Grinder escrita por AHB


Capítulo 2
Capítulo 2




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Próximo à Bela Cintra com a Paulista, 18:00, 28 de outubro de 2010.

As pessoas eram indiferentes umas as outras em meio a multidão apressada se movendo feito um grande rebanho humano pelas ruas, mas eram especialmente indiferentes à massa de esquecidos. Era até engraçado que aquela Igreja opulenta na esquina da Bela Cintra mantivesse os portões fechados para evitar a entrada do mendigo deitado bem diante dos degraus de mármore. Do outro lado da avenida tinha um profeta do fim do mundo anunciando suas crenças. Uma cigana apertava uma criança miúda em seus braços ossudos, enquanto outra criança, vestindo farrapos, pedia esmolas para os transeuntes engravatados, portando suas maletas recheadas de assuntos mais importantes e enojados demais para não fazer nada além de atirar algumas moedas encardidas nas figuras encolhidas contra as marquises empoeiradas.

André procurou não olhar para os mendigantes, sentia-se mal por eles. Sentia-se mal por não ter dinheiro, nem fama, nem importância ou algum desses atributos que poderiam servir para fazer alguma coisa. Nem por um mero cão, tampouco por outras pessoas.

Passou os olhos pelas capas dos jornais e revistas numa banca, mesmo sabendo que ia encontrar pouca coisa de valor nas noticias. Sempre havia preferido mais livros que noticias, porque achava mais confortante saber “o que poderia ter acontecido se não fosse bem assim”. Achava que se tivesse feito um curso de Humanas ia acabar se afogando no excesso de “realidade”, porque a impessoalidade perfeccionista dos números também fazia parte de um universo particular, multidimensional, onde poderia refugiar-se quando não queria ouvir mais de nada, apenas resultados exatos, objetivos e belos.

Foi quando notou uma edição de bolso de “Alice Através do Espelho”. Como estava a um preço bastante acessível e nunca havia lido esse, resolveu comprá-lo. Se não estava enganado, era uma história em forma de uma partida de xadrez.

Guardou o livro com cuidado na mochila e encaminhou-se para o ponto de ônibus onde deveria pegar o 478P-10 de volta para casa. Teve que ficar em pé dessa vez, parado em frente a um banco ocupado por uma mulher de meia idade e uma garotinha loira que devia ser sua filha. A menina estava usando um vestido preto, com babados roxos e dourados e um chapéu cônico com uma lua estampada. Ela parecia muito contente segurando um bastão com uma estrela na ponta. Provavelmente devia ter havido uma festa de Dia das Bruxas na escola da garota.

André olhou através do vidro do ônibus, algumas pessoas com bandeiras de políticos estavam

fazendo campanha para as eleições de domingo, outras vendendo coisas em esteiras abertas na rua.

Alice, pare com isso! – a mulher falou para a garotinha e André notou que ela estava agitando a varinha com a estrela em sua direção. Quando percebeu que o rapaz estava olhando para ela, arregalou seu olhos castanhos e redondos. A mãe respondeu por ela:

Moço, desculpa. A Alice é muito arteira.

Não tem problema. – André respondeu, sem jeito. Um lugar vagou um pouco mais para atrás e ele conseguiu sentar. Notou que até chegar o ponto das duas, Alice continuou o observando, tampando um olho, ora o outro, como se tivesse algo de errado com a imagem do rapaz. Quando a mãe a pegou no colo e desembarcou, André ouviu a voz infantil comentando:

Mas tinha olho de bicho, mamãe, e ia machucar ele.

Rua Dr. Afonso Pedroso, Lapa, 20:02, 28 de outubro de 2010.

Havia acontecido mais de uma vez naquele dia, essas impressões estranhas. Começou com o cão, então ao chegar do trabalho, o recado no celular e a menina no ônibus. André caminhava depressa, agitado. Quase foi atropelado ao atravessar a rua e o xingamento do motorista perdeu-se na escuridão crescente da noite sobre a cidade. Tinha alguma coisa de errada acontecendo com sua cabeça. O celular tocou mais uma vez, agora era uma ligação, o nome anunciado era o de Helena.

Alô? Lena?

Silêncio. Não teve certeza se era um ruído na linha ou algum tipo de interferência, mas estava ouvindo um som de respiração, sôfrega e pausada, uma criatura ferida.

Lena, não tem graça. – percebeu uma nota de medo na própria voz. Apertou o passo, estava a poucas quadras de casa. Logo adiante estavam dois meninos observando alguma coisa no chão.

Desligou. Talvez tivesse caído a ligação. Talvez Helena estivesse chateada porque ele não havia respondido a mensagem anterior dela. Discou o número. Tocou uma, duas vezes. Já estava quase alcançando os garotos agora.

