Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 14
Pandora's-box




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Ele tinha as mãos repousadas na cama, ao lado do corpo, sobre a manta de retalhos que o cobria até a cintura. Em ambos os braços, bandagens cobriam o local de inserção de vários tubos vermelhos e incolores, ligados a uma única máquina branca e robusta, encostada à parede do quarto. O pijama hospitalar estava entreaberto e deixava seu peito à mostra, muito mais magro do que eu recordava. Dolorosamente magro. A cor de sua pele se aproximava da fábrica verde esbranquiçada que o cobria. Da base de seu pescoço, acoplado a uma placa azulada, saía um tubo incolor que se conectava a um cilindro no qual um diafragma se expandia e contraía. Seus lábios estavam ressecados; suas bochechas, profundas, e seus olhos também - naquela face lívida, eram a única parte escura. E não se abriram em momento algum. Seu cabelo era tão escuro quanto o meu e crescera desordenadamente. Em algumas partes, simplesmente não crescera.

Ele não se movia. Eu não me movia. Não conseguia adentrar aquele quarto. Quase não conseguia admitir que aquele era ele.

Matsueda apareceu à minha frente, somente um vulto escuro, porque a visão de Shinya me engolira. “Você veio” ele disse, sua voz parecendo se recusar a sair de sua boca. Tentei dizer alguma coisa. Dizer que sim, viera. Ou perguntar algo estúpido, perguntar como ele estava. Não consegui emitir um som. Matsueda deu um passo para o lado, como se me dissesse para entrar. Os primeiros passos foram difíceis, como se algo segurasse meus pés, mas, antes que percebesse, estava ao lado dele. Onde eu teria estado desde o início, se ele me houvesse permitido. Onde eu deveria ter estado desde que Matsueda me procurara.

Seu nome ficou preso em minha língua. Eu estava usando o que me restava de bom senso para me impedir de tocá-lo. Algo me dizia que um ex-namorado de três, quatro anos atrás não possuía o direito de aparecer no seu leito de morte e tomar intimidades enquanto você dorme.

Mas eu só precisava saber que ele era real. Que eu não estava ainda naquele pub com Miwazaki, bebendo cerveja ruim, conjurando possibilidades enquanto ele me relatava qualquer coisa. Precisava sentir sua pele sob meus dedos, fazer seus olhos se abrirem.

Então algo me atingiu. Talvez ele não me sentisse. Talvez não me visse. Talvez sequer me escutasse. Como descrevera nos diários. Não haveria como perceber minha presença. Mesmo comigo e com Matsueda ali, ele morreria sozinho. Morreria sem ouvir-me chamá-lo de estúpido por não me ter deixado escolher estar ou não ali. Sem ouvir-me chamá-lo de imbecil por não ter confiado em mim. Sem ouvir minhas súplicas por perdão.

Seus olhos não se moviam sob as pálpebras arroxeadas. As pontas de seus dedos estavam frias, em contraste com sua palma. Apertei-a com mais força do que gostaria, mas não faria diferença, ele provavelmente me xingaria da mesma forma. Não houve reação. Ele não me sentia. Ou... ou

Ele está sedado?

Minha voz finalmente saíra. Um impulso, um desespero por uma ponta de esperança. Pela primeira vez, encontrei o rosto de Matsueda. Fantasmagórico. Emagrecera, tinha os cabelos e o terno em desalinho e seus olhos haviam afundado em círculos negros. Ele separou os lábios para me responder, sem deixar de observar Shinya, mas desistiu antes de dizer qualquer coisa. Não precisava, eu sabia a resposta.

Apertei mais sua mão. Era estúpido, mas achei que talvez fizesse diferença. Esperei suas pálpebras moverem-se a qualquer instante. Seu peito expandir-se, destacando ainda mais os ossos sob a pele, e então seus olhos se abririam. Esqueci que uma máquina respirava por ele.

“É tarde”, ouvi. Matsueda estava do outro lado da cama, apertava o tornozelo dele por cima da manta. Ele silenciou por um instante e seu olhar encontrou o meu. Eu não quis compreender o que aquele silêncio e aquele olhar significavam. Não. Talvez fosse minha imaginação. Por que Miwazaki não chamava minha atenção, por que ainda não colocara o pé entre minhas pernas para me acordar, para pedir que o fodesse no banheiro? Não.

“Já há dois dias”, ele disse, baixando novamente a cabeça. Minha mão encontrou a testa de Shinya e afastou o que deveria ser sua franja para longe de seus olhos. Meu rosto estava úmido e eu não conseguia fazer o ar atravessar minha garganta. Morte encefálica, ouvi, sua voz cavernosa quase desaparecendo nas últimas sílabas, e ele respirou profundamente, tomando forças para continuar a falar. “Ainda não tive coragem de deixar que desliguem o suporte.”

