquer forma.

Meu pai acalmou minha mãe mais um pouco, para que ela apenas parasse de gritar, mas ela ainda ficava olhando para os cantos o tempo inteiro e de vez em quando chamava por meu irmão, erguendo as mãos no ar. Meu pai se virou para mim então, e me fitou, com os olhos já dizendo que ele achava que eu tinha feito tudo aquilo.

-O que você fez, moleque?!-Ele gritou, se aproximando de mim.

-N-nada! Eu juro! Eu só...

-Você decidiu se vingar quando eu não estava por perto, não é?! Tentou matar Madeline!

-Não! Não! Não foi isso, o armário caiu e eu fui ajudar e ela bateu na minha mão e...

-Chega de mentiras!-Ele gritou, já bem na minha frente, me dando um murro no estômago e me fazendo cair no chão de joelhos, abraçando minha barriga enquanto ele puxava meus cabelos para erguer meu rosto.-Você vai levar uma surra tão grande, moleque, que nunca mais vai tentar ferir a minha esposa!

-Não fui eu!-Eu gritei, tentando soltar sua mão da minha cabeça, mas só com aquele murro as feridas das surras anteriores tinham abrido e agora sangravam por debaixo da roupa e por toda a gaze que eu ainda vestia.

-Calado!-Meu pai gritou, dando um murro no meu rosto e rasgando meu lábio inferior enquanto eu tinha certeza de que teria sido melhor se eu tivesse ido para meu quarto. O que agora não parecia má ideia.

Ele já se preparava para me socar novamente quando eu consegui soltar sua mão dos meus cabelos e o empurrei com toda a força que tinha, o que não o derrubou no chão, mas fez com que ele se afastasse o suficiente para que eu me levantasse e corresse para fora da cozinha, indo até a sala e depois para a escada, ouvindo meu pai gritar atrás de mim:

-Ei, aonde pensa que vai?! Vai se esconder na toca, seu rato imundo?! Tino, volte aqui! Seja homem, seu monte de merda!

Me apressei e entrei no meu quarto enquanto o ouvia subir a escada, fazendo questão de pisar com força no chão. Peguei a chave e passei-a no trinco da porta, trancando-a enquanto empurrava meu criado-mudo e o colocava como uma barricada, ouvindo meu pai bater na porta, que eu temia que não aguentasse por ser de uma madeira já velha.

-Tino! Tino! Seu moleque desgraçado, saia daí! Agora!-Ele gritava, batendo com força, até que bateu ainda com mais força e eu tive certeza de que estava chutando a porta.

Eu estava quase em pânico. Não tinha para onde fugir, meu quarto ficava no segundo andar, e se eu pulasse, era o mesmo que pedir para quebrar as duas pernas, porque a altura era considerável.

Não tinha para quem gritar, meus vizinhos achariam que era brincadeira minha ou então que era minha mãe dando mais um ataque, ninguém acreditaria em mim, e logo meu pai arrombaria a porta e eu levaria uma surra tão grande que provavelmente entraria em coma.

E eu não tinha um cel... Agora tinha. Corri até o criado-mudo e abri a gaveta, pegando o celular e voltando a me afastar, sentando em cima da cama, perto da janela, bem no extremo oposto da porta. Mas para quem eu ligaria? Polícia? Não, se eu ligasse para eles, o governo acabaria descobrindo sobre meus pais e sobre mim e parariam de mandar a ajuda, e se era somente ela que me mantinha vivo e útil ali, não poderia jogar aquilo fora.

Eu também não tinha o telefone de nenhum conhecido, e mesmo que tivesse, todos eles também achavam que a culpa da morte do meu irmão fora minha, então nenhum me daria ouvidos. Olhei na agenda do celular, buscando qualquer um que pudesse, sei lá, me salvar, me ajudar, eu só não queria sentir tanta dor novamente, era um crime?

Passei os contatos rapidamente, quase quebrando o botão, ouvindo a porta ranger, quase não aguentando mais, e meu pai gritando, cada vez mais furioso do lado de fora. Foi então que eu vi um nome, e eu lembrei, mesmo ficando em dúvida se deveria ligar ou não.

“Berwald – Casa.”

