Amor na Escuridão escrita por Marcela


Capítulo 4
Capítulo 4




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     — Alice!

     A voz estrondosa de Mariana não foi alta o suficiente para tirar a amiga do transe. A pesada bola de basquete atingiu Alice na cabeça, derrubando-a no chão. Foi possível ouvir algumas risadas de uma parte das meninas da equipe. Outras foram ajudá-la a se levantar. Mariana não fora uma delas.

     — Você está com a cabeça aonde? — começou a se dirigir em direção à morena que ainda se levantava cambaleante. — Que saco, Alice! Nem no jogo você está prestando mais atenção!

     — Desculpe-me. Não foi minha intenção estragar sua jogada. — ela respondeu sinceramente.

     — Ah, que bom! — disse sarcasticamente — Era só o que faltava isso ter sido intencional! — Alice podia jurar ter visto fumaças saírem das narinas da amiga.

     A professora de educação física resolvera entrar no meio para apartar a discussão, mandando todas as meninas irem para casa. As respectivas aulas e jogos eram realizados à tarde, após o almoço. Garotos e garotas não jogavam juntos, somente se reuniam nas aulas. Era dia de treino para o jogo de basquete feminino e Alice deixara Mariana irritada com a sua falta de atenção.

     — Porém, não foi só minha jogada que você estragou. Acabou com o treino, também. Muito obrigada. — Mariana tirou o colete e o jogou furiosamente na arquibancada.

     Alice entendia bem aquela atitude da amiga. — Sinto muito. — sussurrou para si mesma, pois ninguém mais ocupada o ginásio, exceto pela própria professora, que vinha ao seu encontro.

     — Não foi só a Mari que percebeu essa sua distração, Alice. — ela disse, segurando os coletes nas mãos. — Precisa ficar mais atenta no que está fazendo. As meninas estão se esforçando muito para ganhar esse jogo. Não tire isso delas. — passou o braço livre nos ombros da aluna. — Conheço você, querida. Sei que é capaz de vencer. E quero que me mostre isso.

     Um simples “ok” fora tudo o que Alice respondera, antes de sair de cena.

***

     No dia seguinte, as duas não se falaram durante toda manhã. Alice fizera os cálculos: sua falta de atenção + tensão pré-menstrual de Mariana = problema na certa. Só lhe faltava coragem para desabafar com a amiga sobre o que estava acontecendo. Ela estava se apaixonando por um suposto assassino. E ele estava sentando no mesmo lugar em que sentava todos os intervalos: na arquibancada do ginásio. E, como sempre, não prestava atenção no jogo.

     Alice o avistou de longe e andou apressadamente ao seu encontro, sentando-se ao seu lado. Ele foi o primeiro a falar.

     — Oi. — sorriu de canto, sem olhar para a morena.

     — E aí? — ela respondeu ofegante.

     Fim do diálogo naquele momento. Bernardo tinha os olhos fixos em seu i-pod. Estava jogando alguma coisa que Alice não se importou em descobrir o que era. Reparou nas madeixas pretas que cobriam levemente os cortes em seu rosto. Fazia mais de uma semana que aquilo tudo tinha acontecido. As feridas já estavam quase fechadas e seus olhos desinchados. Alguns hematomas estavam pintados em sua face, porém não eram suficientes para deixar sua beleza passar despercebida.

     A dona dos olhos verdes escorregou o corpo para mais perto do colega e sorriu. — Por que não está assistindo ao jogo? Os outros meninos aqui da arquibancada não param de babar nas jogadoras. — ela disse a última parte baixinho para que só ele fosse capaz de ouvir.

     — O meu jogo aqui está bem mais interessante. Além do mais, essas meninas aí não me interessam. — respondeu com desdém, mas sorriu ao olhar para Alice.

     — Uau! — a morena soltou uma risadinha nervosa — Quer dizer quem já tem alguém que lhe interessa? Quem é a garota de sorte? — deu um leve toque na barriga dele com seu cotovelo.

     — Garota de sorte... — o moreno riu ironicamente — Bem, essa você vai ter que descobrir sozinha.

     — Sem dicas? — ela mordeu o lábio inferior percebendo que o assunto chegara aonde era pra ter chegado.

     — Sem dicas. — respondeu e guardou o aparelho eletrônico no bolso da calça. — Parou de ir à biblioteca?