Toquei sua testa com os lábios, tão trêmulos quanto os dedos que usei para acariciar seu rosto. Então era isso. Eu havia vindo mais tarde do que pudera imaginar, e somente a negação de Matsueda me salvara de encontrar uma cama vazia. Ele estava morto, e, ainda assim, eu não conseguia soltar sua mão.

Retornar ao meu buraco me era uma idéia demasiado... vulgar. Eu não queria adentrar aquele apartamento escuro, encontrar caminho por entre a bagunça e simplesmente sentar no sofá. Cerveja e pizza congelada. Não. Eu queria estar em qualquer lugar, menos ali. Guardei as chaves em meu bolso e dei meia volta para descer as escadas. Miwazaki teve a decência de não me perguntar nada quando comprei cigarros na loja de conveniências e saí para o lado contrário do apartamento.

Eu ainda sentia a mão de Shinya apertada dentro da minha, ainda via suas pálpebras cerradas, imóveis, e, a cada novo cigarro, precisava lembrar-me de que sua vida somente era mantida pelas máquinas de suporte. De que calor que sentira contra minha pele se perderia quando Matsueda conseguisse a coragem necessária para desistir. A cada novo cigarro, precisava encarar minha covardia e a culpa que ela me causava e precisava tentar me convencer que elas não me seriam tão pesadas quanto ter de carregar a memória de sua morte definitiva. Eu teria ficado ao lado de sua cama, apertando-lhe a mão, até que seu corpo esfriasse e enrijecesse, e, somente então, eu estaria livre de qualquer réstia de esperança que ainda insistisse em me habitar.

Outro cigarro. O mesmo fio de pensamentos. O calor em minhas mãos, as pálpebras cerradas. O respirador, a negação de Matsueda. A covardia, a culpa, o corpo frio e rígido a caminho do crematório.

Um novo cigarro. As pontas geladas dos dedos, a palma quente, a circulação extracorpórea, a culpa, as cinzas. Um novo cigarro. A testa úmida de meu choro, a hemodiálise, a covardia, a caixa de Pandora.

Outro cigarro.

E meus pés me levavam, deixando, vez ou outra, uma ponta incandescente para trás na calçada, sem se importarem de pisar-lhes para apagar a faísca iniciadora de um hipotético incêndio. Deixei-me levar. A iluminação precária e as ruas quietas acusavam o bairro como residencial, e a hora como tarde; e eu não pensava em parar de andar antes de estar completa e absolutamente exausto. Pararia em qualquer canto, mas apenas quando estivesse certo de que o cansaço me venceria tão logo me encostasse em qualquer coisa, sem que houvesse tempo para pensamentos atormentarem meu sono.

Quando parei, não fora fadiga o motivo, mas outro. À minha frente, espremida entre dois edifícios, erguia-se uma casa, cuja tintura branca das paredes agora se fazia negra em várias partes e, em outras, mostrava-se coberta de plantas trepadeiras, únicas sobreviventes do que eu lembrava ter sido um jardim bem cuidado e, agora, era somente um faixa de terra morta entre a porta e o baixo muro. Eu havia parado de pagar a limpeza da casa havia pouco mais de dois anos.

Com o cigarro entre os dedos, empurrei o portãozinho de ferro e arrisquei alguns passos em direção à porta. A sequência de pensamentos desaparecera, e minha mente se tornara névoa, consciência e corpo se separaram. Não havia motivo pelo qual eu devesse me aproximar, nem motivo pelo qual devesse tomar a ação contraria. Entretanto, enquanto meu corpo ansiava pelo contato com aquele antigo abrigo, meu instinto o temia e tentava impedir meus pés de empurrarem o chão.

As pontas de meus dedos tocaram a madeira e escorregaram pelo portal até que toda minha mão a contactasse. Naquele instante, a ânsia física, momentaneamente satisfeita, sublevara-se e silenciara qualquer outro ímpeto que a contrariasse. Contudo, o êxtase incitado pela supremacia sensorial dissolveu-se sob o toque gélido da maçaneta.

A verdade era, havia, sim, razões pelas quais seria melhor ter continuado a andar. O metal frio trouxera em forma de fantasmas velhas memórias que eu tinha como perdidas, projeções imperfeitas e intangíveis do que se dera naquele batente e atrás daquela porta. Naquele instante, qualquer coisa que sussurrasse em meu interior para tentar adentrar a construção foi ignorada e eu me afastei alguns passos, mas algo ainda me prendia àquela soleira. Arrisco dizer que era culpa. Ou o desejo de fazer a maçaneta girar e despertar alguns anos antes, abrir os olhos e encontrá-lo a sorrir para mim, perguntando-me se sei que dia é.

Algo ardeu entre meus dedos e deixei o que restava do cigarro cair.

Observei a fachada da casa enquanto punha meus pensamentos no lugar. A sensação de ter a pele de Shinya contra a minha começava a sumir. Baixei os olhos e encarei minha palma vazia. Covarde, ela me encarava de volta e dizia. Olhei outra vez para a casa, e ela me sussurrou algo novo, mas antigo. Tentei engolir o aperto que seu murmúrio me causou na garganta e baixei a cabeça. Meus pés sentiram que eu não os faria ir a qualquer lugar, então decidiram carregar-me por conta própria.

