Segredos Submersos escrita por lovegood


Capítulo 34
A flor e a caixa




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– Então, o que você faz?

O modo o qual a pergunta saiu da boca do rapaz sentado no banco do motorista era casual, mas o modo o qual ele me observava, não.

Sou uma bruxa que ajudou a derrotar o Lorde das Trevas e recentemente descobriu ser filha do deus dos mares, pensei. Minha vida se resume a sempre entrar em situações de vida ou morte, sabe como é – ficar decifrando profecias e tentando salvar o mundo de um apocalipse generalizado em meu tempo livre, quando estou fora da escola de magia na qual eu estudo.

Hesitei levemente ao ouvir a pergunta. Não sabia dizer se essa hesitação se devia ao fato de eu ter de elaborar uma pequena mentira para responder o rapaz ou pelo simples nervosismo de estar espremida em um carro com quatro estranhos trouxas que obviamente tentariam se aproveitar de mim mais tarde. Talvez fosse os dois.

– Eu sou estudante – foi o que eu acabei respondendo, com um sorriso amarelado. Não deixava de ser verdade.

– Tá na faculdade? – um dos caras ao meu lado perguntou. Apenas assenti. – Faz o quê?

– Hã... engenharia? – eu não soube a princípio dizer a razão de tal escolha, o que fez com que minha resposta soasse mais como uma pergunta. Soltei um leve pigarro e aprumei-me no banco. Ambos os rapazes em meus lados sentavam-se de modo bem desleixado, com as pernas abertas que propositalmente acabavam encostando nas minhas.

Tentei não encará-los – já que o olhar malicioso de todos eles pareciam congelar minha espinha – e apenas olhar para a frente, para a rua adiante. A carona era só até o centro da cidade, logo eu me veria livre deles, pensei.

(Iria mesmo?)

Ficamos em silêncio por mais alguns instantes, os olhares de todos grudados em mim, o som abafado e baixo de Enter Sandman sendo a única coisa quebrando aquela quietude. Meus dedos involuntariamente tamborilavam meu joelho, seguindo o ritmo da música.

Por mais que eu não conhecesse as ruas de Baltimore, logo eu acabei por perceber que as ruas pelas quais o motorista seguia não pareciam ir em direção ao centro da cidade. Tive a leve impressão que ele estava indo ao lado oposto, na realidade. Xinguei a mim mesma por ter pensado em pegar essa carona.

Uns dez minutos mais tarde, o rapaz encostou o carro em um acostamento de uma rua não movimentada. Ele e o que sentava-se no banco de passageiros se entreolharam novamente, sorrindo.

– Não acho que aqui seja o museu de arte de Baltimore – falei, como se não fosse óbvio.

– Pois é – comentou o motorista, dando de ombros. Seu gesto era forçado e fingia pedir desculpas. – Acho que a gasolina acabou.

Ele nem se esforçava para fazer com que isso soasse verdade. Resisti ao ímpeto gigantesco de revirar os olhos.

Os que estavam sentados ao meu lado aprumaram-se e aproximaram-se de mim. Como eu estava entre eles, logo senti meu espaço pessoal ser invadido e outro alarme acender em minha cabeça. As pernas de ambos roçavam nas minhas e as respirações de ambos também pareciam muito próximas do meu pescoço. Que eles sejam apenas caras tarados que mal saíram da adolescência e ainda não conseguem controlar uma ereção, pensei. Porque aí eu saberia lidar com tal situação com relativa facilidade – escapar de meros trouxas era algo simples. Que eles sejam apenas trouxas/mortais em suas vidas irrelevantes, e que por favor não acabem se tornando monstros olimpianos liderados por Pallas ou pelo negro careca – que em meus sonhos se tornava um branco de olhos azuis e cabelos castanhos que assoprava areia em meus olhos – que eu e Annabeth vimos na frente do museu.

Os dedos do cara à minha direita pegaram de leve em meu cabelo, acariciando-o. Assim que o soltaram, dirigiram-se à minha pele, descendo por minha mandíbula e pescoço em um leve arranhar. Desvencilhei-me de seu toque, respirando fundo, mas logo então o rapaz da esquerda foi quem tornou a pegar em meu cabelo. Dei um leve tapa em sua mão, fazendo com que ele me soltasse.

– O que foi? – perguntou o da esquerda, sua boca roçando meu ouvido e seu dedo agora traçando as linhas de minha clavícula. Os outros dois que sentavam no banco da frente apenas sorriam, dividindo olhares cúmplices e divertidos. – Vai me dizer que você é a que se faz de difícil? É comprometida?

– E se eu for? – retruquei, agora bruscamente arrancando sua mão de cima de mim e o encarando. Por um instante hesitei, já que eu obviamente não era comprometida (mas e Percy?, uma voz a qual eu ignorei pareceu dizer bem no fundo de minha mente). Ainda assim, tentei manter o olhar duro e desafiador. Pareceu dar certo.