     — Hã? — Alice demorou a reparar que ele havia mudado o assunto. — Ah, eu só vou pra lá às sextas. Eu e minha amiga temos isso como lei.

     Bernardo parou um pouco. Correu com os olhos pelo pátio e voltou a olhar Alice. Sorriu novamente. Coisa rara.

     — Aquela que vive grudada em você?

     — Não sabia que reparava tanto nessas coisas. — a voz da garota saiu com um tom de espanto.

     — Difícil não reparar. — seu sorriso ainda estava à mostra. — Você ainda não respondeu minha pergunta.

     — Sim, é essa mesma. Mas agora ela ta lá, com a cara virada pra mim. — Alice projetou um beicinho.

     — Por quê?

     Ela, definitivamente, não queria responder essa outra pergunta. Não queria admitir que estava apaixonada por ele. Não queria admitir isso a ele nem a ninguém. Era difícil para ela mesma aceitar essa realidade.

     — Não sei. — mentiu.

     — Vá falar com ela. — Bernardo aconselhou. — Não precisa ser agora. Mas não deixe de resolver isso. Amanhã pode ser tarde demais. Vai por mim.

     Suas palavras fizeram Alice estremecer. Sabia que ele estava falando de alguém que se fora. Sabia que era do seu amigo. Seu melhor amigo. E sua provável vítima. A morena se ajeitou no assento e colocou uma mecha do seu cabelo para trás da orelha.

     — O que foi? — o dono dos olhos negros perguntou.

     — Nada. — Alice respondeu enquanto se levantava. — A gente se vê. — se despediu mexendo nos cabelos do colega, fazendo-os ficarem desalinhados.

***

     Sexta-feira. Não havia mais ninguém na biblioteca, exceto um garoto sentado na sessão de horror lendo Os Estranhos. Bernardo olhou para seu relógio e notou ser tarde demais para Alice chegar. Bufou e continuou a ler o conto que ela estava lendo há alguns dias atrás.

     Achava interessante uma garota como ela gostar de um gênero como esse. O jeito meigo dela não combinava com seu gosto por terror. Fora por esse motivo que ele decidira ler o último livro que a morena tocara na biblioteca.

     Bernardo estava se sentindo angustiado. Não conseguia entender o motivo de Alice insistir em ficar perto dele quando ninguém mais o fazia. Em um momento, se pegou pensando que talvez tenha sido bom a garota o ter acertado com a porta do carro. Se não fosse por isso, ele não teria companhia para ler livros às sextas.

     Porém, essa sua companhia não chegava. Eles não tinham marcado se encontrarem lá, mas o moreno estava começando a ficar preocupado. Alice não falara que não iria, por isso ele ficara esperando-na. Queria acertar algumas coisas que ficaram pendentes.

     Foi quando ele ouviu socos vindos da porta da entrada principal. Havia esquecido que a trancara por não haver mais clientes naquele dia. No último dia útil da semana, Bernardo tomava conta do local sozinho. Ficava encarregado de fechar quando desse o horário. Entrava para trabalhar às seis e saía meia noite.

     Bernardo não tinha condições de pegar o celular no bolso e ligar para uma ambulância. Na realidade, ele não queria fazer isso. Não queria que soubessem que fora o primeiro a chegar na cena do crime. Sabia que se tornara o principal suspeito do assassinato de Paulo desde o momento em que chegara em sua casa. Porém, só ele sabia quem era o verdadeiro culpado.

     Logo depois que o tiro lhe atingiu no ombro, o assassino correu para a porta dos fundos e fugiu. Seus joelhos foram de encontro ao chão. O choque o machucara e ele quis gritar com a dor do ferimento. O sangue começou a pingar no carpete, formando uma rosa vermelha no chão.

     No momento em que vira Paulo estendido no chão, seu coração vacilara. Foi como se sentisse que aquela pulsação fosse a última das seiscentas e cinqüenta milhões de sua vida inteira.

     O moreno conseguiu se levantar com muito esforço e caminhou cambaleante até seu melhor amigo morto. Na primeira vez que o vira ali, não notara a arma jogada ao seu lado. Não notara a mancha de sangue no mesmo lugar onde o assassino estava parado em pé. Talvez ele também tenha sido baleado. Baleado por Paulo.