E num lapso de segundo ponderei se ligar e metê-lo em toda aquela história, em todo meu problema, no meio da minha vida, seria algo bom, se ele iria se importar, se ele iria se prejudicar. Ou se eu deveria ser espancado até a morte ou até quase ela. Liguei, desesperado.

A porta rangeu mais alto, quase cedendo, e pude ouvir uma espécie de risada do meu pai, falando algumas coisas e me ameaçando enquanto ainda batia na mesma. Depois que ele a abrisse, tirar o criado-mudo da frente não seria dificuldade.

O telefone chamou e chamou e chamou, mas nada do meu professor atender. Desliguei e tentei outra vez, cada vez mais desesperado, com a porta soltando umas lascas de madeira enquanto meu pai batia.

Estava quase perdendo as esperanças quando uma voz grossa, meio cansada, falou:

-Alô?

-Professor! Sou eu, Tino, o senhor me deu seu celular e...-Comecei, mas bem nessa hora a porta não aguentou e cedeu, caindo no chão com tudo enquanto meu pai entrava e jogava o criado-mudo para o lado, gritando quando me viu com o telefone.

-Com quem você está falando?! Desligue isso agora! Seu moleque maldito!

-Eu não sabia mais para quem ligar, por favor, me ajude!

-Desliga logo essa porra!

-Tino?!-Berwald exclamou, num tom mais urgente.

Mas então meu pai se aproximou de mim e pegou o celular da minha mão, jogando no chão e então me puxando pelos cabelos, me arrastando pelo chão até fora do quarto enquanto eu gritava por socorro, rezando para que meu professor tivesse entendido e viesse quem sabe me salvar.

Meu pai me arrastou até a escada e saiu me puxando com força até a sala, me jogando num dos cantos da parede, perto da porta que levava até a rua, enquanto me fitava com raiva.

-Com quem você estava falando?!-Ele gritou.

Fiquei calado. Não queria meter meu professor naquilo, logo ele que nem merecia mais problemas dos que os que provavelmente já tinha.

-Anda, moleque!-Meu pai gritou, me chutando com força na altura das costelas enquanto eu me encolhia mais no chão, tentando me proteger.-Com quem você estava falando?!

-Com ninguém!-Gritei de volta, já sentindo os olhos úmidos.

-Mentira! Estou cansado das suas mentiras!

Apenas me encolhi mais enquanto levava mais chutes, sentindo dor pelo corpo todo e o sangue manchar as roupas antes limpas, chorando, com a cada segundo a esperança que alguém viesse me salvar desaparecendo.

Depois de alguns minutos, meu pai parou de me chutar, e levantou meu rosto, puxando meus cabelos, dizendo:

-Você parece uma bixinha assim, uma putinha, uma coisa nojenta que nunca deveria ter nascido, é isso que você é. Se você tiver ligado para a polícia, eles vão tirar o dinheiro que nos dão todo mês, e sabe o que eu vou fazer com você? Vou te alugar pra todo macho que quiser, e aí nem precisarei ter o trabalho de te bater, e ainda vou ganhar dinheiro com isso, moleque. Tá me entendendo?

Assenti, olhando para longe dele .

-Tá me entendendo?!-Ele gritou, me dando um tapa na cara.

-S-sim.-Respondi, recebendo outro chute enquanto ele me soltava e levava as mãos até a calça, desabotoando o cinto que vestia e segurando-o nas mãos, olhando para mim e batendo o objeto na mão.

-Você se lembra disso?-Ele perguntou.

-Não, não, não, por favor, pai, não de novo, por favor!-Eu gritei, levantando as mãos para me proteger enquanto chorava copiosamente, já sabendo que ele não aceitaria nenhum pedido meu.

Ele levantou a mão e desferiu o golpe, me batendo com o cinto, rasgando minha pele com a parte de metal e deixando todo o resto machucado, roxo depois, repleto de hematomas. Eu gritei o mais alto que pude, mesmo chorando, e meu pai voltou a erguer o braço para dar um segundo golpe.

E foi nesse exato momento que eu ouvi o som de um carro já conhecido, e eu senti a esperança novamente.

Vinha da rua, podia ser qualquer outro carro, mas eu tinha certeza, uma certeza estranha, mas certa. Era Berwald, o som cada vez mais alto, rápido, avançando cada vez mais pela rua em direção da minha casa.