– Uau, desculpe então! – disse o da esquerda, erguendo as mãos em um gesto (irônico, diga-se de passagem) de rendição e afastando-se de mim. Sorriu, zombeteiro, passando um dos braços pelos meus ombros. – Mas acho que não vai fazer diferença...

Então ele pegou meu rosto com as mãos e o puxou em direção ao dele, como se tentasse me beijar. Apenas segui meus instintos e espalmei a face dele, empurrando sua cabeça para trás e – acidentalmente – fazendo-a bater contra a janela.

A cena que se desenrolou foi rápida demais para eu compreender propriamente.

Uma fração de segundo após ele ter batido a cabeça no vidro, todos os quatro súbita e simultanemante olharam para mim furiosos e passaram a sibilar. Seus olhos tornaram-se diferentes, quase animais.

Pelo visto eles não eram humanos.

Merda, foi a única coisa em que consegui pensar. Arranquei a faca de bronze celestial de meu bolso e enfinquei-a no pescoço do da direita – fazendo com que ele logo se tornasse pó – antes que os outros se transformassem em Fúrias raivosas e sibilantes.

A Fúria que antes era o homem que tentou me beijar (ou talvez ele nem fosse me beijar, talvez simplesmente arrancaria minha cabeça com os dentes ou algo parecido) agarrou meu pescoço com força, fazendo com que eu caísse deitada no banco e empurrando-me contra o assento, enforcando-me. Ela agora estava por cima de mim e rosnava. Gotas de saliva de Fúria respingaram em meu rosto. Eu balançava meus braços desajeitadamente, em uma mistura entre tentar agarrar a criatura com as mãos e tentar esfaqueá-la.

Graças aos deuses, eu eventualmente consegui a última opção. Os restos da Fúria se esfarelaram em cima de mim, caindo sobre meu colo.

Como agora todo o banco traseiro estava vago – considerando que os “rapazes” que estiveram lá agora deviam estar no Tártaro –, minha primeira reação foi empurrar a porta do carro com força, abrindo-a antes que as Fúrias do banco dianteiro se jogassem em cima de mim. A porta se escancarou e eu caí do veículo, apressando-me para levantar. As duas restantes em seguida saíram do carro também, sibilando.

– O que vocês querem? Pelo amor dos deuses! – gritei, desviando-me de uma investida das Fúrias. Elas apenas sibilaram, sem responder. Era para ser uma pergunta retórica, afinal.

Comecei a correr pela rua, elas me perseguindo. A princípio consegui fugir e me defender quando precisava, mas logo fiquei cansada e percebi que apenas a faca celestial era pouco. Tive de sacar a varinha.

Estupefaça! – gritei, atingindo ambas as criaturas em cheio. Elas caíram no chão com um estrondo, inconscientes, suas asas de morcego cedendo. – Incarcerous!

Fortes cordas amarraram os monstros, enquanto ainda estavam inconscientes. Sabia que isso não seria o suficiente – logo elas acordariam e facilmente se soltariam, isso eu tinha certeza –, mas servia como algo temporário. Apressei-me a correr até o local onde elas caíram. Esfaqueei-as, tornando-as em pó, antes de serem capazes de acordar.

Soltei um alto suspiro quando tudo acabou. Olhei ao redor, a rua permanecia deserta. Tudo parecia tão quieto e simplesmente normal, que até me pareceu estranho. Mal dava para notar que acabara de ocorrer uma luta ali. E era óbvio que eu agora estava ainda mais distante do centro da cidade. Ótimo, parabéns Hermione.

Esfreguei o rosto, tornando a guardar a varinha e a adaga. Assim que tirei as mãos dos olhos, meu olhar se encontrou com o olhar de uma pessoa do outro lado da rua.

Merda, pensei novamente. Então alguém pelo menos havia visto o decorrer da luta, mas não era um trouxa qualquer (graças aos deuses). Era um negro alto e careca, observando-me ao longe, observando-me do mesmo modo que na escadaria do museu em que eu estava com Annabeth.

Eu não tiraria meu olhar dele agora, não desta vez. Eu não podia correr o risco de perdê-lo outra vez, não quando eu sentia a importância dele para conseguir encontrar meus amigos ou até encontrar respostas para todos os acontecimentos recentes de minha jornada.

Comecei a andar, atravessando a rua em passos decididos e firmes.

– Ei! Você! – gritei para chamar sua atenção. Ele provavelmente não responderia, mas era necessário tentar.

E ele não respondeu. Apenas deu as costas e começou a caminhar na direção oposta à minha. Fui atrás dele, apressando-me.

Andei várias quadras atrás dele, não que tenha dado certo. Parecia que quanto mais eu me aproximava, mais ele conseguia se afastar, sem que eu nunca o perdesse de vista. Ele estava sempre em minha linha de visão – a parte de trás de sua careca era até fácil de acompanhar –, mas meus passos nunca aparentavam ser o suficiente.