Alô? – Helena atendeu a ligação. A voz dela estava um pouco rouca, mas parecia normal.

Lena, você me ligou?

Não. Você vem aqui sábado? Eu preciso falar com você.

Tudo bem. Quarta eu procurei você na USP, mas...

Eu não fui em aula nenhuma essa semana.

Quer que eu vá aí, agora? Eu falo com minha mãe, está um pouco de trânsito, mas posso ficar aí com você se estiver prec...

Não, não. André, você tem trabalho amanhã. Deixa pro sábado, por favor.

Por que você atura essa menina problemática, meu bem?

André parou de andar de repente, assustando os meninos. Eles correram para dentro da porta aberta de uma casinha voltada para a rua. Ao mesmo tempo em que a voz desconhecida interrompeu a ligação, o rapaz percebeu o que havia atraído a atenção dos dois garotos.

O corpo de um cão vira-lata jazia sobre uma mancha de sangue ressecado na calçada.

Nauseado, vacilou alguns passos e procurou se afastar. Ouviu a voz de Helena, agora parecendo preocupada:

Aconteceu alguma coisa aí?

Tinha um... eu tropecei. – considerou que poderia aborrecer a moça falar que havia visto um animal morto, possivelmente atropelado – Estou chegando em casa. Ei, eu comprei a continuação de “País das Maravilhas”, você vai querer ler depois?

Não estava certo mudar o assunto desse jeito, parecia que não estava se importando com o problema de Helena, mas não tinha muito o que fazer por ela naquele momento.

Seremos reis do outro lado do espelho? Você vem comigo?Lena respondeu e André sentiu um grande alívio ao perceber a nota de diversão no tom dela.

Vou sim. Lena, escute, preciso desligar, está tudo bem? Você não está... de novo?

Não. Até sábado. Abraço.

E desligou.

Casa, 20:15, 28 de outubro de 2010.

Filho, tudo bem? Como foi seu dia? – perguntou uma mulher bastante gorda, acomodada numa poltrona com alguns furos e rasgos, diante de uma TV que devia ser quase tão velha quanto o móvel. Ela sempre fazia essa pergunta quando o filho chegava em casa a tempo de encontrá-la acordada. André sentiu aliviado com a cena cotidiana e também porque depois de quase 24 horas sem vê-la, havia começado a imaginar uma cena em que encontrava o apartamento rodeado de curiosos, enquanto os paramédicos traziam o corpo da mulher que havia falecido durante o sono e seu filho desatento não havia percebido.

Normal, mãe. – André respondeu, afastando o terrível pensamento. Pretendia sair de casa assim que arrumasse um emprego definitivo. Sabia que a mãe não ia gostar nenhum pouco se o filho fosse embora, mas às vezes ele achava que se não estivesse por perto, ela se sentira mais incentivada a passear e conhecer pessoas, do que ficar eternamente esperando pela volta do rapaz.

Você parece abatido. – ela continuou, levantando da poltrona com certa dificuldade – Quer que eu esquente a janta para você?

Eu me viro, não estou com muita fome, sério. Faço um sanduíche.

Você é quem sabe, filho. – D. Eulália respondeu, aumentando o tom de voz gradativamente, sentando novamente e mudando para o canal da novela – Mas veja se tome cuidado, não vá ficar doente! Falo sério!

Vou guardar minhas coisas, janto logo em seguida. – André falou, depressa, antes que a mãe se agitasse ainda mais e brigasse com ele por não estar se cuidando direito.

André apertou um ponto da testa com os nós dos dedos, a dor de cabeça havia diminuído ao longo do dia e agora parecia estar voltando. Cansaço e poluição, para variar. Deixou os sapatos na porta do quarto e largou a mochila no chão logo que entrou. Acendeu a luz e quando se virou em direção a janela, notou a presença de alguém lá.

Quem é você? – perguntou – Como entrou no meu quarto?

Os lábios finos da jovem mulher curvaram-se ligeiramente para cima, em algo semelhante a um sorriso. Seus olhos amarelos e oblíquos estreitaram-se, dando a impressão de achar divertida a incompreensão e o medo de André.

Você me deixou entrar, André. Faz tempo já. O peculiar é que finalmente pude sair. – ela respondeu, como se soubesse o quanto ele detestava gente que falava de maneira críptica, querendo dar efeito às próprias palavras vazias. Mas as palavras dela não eram vazias, ela não estava escondendo nada de André, embora ele ainda não tivesse percebido.

A minha mãe...

Não se preocupe, meu querido, ela está bem e não sabe que estou aqui. Ela também não pode me ver, tampouco me ouvir. Agora, interessante você pensar sem o menor escrúpulo na morte dela.