     Bernardo nunca soube que Paulo guardava um revólver em sua casa. Nunca soube que algo que parecera ser tão simples o traria grandes problemas e uma dura realidade para se conviver ao longo da vida. Se soubesse que sua decisão causaria tamanha conseqüência, nunca teria aceitado a fazer parte daquilo.

     Ao chegar perto do corpo mórbido, o dono dos olhos pretos caiu de joelhos novamente e tocou a ferida em seu coração. Sua mão ficou enodoada de sangue e seu rosto enodoado de lágrimas que escorriam. Paulo tinha os olhos fechados e, se não fosse pelo ferimento em seu peito, Bernardo acharia que ele estava dormindo. Tinha a face serena como a de uma criança que descansava tranqüilamente após um dia cansativo de brincadeiras.

     Então Bernardo pode ouvir o som metálico das sirenes de uma viatura da polícia se aproximar. Sua mão de sangue se dirigiu automaticamente para seu bolso para arrancar o pacote dali. O colocou no bolso do casaco de Paulo.

     Não iria pagar por um crime que não cometera. Não na prática.

     Os socos na porta continuavam. O som trouxe a lembrança de sua mãe batendo na porta da ambulância quando esta foi resgatá-lo na casa de Paulo. A tentativa de reanimar seu amigo fora inútil.

     Bernardo se levantou rapidamente e correu para a entrada da biblioteca. Encontrou Alice desesperada ali fora. Ela estava molhada por causa da chuva que o moreno não notara que estava caindo naquela noite. A dona dos olhos verdes caiu em sua direção após ele ter aberto a porta. Ele a segurou com firmeza e a apertou contra seu peito.

     Alice estava tremendo e chorando.

     — O que aconteceu? — Bernardo perguntou levantando seu queixo para que ela pudesse olhar em seus olhos.

     Não houve respostas. Não até que a morena caísse em si e se afastasse do corpo do colega.

     — Por que demorou tanto pra abrir essa maldita porta? — ela gritou enquanto o fuzilava com seus olhos cor de esmeralda. — Aliás, o que ela estava fazendo trancada? A biblioteca só fecha meia noite!

     — Ei, calma!

     Suas mãos precisaram segurar os braços agitados de Alice, que começou a desferir socos em seu peito. — Tem noção do frio que está lá fora? Tem noção das pessoas que estão lá fora? Tive que vir correndo como uma louca pra cá.

     Bernardo não viu nenhuma outra solução para acalmá-la senão beijá-la. Apertou seus lábios nos lábios da garota ainda segurando os braços dela com força. Por um momento, pensou ter conseguido amenizar a raiva da fera, mas Alice reagiu e se soltou das garras do moreno. Com um soco, ela atingiu o ombro dele bem na região da cicatriz. O garoto gemeu de dor e caiu no chão.

     — Bernardo? — a morena se ajoelhou assustada ao lado dele. — O que eu fiz? Machuquei você?

     — Machucou, sua anta! — ele respondeu ainda com dor.

     Alice se levantou com raiva fazendo Bernardo se levantar também.

     — Brincadeira! — o moreno começou a rir histericamente. — Você não me machucou não, boba.

     — Babaca.

     — Assim você fere meus sentimentos.

     — Essa é a intenção.

     Então Alice se dirigiu até a sessão de contos de horror, como sempre fazia. Bernardo a seguiu, fazendo o coração da garota acelerar. Ao ver o livro que estava lendo no chão, ela olhou para o colega.

     — Sim, eu comecei a ler também. Fiquei curioso pelo seu gosto literário. — ele sorriu — Quando eu acabar, te devolvo.

     — Mas eu comecei primeiro. — ela fez um beicinho — Ah, que seja.

     Os dois sentaram-se no chão e ficaram se encarando. Bernardo riu ao se lembrar do beijo roubado. Alice já imaginava o que se passava naquela cabeça pervertida e riu também.

     — Quero me desculpar por ter te chamado de anta.

     Aquilo pegou a garota de surpresa. Nunca pensou que o colega agiria dessa forma. Talvez tenha desejado um pedido de desculpas, mas não assim, tão cedo. Ela não disse nada e ele a ficou olhando. A expressão era ansiosa.

     — Você me perdoa? — insistiu.

     — Não tem como não perdoar. — Alice sorriu.