Meu pai não parecia saber o que era, e tampouco parecia ter notado, mas antes que descesse o braço para me machucar novamente, eu chutei uma de suas pernas, fazendo-o cair no chão enquanto eu me erguia e corria até a porta que, graças a quem quer que seja, estava com a chave na fechadura.

Abri e corri até a rua, vendo exatamente a hora em que um Honda Civic prata estacionou de repente, cantando pneu, e de dentro dele saiu Berwald, mais sério que o normal, talvez com raiva enquanto atrás de mim vinha meu pai, correndo.

Corri até o carro, sem entrar, apenas me afastando mais do meu pai enquanto Berwald, sem diminuir o passo, passou por mim e ergueu um dos braços como se fosse um lutador profissional, e do jeito que meu pai veio, correndo, Berwald foi em direção dele e lhe deu um soco bem no rosto, derrubando-o no chão.

Tudo isso numa fração de segundo.

Berwald então assumiu uma posição de briga, com um dos punhos próximo do queixo e outro mais distante, os olhos duros por detrás dos óculos enquanto meu pai lentamente se levantava e passava as costas das mãos no nariz, que agora sangrava bastante, quebrado.

E eu não sabia se me metia entre eles, apartando a briga, ou se apenas ficava olhando. Meu corpo todo ainda doía, e embora eu tivesse parado de chorar, meus olhos deveriam estar avermelhados.

-Quem é você?! Vá embora daqui!-Meu pai vociferou, gesticulando para longe. Berwald permaneceu imóvel, na mesma posição enquanto meu pai gritava mais ameaças, até que ele decidiu atacar com o cinto que ainda tinha em mãos, e no mesmo momento Berwald desviou e lhe socou, bem na nuca, fazendo-o cair no chão.

E antes que meu pai se levantasse, meu professor se ajoelhou ao lado dele, lhe puxando os cabelos e o socando no rosto deveras vezes antes de eu me tocar que deveria impedir aquilo, e meu pai já estava num estado lamentável quando Berwald parou, levantou a cabeça dele um pouco mais, e disse:

-Se você tocar no Tino novamente, eu mato você.-Disse com tanta seriedade e convicção que eu tive certeza de que ele faria aquilo, até porque meu professor não parecia o tipo de pessoa que falava apenas por falar.

Então Berwald ergueu meu pai do chão e lhe deu um último soco bem entre os olhos, e meu pai caiu no chão, desmaiado, e eu só acreditei que não tinha morrido porque seu peito ainda subia e descia.

-Entre no carro.-Berwald disse. Eu obedeci, mesmo não tendo roupas nem nada para ir aonde quer que eu fosse. Segundos depois já nos afastávamos de casa enquanto meu professor dirigia, parecendo apertar o volante com força.

Será que ele estaria com raiva? Bem, eu tinha ligado para ele no meio da noite... Se é que 8 horas da noite era o “meio” da noite, mas enfim, ele deveria estar fazendo algo importante em casa, e eu o havia interrompido.

Virei meu rosto para ele, procurando qualquer traço de emoção que pudesse me ajudar a começar uma conversa que não o irritasse mais ainda, mas seu semblante era sério, sem pistas. Comecei como quem anda no escuro de mãos amarradas.

-Obrigado, professor, por ter, ahm... Vindo me salvar.-Eu disse, fitando-o, mas ele apenas continuou com os olhos na pista, imóvel.-Desculpe ter ligado para o senhor, mas é que eu realmente não tinha mais para quem ligar, e não posso chamar a polícia porque senão meu pai vai me matar logo de uma vez.-Eu disse a última frase rindo, usando uma hipérbole, exagerando. Deveria ser engraçado, mas acho que Berwald levou a sério, porque continuou imóvel.

-Para onde estamos indo?-Perguntei, mas ele também não respondeu. Estávamos pegando uma rua diferente agora, repleta de árvores e casas bastante bonitas, não luxuosas, mas bonitas, com diversos detalhes.

Quando paramos um pouco para entrar num cruzamento, ele falou:

-Ele fazia muito isso com você?