André estava escorado contra a parede do quarto, fechou a porta devagar. Suas mãos estavam úmidas e trêmulas e mesmo que não tivesse ideia do que estava acontecendo, achou razoável Eulália não pensar que o filho estava falando sozinho.

Eu quero que v-você vá embora. – o rapaz gaguejou. A figura sentada na moldura da janela jogou a cabeça para trás e riu com gosto.

Não, você não quer. – ela saltou da janela para dentro do quarto e aproximou-se de André até suas faces ficarem a pouco mais de uma polegada de distância – Não está exultante que amanhã é sexta-feira? Você sabe que toda sexta-feira o João Novais vai a alguma festa?

Ela tocou com os lábios a testa de André, o que fez o jovem encolher-se ainda mais, como se quisesse afundar na parede. O toque dela era frio e trazia a tona gritos internos e a sensação de que uma mão cuja palma estava cheia de pregos apertava-lhe o peito.

Não, eu não quero saber. – ele murmurou, agora quase cego pela sensação de latejamento nas têmporas.

Ele estava chorando de novo no banheiro do colégio quando foi descoberto por um colega de um ano mais novo.

Por favor, não faz isso! – André pediu aos garotos que haviam aberto a porta do box com chutes, destruindo o pequeno trinco que ele havia acreditado ser capaz de separá-lo do resto do mundo. Eles estavam rindo porque conforme o garoto tinha tentado barrar a porta, ela havia voltado-se contra ele e agora seu nariz estava sangrando.

Já tinham visto o sangue dele antes, então não tinha mais importância, não era um limite.

André tentou lutar quando foi agarrado pelos braços por três dos rapazes. O quarto, o maior do grupo, abriu a tampa da privada com o pé.

A gente vai limpar esse nariz para você, Andrézinho.

Você vai aprender a não ser chorão.

O palavrão proferido por André foi abafado pela água.

A mulher afastou-se de André e sentou displicentemente na cadeira em frente ao computador do rapaz. Ele havia encolhido os joelhos contra o corpo e começado a soluçar baixinho.

Como que você deixou eles fazerem aquilo com você?

André ergueu o rosto, como se não acredita-se nas palavras da mulher:

Eles estavam em quatro e eram todos maiores que eu. O que eu podia fazer? O pai do Novais é um advogado famoso, não ia dar em nada um processo contra ele.

Ela riu, o que fez André fechar a cara. Queria se livrar daquela... coisa. Quanto mais olhava para ela, para a figura magra e alquebrada, mais raiva sentia.

Vem jantar, meu filho!Eulália chamou e quando André piscou os olhos, viu que estava sozinho.

22:10.

Ver pessoas que não existem é coisa de gente insana.” André repetia internamente várias e várias vezes esse pensamento. Procurava explicar o que havia acontecido para si mesmo e acreditava que a aparição daquela estranha mulher era resultado dos abalos emocionais que havia sofrido.

A chegada de João Novais fora completamente inesperada e era algo que desestabilizava André. Das poucas vezes que o havia visto nos últimos dois dias, sentira um desprezo profundo pelo rapaz. E fúria.

Sabia que vingança era algo complexo demais para ser meramente instintivo, ao mesmo tempo que dava a impressão de haver uma criatura raivosa prestes a fugir de seu controle e fazer Novais pagar por tudo que fizera.

Eulália demonstrou-se inquieta com o ar contemplativo do filho. Perguntou várias vezes o que estava acontecendo com ele, se havia acontecido algo com Helena, se eles haviam brigado. André já havia apresentado a mãe e a amiga, mas a mulher implicava com Lena, a considerando má-influência para André. Pensava também que os dois jovens eram namorados. Não que André ficasse preocupado com isso, muitas vezes ele mesmo era incapaz de distinguir o que havia entre ele e Helena.

Tipo aquela vez que você ficou pelado com ela e não fizeram nada?

O rapaz teve um sobressalto e puxou a cortina do chuveiro. Aquela mulher estranha, de voz sedutora e olhos irreais estava sentada sobre a bancada da pia do banheiro. Suas pernas finas estavam cruzadas e o rosto apoiado na mão direita espalmada. Olhava para André de forma tenra.

Eu não estou vendo você.

Está sim, André. – ela falou, não despregando os olhos dele enquanto o rapaz buscava uma toalha – Se quiser pode tocar em mim e ver como sou tão real quanto você ou esse banheiro.

Ela esticou uma das pernas, mas André não tocou nela. Na verdade, não sabia o que estava acontecendo e não podia negar que estava assustado. Evitando olhar para ela, saiu do banheiro, apagou a luz e fechou a porta, indo depressa para o próprio quarto.