Acendi um novo cigarro. Não importava aonde eu ia.

Estávamos no pub outra vez. Havíamos saído porque Miwazaki queria algumas doses de tequila e me chupar em algum lugar público. Eu estava na mesa tentando comer o hamburguer oleoso que havia pedido enquanto ele se embebedava no bar e se insinuava para qualquer um que se aproximasse. Provavelmente esquecera de mim e acabaria fodendo outro no banheiro.

Terminei minha cerveja, disse ao barman que me colocasse na conta de Miwazaki e voltei para casa. Meus cigarros estavam acabando, precisava lembrar de ir a loja quando ele estivesse lá.

À minha porta, encontrei um vulto que já não esperava mais encontrar. A aparência de Matsueda melhorara, mas algo no modo como se portava retomava seu estado em nosso último encontro. Ele tentou sorrir e disse que estivera me esperando havia algum tempo. Acenei com a cabeça enquanto abria a porta e entrei primeiro para ligar a luz e abrir caminho pela bagunça. Convidei-o logo em seguida e ofereci algo para beber. Ele recusou e o silêncio caiu.

A presença dele e o assunto que o acompanhava me deixavam inquieto.

Havia algo que eu queria perguntar, mas não parecia existir modo de fazê-lo.

Ele engoliu em seco, movimentou a pasta que tinha nas mãos e começou a falar.

"Dois dias depois de você ter ido embora, eu dei a ordem de desligarem as máquinas de suporte à vida. Levando em consideração a última coisa que você me disse, não insisti em telefonar-lhe quando..", ele pausou e mordeu o lábio inferior como se a escolha de palavras o machucasse, "tomei a decisão." Aqui ele silenciou outra vez, abriu a pasta que segurava e retirou dela um papel. Precisou se concentrar para retomar a fala. "Só tive coragem de abrir seu testamento dois meses depois disso - um mês atrás."

Não. Não. Não.

"Saiba, por favor, que este era um dos pouquíssimos assuntos dos quais Shinya se recusava a tratar comigo. O que diz aqui...", ele me olhou rapidamente, "Era o que ele queria." e estendeu-me o papel.

Hesitei. Eu não queria ver o que havia escrito ali.

Engoli em seco.

"É endereçado a mim?"

"Não."

"Eu não me importo se você ler."

Matsueda me encarou como se eu houvesse dito alguma loucura, mas terminou por recolher o braço estendido e correu os olhos pelo documento até encontrar o parágrafo que me dizia respeito, respirou como se fosse falar, mas não o fez. Olhou-me outra vez, estudando-me mais profundamente e suspirou, baixando a cabeça.

"A casa," disse, "ele a deixou para você."

Eu o encarei. Respirei fundo, sentindo outra vez o amargor em minha boca. O sussurro da casa ecoando em meus ouvidos.

“Não a quero.”

Ele levantou a cabeça. Sua incredulidade era visível. “Mas ela é sua.

Minha garganta queria apertar outra vez, mas não deixei acontecer.

“Pois eu a dou a você. Devo ser capaz de fazer isso, não? Ele deixou todo o resto para você de qualquer forma, deve haver um jeito de você ficar com a casa também.”

Ele precisou de um tempo para compreender que Shinya provavelmente anotara seus planos nos diários que eu ainda possuía. Não precisou de muito mais para compreender que não havia modo de me convencer.

Shinya saíra de minha vida da mesma forma que entrara – repentinamente –, e assim também se dera o curto epílogo de nosso encontro. A natureza dos dias que passei em sua presença destoava completamente da dos que tive em sua ausência, e esse abismo entre eles somente acentuava a sensação onírica que tinha ao retomar sua memória, a impressão de ter sido vítima das divagações de minha própria mente. Eu não precisava de uma casa assombrada para me puxar o pé à noite.

Matsueda suspirou, guardou o testamento na pasta negra, lançou-me um último olhar e saiu com uma despedida fraca. Eu nunca mais o veria.

Sentei-me no sofá e liguei o televisor, o que acabara de acontecer já começando a escorregar de minha mente.

Entretanto, o sussurro daquelas paredes que um dia haviam sido brancas ainda ecoava em minha cabeça.

Meu lugar era com homens como Miwazaki, num apartamento escuro, caoticamente ordenado, unido a outro ser humano por não muito mais do que álcool e sexo. Shinya fora uma anomalia em minha história, um caso ímpar e extraordinário cujos desdobramentos pouco alteraram meu curso – eu estaria exatamente aqui, houvéssemos nos encontrado pela segunda vez no parque ou não. Eu estava exatamente aonde pertencia.


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Notas finais do capítulo

Nanana, depois de quatro anos, enfim. Obrigada a quem chegou até aqui :3