Uma Despedida escrita por gataportuguesa


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Bem, esse texto não tem o objetivo de receber reviews ou de comover ninguém. Ele foi feito exclusivamente para ser a minha última homenagem ao meu grande amigo que se foi. E se alguém se aventurar a ler, talvez descubra algumas coisas sobre a verdadeira gataportuguesa...



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            O despertador toca às 5h20 min. Numa manhã de sábado eu jamais acordaria nesse horário, mas esse sábado não era comum. Nesse sábado eu enterraria alguém que esteve presente no melhor ano da minha vida e numa das melhores férias que vivi. Nesse sábado eu enterraria o meu “ex - quase cunhado”

            O despertador tocou, contudo não me acordou. Não é possível acordar quem passou a noite em claro se revirando na cama e se perguntando porquê Deus levaria alguém tão jovem, tão cheio de vida e de alegria.

            Ao pensar nele a imagem de um garoto marrento, mas extremamente carinhoso, engraçado e prestativo aparece instantaneamente.

            Preciso me levantar e pegar a estrada. Sento no ônibus e olho para o lado. Ali está alguém que sofre uma dor imensa. Ali está alguém que pela segunda vez perde um porto-seguro, alguém que pela segunda vez perde um ser amado por causa de um acidente de moto.

            Tento mensurar a dor que ela está sentindo por ter que passar novamente por toda a dor de perder alguém, porém nem chego perto de conseguir medir o tamanho. É aí que descubro que não podemos medir os sentimentos das pessoas, que cada um sente e sofre de uma maneira diferente e que por mais que eu seja especial e tenha uma sensibilidade bastante aguçada, nem sempre posso obter todas as respostas que procuro.

            Abatida, olho pela janela e vejo o dia nublado que vai nascendo. Alguém lá em cima decretara que o sol não apareceria e vi isso como uma última homenagem que a vida fez ao meu amigo.

            Durante o trajeto de um pouco mais de uma hora e meia, me pego pensando se deveria puxar assunto com a garota que está ao meu lado totalmente absorta em seus pensamentos. Para todos os efeitos, apesar deles estarem separados há dois anos, ela é praticamente a viúva do rapaz, e me pergunto se ela também se considera nesse “posto”.

            Prefiro deixá-la com a sua dor e desisto de puxar uma conversa. Alguns pingos começam a cair e não consigo deixar de pensar que lá em cima alguém está chorando e tentando adivinhar se é de felicidade ou de tristeza, fico novamente perdida em meus devaneios e quase nem percebo que chegou o nosso ponto.

            Ela sai primeiro e eu a sigo. Uma de nossas amigas veio junto com o primo dele nos buscar para levar até a capela. Olho a maneira como as duas se abraçam e sinto meu coração partir ao ver o sofrimento estampado em suas faces. Entramos no carro e minha gastrite começa a dar sinais de que quer aparecer. Tentando esquecer a queimação que se inicia, me esforço para conseguir me concentrar no caminho que percorremos.

            No carro se forma um silêncio sagrado, que não é quebrado por ninguém. Após alguns minutos que felizmente passaram de maneira rápida, o carro é desligado. Do outro lado da rua vejo alguns amigos queridos que não encontrava há muito tempo e não posso deixar de constatar que o tempo passa e as pessoas vão crescendo e mudando. Há alguns anos nos víamos todos os sábados e ficávamos perambulando pelas ruas da cidade durante a madrugada e agora somente uma morte para nos reunir novamente.

            Depois de cumprimentá-los e notar que todos ainda consideravam esse acidente como algo estúpido e inacreditável, entrei na capela onde o corpo dele era velado. Na minha frente estava minha melhor amiga que ao ver a ex-sogra sentada num banco, em prantos, ajoelhou-se diante dela e chorou como até então não chorara pelo falecimento dele.

            Fiquei ali imóvel, vendo as duas mulheres que ele mais amara na vida chorando copiosamente e sem perceber, acabei me virando para o caixão. Lá estava o seu pequeno corpo de 1,67cm todo coberto por flores amarelas. Apenas o seu rosto, bastante machucado, estava visível.

            Olhei para os vários hematomas e me detive em sua boca. Tinha algo errado com ela e então passei a analisar com atenção. Foi com grande tristeza que percebi que ele perdera praticamente todos os dentes da frente durante o atropelamento.