Porém não surtiu efeito algum, porque a primeira coisa que notou no pequeno cômodo era a mulher magra sentada em sua cama.

Você ainda não me explicou o que foi aquilo com a querida Helena.

André não respondeu. Procurou as roupas velhas que costumava usar para dormir e tentou vestir-se evitando expor-se à visitante. Estava muito nervoso por não fazer ideia de como mandá-la embora.

Fique quieta! Você não disse quem é, não explicou o que porra está fazendo aqui e está me incomodando!

André?

Ops, acho que sua mãe te ouviu.

André respondeu para a mãe que estava jogando e já ia dormir. Sentou ao lado da criatura, infeliz.

Eu tenho vários nomes, André. Pode me chamar de Leiden, ou como quiser. E, como já disse, você me quis aqui. De certa forma, eu pertenço a você.

Ele produziu um som exclamativo que denotava certo sarcasmo. Podia perceber que “Leiden” estava agitada, esperando que ele anunciasse suas conclusões sobre a natureza dela. André a ignorou e passou a observar a vista urbana além de sua janela.

A Helena queria fazer natação no Centro Esportivo da faculdade. Só que ela estava insegura, porque ela tem aquelas... marcas de queimadura por todo o corpo, sabe?

18 de fevereiro de 2009.

– Isso é verdade? – André falou, surpreso, para a moça sentada ao lado dele em uma mesa pequena, ocupada por folhas de fichário espalhadas e um notebook. Ela franziu as sobrancelhas. Tinha um rosto delicado e doce e a pele morena. Os cabelos castanhos e longos estavam presos com uma caneta parecendo um penteado oriental. Era quase da mesma altura que André apesar de ser dois anos mais velha e, assim como ele, usava óculos para miopia. O rapaz estava sem camisa por causa do calor que fazia naquele dia. Em geral, André teria muita vergonha de exibir seu físico de gamer, mas as altas temperaturas haviam ganho da timidez do jovem, até porque Helena havia insistido para que não ficasse desconfortável por causa dela. Então ela disse que gostaria de fazer aulas de natação e ele respondeu que seria uma ótima ideia, ao que Helena voltou atrás logo em seguida, o questionando se nunca havia estranhado o fato dela sempre vestir roupas de manga comprida e sem nenhum decote. André respondeu que “não” e ela comentou que tinha algumas marcas de um acidente, causando o espanto do amigo.

Helena afastou sua cadeira e levantou. Ele sabia que a amiga era demasiadamente dramática muitas vezes, mas estava acostumado com esse traço da personalidade dela e sabia que tendo sido criada por uma avó muito religiosa, era difícil não ser desse jeito. Sem hesitar, Helena despiu a camiseta branca que vestia e abriu os braços, para que André não tivesse dúvidas do que a moça havia dito.

Era possível refazer o caminho da água fervente que havia atingido Helena algum dia. As cicatrizes rosadas começavam no colo e esparramavam-se pelo peito da moça. Tinham muitas outras manchas nos braços e ao longo do ventre. Havia uma que devia prolongar-se até a virilha. André não sabia o que dizer, eram bastante feias as marcas de pele deformada, mas não eram terríveis o suficiente para Helena precisar esconder tanto.

– Helena, eu... – André murmurou, também se levantando. Ela cruzou os braços e apenas o observou, porque certamente não esperava que André dissesse “eu sinto muito” – Gosto muito de você.

O rapaz a abraçou com todo carinho que era capaz.

É, bem pior que ser gordo. – Leiden comentou, indiferente.

Cala a boca.

A mulher piscou para ele.

Você nem é tão feio assim, André. Não devia perder tempo com essa horrorosa que não quer saber de você.

André tampou os ouvidos, mas Leiden falava de dentro da cabeça dele e não era capaz de se calar. Agora ela estava bem perto de novo e ele percebeu que ela cheirava a cigarros.

Aposto que o que você mais queria era dar pro João.

As palavras dela pouco a pouco começaram a se transformar em uma visão de algo que nunca havia acontecido. André sentiu a mão fria de Leiden apertando com força a parte interna de sua coxa.

Conta para mim... – ela murmurou, mas sua voz era outra, conhecida de longa data e profundamente odiada.

Argh! – André empurrou a criatura para longe de si. Leiden estava rindo descontroladamente. Muito irritado, o rapaz vestiu a calça jeans e um casaco por cima do pijama, pegou a carteira e as chaves e saiu.

Filho, onde você vai? O que houve? – Eulália perguntou, quando viu o rapaz atravessar a sala mal disfarçando sua ira.

Vou dar uma volta. Tchau.


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