-Isso? Isso o quê? Me bater? Ahm... Só quando eu faço algo errado. Foi só um acidente, ele entendeu tudo errado, mas ele achou que fosse eu e pegou o cinto para me bater... Ah, as feridas abriram de novo, desculpe.-Eu disse, sorrindo, me desculpando ainda.-Meti o senhor nisso tudo sem nem perguntar nem nada, desculpe.

Ele balançou a cabeça negativamente, bem de leve, como se fosse um “não tem problema”. O carro voltou a andar e logo pegamos outra rua que eu não conhecia.

-Professor, por favor, não conte para ninguém sobre meu pai, senão ele vai parar de receber a ajuda do governo e vai colocar logo toda a culpa em mim.-Eu disse enquanto ele fazia outra curva e mais a frente, outra. Eu já estava completamente perdido ali.

Depois de algum tempo finalmente paramos na frente de uma casa. Eu apenas reconheci o quintal, e foi o bastante para saber que era a casa de Berwald. O mesmo saiu de dentro do carro, e quando eu me preparei para sair, ele abriu minha porta e me pegou nos braços antes que eu pudesse fazer alguma coisa.

Lógico que eu poderia andar só, embora os ferimentos tivessem sido abertos, estivessem sangrando e todo meu corpo doesse, mas eu conseguia andar. Mas não protestei, afinal, meu professor deveria ser muito assustador contrariado.

Ele empurrou a porta do meu lado do carro e então o fechou, apertando um botão na chave enquanto ia até a casa e abria a porta, passando pela sala e me sentando no sofá enquanto trancava a porta e afrouxava a gravata.

E só agora eu notara que ele ainda vestia a roupa que estava desde o colégio. Sapatos de couro escuro, calça social e uma camisa de mangas longas de uma cor simples, um azul-claro, e com uma gravata, agora bem mais frouxa e sobre uma das poltronas da sala. Berwald subiu as escadas e quando voltou tinha a caixa de primeiros socorros em mãos, a mesma caixa branca da vez anterior.

Ele puxou a poltrona para ficar bem na minha frente e então começou a fazer curativos rapidamente. Fitei ou o teto ou a parede ou o chão enquanto pude, mais uma vez temendo que ele estivesse próximo demais. Não que eu o rejeitasse, veja bem, não que eu quisesse afastá-lo ou aproximá-lo, acho que não fazia questão, apenas... Não era estranho ficarmos tão próximo assim?

Então, uma vez todo cheio de gaze e com os curativos velhos trocados, pelo menos os dos braços, alguns no rosto e uns poucos nas mãos, ele encostou as costas na poltrona e me fitou. Achei que já fosse pedir para que eu tirasse a camisa para ele ver os curativos do meu peito, mas ele disse outra coisa.

-Muitos cortes não estavam antes.

-É que... Meu pai não foi muito gentil. Mas logo vai sarar e então vão sobrar apenas cicatrizes, nada de mais.-Dei de ombros enquanto ele me fitava longamente, cruzando os braços.

-Não irá para a aula amanhã.-Disse de repente enquanto eu o lhe devolvia o olhar primeiro com confusão e depois com descrença.

-O quê? Por quê?!

-Não está em condições.

-Mas eu preciso ir! Senão vão ligar para o meu pai e ele vai ficar com raiva, além de que não posso perder matéria! É sexta-feira, o dia mais cheio, e eu também tinha que acertar o trabalho com meu grupo!

-Não vai, vai ficar aqui.

-Meu pai vai...

-Ele não está mais por perto. Você vai ficar e descansar. Eu cuido do resto.

-Mas...-Tentei reclamar, mas seu olhar era como um ponto final. Eu não ganharia aquela discussão não importa o quanto eu tentasse.-Tá bom então... Não tenho meu uniforme mesmo, e meus livros ficaram todos em casa. Quando eu voltar para lá...

-Você não vai voltar para aquela casa. Irá ficar aqui.

O fitei, sem acreditar. Tudo bem que eu não queria voltar, se voltasse seria muito pior, mas eu não tinha para onde ir, e se eu não voltasse, não teria o que comer nem nada, ficaria perdido por aí, mas... Morar com meu professor? Que eu só tinha conhecido fazia, o que, pouquíssimo tempo?!