Não sei exatamente a distância que percorri andando atrás dele, o espaço e o tempo em si pareceram se distorcer nesses únicos momentos, com meus pensamentos totalmente focados em alcançá-lo. Entretanto, em pouco tempo vi-me em frente ao Museu de Arte de Baltimore, ao pé da escadaria em que eu estivera com Annabeth. Era até como se aquele homem houvesse me guiado até lá.

Eu permanecia seguindo-o, ainda em frente ao museu, embora agora houvesse se tornado mais difícil devido à grande movimentação de pessoas. E aos poucos, o homem parecia conseguir se distanciar cada vez mais.

Fui forçada a parar quando uma mulher esbarrou em mim, o que fez meu olhar se desviar involuntariamente por um único e rápido instante. Ao tentar buscar o homem novamente no meio da multidão, ele havia desaparecido.

Puxei meus cabelos com a frustração, grunhindo. Segurei minha boca para não soltar altos palavrões no meio de tanta gente, e suspirei. Eu estava sozinha – não havia sinal de Annabeth por lá, provavelmente ela adormeceu e acordou em outro local ao mesmo tempo em que isso ocorria comigo – e sem a mínima ideia do que fazer para encontrar tanto o careca misterioso quanto meus amigos.

Acabei por subir a grande escadaria que levava à entrada do museu, ao mesmo tempo que sentia o desespero subir por meu peito, aumentando a cada instante. Todavia, a frustração pareceu esvair momentaneamente assim que um dos cartazes de exposição do museu chamou minha atenção.

Uma olhada maior na mitologia grega, dizia. Um fluxo de excitação subiu pelos meus ossos, meu coração passou a bater mais rápido. Se eu não encontrasse nada decente nessa exposição, a ansiedade provavelmente me mataria.


O museu não estava tão movimentado quanto eu imaginei que estaria, mas ainda assim havia uma quantidade considerável de pessoas próximas de mim durante a visitação.

O ambiente frio trazia uma sensação etérea, uma certa impressão onírica do local. Como se a minha presença lá não fosse realmente física ou palpável. Nada parecia exatamente concreto, mas ainda assim cada uma das sensações que eu tinha era incrivelmente singular e identificável – o modo como os passos dos outros se arrastavam e ecoavam no chão gelado (eu estava de sapatos, mas ainda assim sabia o quão frio o piso estaria caso descalça), uma breve lufada do aroma de um shampoo chegando em meu rosto, assim que a jovem à minha frente jogou o cabelo por cima do ombro...

Parecia algum tipo de paradoxo, alguma coisa irreal se aflorando no local. De qualquer modo, eu sabia que aquilo não era um sonho – aquela era a realidade, eu estava acordada! E disso eu tinha certeza... –, mas estava tão perto de um! Aquilo não era natural, uma força externa estava causando tais impressões em mim, como se superficialmente me controlasse. Da mesma forma que estivera me persuadindo em meus últimos sonhos, quando eu adormecia sem nem saber como.

E talvez não estivesse controlando apenas a mim. Quem sabe os outros ao meu redor não estivessem sentindo a mesma coisa? Tendo sensações diferentes, mas não diferentes o suficiente para ser completamente perceptível. Algo controlava essa região... (seria o homem a quem eu passara os últimos minutos tentando alcançar?)

Respirei fundo, tentando tirar aquele peso de minhas pálpebras. Momentaneamente, toda aquela sensação onírica do local se esvaiu, fazendo com que tudo parecesse voltar ao normal (ao real) outra vez.

Observei o conteúdo em exposição. Havia pinturas, esculturas, instrumentos antigos. A guia do museu explicava tudo minuciosamente.

Após poucos minutos de lucidez, aquela impressão estranha voltou a cair sobre meus ombros. Meu olhar se desviou do grupo de turistas, da guia e dos objetos, voltando-se a uma pequena coisa colocada no chão, um pouco mais distante de onde eu estava.

Eu não exatamente conseguia distinguir o que era, portanto aproximei-me.

Eram duas coisas diferentes, na realidade. Uma pequena caixa tampada e uma flor, com grandes e espaçosas pétalas vermelhas – papoula, reconheci. Estavam dispostas uma ao lado da outra perfeitamente, ou seja, haviam sido deixadas ali de propósito.

Levantei os olhos, e a primeira coisa que eles encontraram à frente foi um quadro. Aproximei-me dele, com a sensação de que esta pintura de alguma forma se ligava à caixa e a flor. Nele estavam retratados dois homens, adormecidos um ao lado do outro em um quarto. Não pude deixar de notar as feições serenas de cada um. Tornei a observar a pequena placa de identificação da obra.

Hipnos e Tânatos, de John William Waterhouse (1874).

Peguei a papoula e a caixa, abrindo a tampa da última. Dentro dela, havia apenas areia.


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