     — As pessoas nem me conhecem direito e ficam me julgando pelo que eu não sou.

     A morena escorreu o corpo para mais perto dele e pegou sua mão, tocando nas feridas quase cicatrizadas. Entrelaçou seus dedos e colocou a cabeça no ombro dele.

     — Não tem medo de ficar perto de mim? — Bernardo perguntou receoso.

     — Sei que você não é quem eles pensam. — ela respondeu com os olhos fechados.

     — Como pode confiar em uma pessoa que você nem conhece?

     — Confiando. — Alice olhou em seus olhos com firmeza. — Eu sei que não foi você quem matou seu amigo.

     O corpo de Bernardo se enrijeceu. Ele se afastou da morena e se se encostou à prateleira de livros. Os joelhos estavam apertados contra seu peito. Seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez, mas ele não queria chorar perante a garota de novo.

     — Ei. — Alice se arrastou para ficar ao lado dele. — Confie em mim. Posso ver em seus olhos que você é inocente.

     — Como pode ter tanta certeza? — sua voz saiu falha.

     A dona dos olhos verdes pegou a mão do garoto e a colocou em seu coração. — Ele me diz tudo. — respondeu sorrindo.

     Bernardo não conseguiu dizer mais nada. Alice enxugou as lágrimas que escaparam e ficou ao seu lado esperando a tempestade ir embora.

     — Ainda me sinto culpado pela morte dele. — a morena não disse nada, apenas esperou que ele continuasse. — Na realidade, eu tenho a maior parte da culpa. Não podia ter aceitado a droga que ele me ofereceu. Eu nem cheguei a experimentar.

     Bernardo se levantou, mas continuou encostado na prateleira. Alice se levantou também, desta vez um pouco afastada do colega.

     — Paulo estava metido com essas coisas. Disse que eu precisava pagar logo o pacote, se não iria dar problema. Mas eu me arrependi de ter comprado. Vi vários colegas morrerem ou se darem mal por causa das drogas. — ele suspirou — Então fui devolver aquilo para o Paulo. Cheguei tarde demais. Alguém já tinha acertado as contas.

     — Sinto muito. — Alice respondeu se encostando ao corpo dele. Apoiou a cabeça em seu peito e mordeu os lábios.

     — Não sinta. — ele soltou uma risada nervosa. — Era pra ter sido eu. Paulo era um cara legal.

     — Você também é. Ainda bem que não entrou nessa.

     — Não posso dizer o mesmo para ele. — Bernardo suspirou.

     Alice levantou a cabeça para olhar em seus olhos e sorriu para tentar amenizar a tensão. O moreno quebrou seu sorriso com um beijo, que desta vez fora correspondido pela garota. Ela acompanhou o ritmo de seus lábios com calma. Ainda podia sentir o gosto de sal que sua boca tinha, mas logo foi ficando mais doce.

     O nariz de Bernardo roçou a bochecha da garota que avançou, beijando-o com urgência. Alice enroscou seus dedos nos cabelos negros dele e ele a apertou em um abraço forte. Os dedos serpenteando as madeixas. A boca experiente e lasciva dele exigindo cada vez mais da dela.

     Alice passou suas mãos para as costas do moreno e o empurrou para a prateleira de livros, fazendo alguns destes caírem no chão. Porém, nenhum dos dois se importou com isso. Bernardo trocou de lugar com ela, prensando-a contra os livros.

     Só assim eles podiam se conhecer por inteiro. A dona dos olhos verdes deixou com que ele comandasse. Deixou com que ele se sentisse livre. Pelo menos uma vez. Naquele momento, era como se ambos fossem um só.

     Apenas um coração pulsando por duas pessoas.


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Notas finais do capítulo

Esse capítulo ficou um pouco maior do que eu esperava. Alcançou seis páginas no word! Pensei em dividí-lo em dois, mas talvez assim fique melhor. Coloquei tudo o que eu queria. Porém, a história não acabou. Esse foi o penúltimo capítulo. Espero que as coisas tenham ficado bem esclarecidas pelo Bernardo. Espero também que tenham gostado! Um beijo.

Só pra esclarecer uma dúvida: Bernardo e Alice apenas se beijaram na biblioteca, ok? Nada demais não, pelo amor. É que às vezes eu me empolgo e acabo descrevendo a cena demais. Hahahaha. É só isso.