-E-eu não posso morar com o senhor! Eu dou trabalho, como demais, choro e grito toda noite e ainda fumo maconha, não tem como o senhor me suportar!-Eu disse, arrumando qualquer desculpa e tentando ao menos evitar que aquilo fosse constrangedor.

-Não deixarei que volte.

-Mas se eu não voltar meu pai vai... Acho que ele vem atrás de mim no colégio ou então me expulsa logo de uma vez, e então, quem vai pagar meu colégio? Minhas despesas? Eu não tenho para onde ir senão àquela casa!

-Você não vai voltar. Resolveremos este problema mais tarde, por hora, você irá ficar aqui.-Ele disse então, se levantando e indo até a cozinha, onde pude ver que pegava um copo e uma garrafa sobre o armário mais alto, bebendo uns goles do que eu achava ser ou uísque ou conhaque. Quando voltou, parecia um pouco mais calmo, embora ainda sério.

Eu estava começando a me acostumar e a identificar os vários “sérios” que ele tinha.

-Tire a camisa.-Ele pediu, se sentando a minha frente novamente e esperando enquanto eu, ainda meio hesitante, levava as mãos até a camisa e a levantava pouco a pouco, finalmente a despindo e a deixando ao meu lado no sofá.

Acabei corando um pouco porque dessa vez meu professor não desviara o olhar, nenhuma vez, continuava me fitando diretamente ou nos olhos ou então passando pelo meu peito coberto de curativos.

Ele começou a trocá-los então, e teve uma hora que ele pediu que eu deitasse de bruços no sofá para ele trocar os das costas. Era estranho sentir a mão dele na minha pele, muito sensível por causa do estado machucado, mas mesmo ela parecendo ser pesada, era ágil e leve e até agradável de se sentir. Pensei se Berwald já não teria sido médico ou se era nas horas livres.

Ele então se levantou e se afastou enquanto eu me sentava novamente e vestia a camisa. Quando ele voltou, tinha algumas roupas nas mãos, as menores que tinha, eu acreditava, mas que mesmo assim tinham ficado enormes em mim pela nossa grande diferença de altura e de corpo.

Naquela noite, eu novamente dormi no quarto dele, e ele no sofá da sala. Me culpei, mas dessa vez tive o cuidado de lhe entregar um dos cobertores que estavam sobre a cama, para que ele não sentisse frio.

Não demorei a dormir, e mesmo ainda tendo aquele mesmo sonho com aquela silhueta da qual eu não conseguia identificar nada, além da neve e do sangue, não pareceu tão ruim, e na manhã seguinte, quando acordei e andei pela casa, não o encontrei, já que tinha acordado relativamente tarde.

Fui até o sofá e me sentei, esperando o tempo passar, e olhei para a frente e vi que a mesa de centro tinha uma gaveta que estava semi-aberta. Tentei fechá-la, mas algo parecia estar impedindo, então a abri e vi tudo que tinha dentro.

Fotos, muitas fotos, quem sabe todas as fotos que ele tinha, todas desorganizadas e algumas rasgadas e outras até parecendo ter sido queimadas. Peguei algumas, reconhecendo ele e outro rapaz na maioria, mas então as deixei de lado. Não deveria estar mexendo naquilo, então vi o que impedia a gaveta de fechar: Uma caixa com a tampa aberta.

E dentro da caixa, havia um pano, acho que uma camisa rasgada, e protegido pelo tecido havia um colar de contas com uns símbolos do natal que, não sei porque, mas me soou bastante familiar.


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Notas finais do capítulo

Eu sei que hoje não é sexta, eu sei, mas como algumas leitoras me pediram para que eu postasse mais cedo (eunãoresistoaisso) e como eu tinha atrasado da última vez, acho que nada mais justo de adiantar dessa vez.Enfim, este chap foi maior que o normal, espero que gostem, e é o meu preferido porque o Su-san dando uma de f**** e salvando o Tino, tipo assim, me sedux MUITO!Enfim mais uma vez, espero que tenha gostado! Ah, e é oficial,o próximo chap sai MESMO sexta-feira, não nessa dessa semana (04/02) e sim só na outra, então espero vocês lá.MEREÇO REVIEWS? SEJA UM LEITOR LEGAL E MANDE REVIEW! Mesmo que seja pequenininha mesmoKISSES E DANKE!