            Senti duas mãos pousarem em meus ombros e nem precisei me virar para saber quem fazia aquele gesto de carinho. Tentei refazer o acidente em minha mente e pela primeira vez desde que recebera a notícia, fraquejei.

            O amigo que me consolava então me virou e me abraçou com força. Com o rosto colado em seu peito, vi a moto derrapando e os dois jovens caindo na pista. Vi o motorista do ônibus arregalar os olhos em sinal de pavor e, sem conseguir desviar,  passar por cima dos dois. E vi ali, jogado no asfalto, o corpo de um fuzileiro naval de 21 anos, vi o corpo do meu “ex- quase cunhado”...

            Meu amigo me tirou de dentro da capela e então lembrei de olhar para a minha melhor amiga que ainda chorava aos pés da ex-sogra.

            Uma amiga em comum a tirou de lá, para não piorar o estado da mãe do rapaz e ficou conversando com ela.

            Tento me lembrar de mais detalhes, mas tudo aparece como pequenos flashes na minha memória.

            Lembro de uma van cinza chegar trazendo um grupo de fuzileiros navais. Do capitão do meu amigo tirar uma medalha do seu peito e depositar no peito sem vida dele. Lembro do padre começar a encomendar o corpo e do jeito que a mãe dele gritava quando fecharam o caixão. De como a bandeira do Brasil estava bonita em cima daquele caixão. Lembro da minha melhor amiga sair da capela e olhar ao redor a minha procura. Dela me ver ali e ir ao meu encontro, me abraçando com força e molhando todo o meu casaco com as suas lágrimas. Como eu precisava daquele abraço! Como ela precisava daquele abraço! Não importa a quantidade de pessoas que nos abracem, sempre vai ter aquele abraço especial, que somente uma pessoa pode dar. E somente eu poderia lhe dar aquele abraço, assim como somente ela poderia me dar aquele abraço.

- Quando eu precisasse de qualquer coisa, tinha vocês dois pra me ajudar e sei que largariam tudo para vir ao meu encontro. Agora só tenho você, Lu... Por que Deus me tira as pessoas que eu mais amo?

Me perguntei o motivo dela precisar sofrer tanto. Primeiro perder a mãe que ela tanto idolatrava num estúpido acidente de moto no dia do Reveillon e agora perder uma das duas pessoas que a ajudaram a conseguir viver com essa dor por causa de um também estúpido acidente de moto.

E foi durante esse momento mágico, em que dividíamos o mesmo abraço, a mesma angústia e a mesma pergunta, que derramei, pela primeira vez desde que soubera da morte dele, duas pequenas lágrimas... E foi também durante esse momento que jurei pra mim mesma que sempre faria o possível para continuar viva. Que eu não morreria de uma maneira estúpida ou por ser cabeça dura. Eu lutaria pela minha vida para não vê-la perder novamente um ser amado. Eu não lhe causaria essa dor!

            Logo depois o caixão entrou no carro da funerária e pela primeira vez na vida vi um cortejo tão grande. Então tive a noção de quanto o meu amigo era querido. Estávamos a vários quilômetros de distância da cidade onde morávamos e mesmo assim várias pessoas apareceram para dizerem adeus. Nesse momento não consigo deixar de pensar se no meu velório também ocorreria o mesmo. Balanço a cabeça tentando acabar com esse pensamento. Não quero mais pensar em mortes, quero apenas poder sentir a minha dor em paz.

            O percurso é longo e o carro está cheio. Sento-me no colo da minha melhor amiga que já não chora. Não sei se sinto alívio por ela não derramar lágrimas ou se fico preocupada por ela não fazer isso.

            Os fuzileiros navais pegam o caixão. Vão três rapazes em cada lado. Um grande grupo de pessoas acompanha tudo com olhares que demonstram espanto. Ninguém consegue acreditar que aquilo realmente está acontecendo.

            Eles depositam o caixão em cima de uma lápide e então a mãe dele abraça aquela caixa de madeira tão bem trabalhada e bonita. Não consigo deixar de pensar que isso jamais ocorreria comigo. Minha mãe jamais agarraria o caixão tentando me trazer de volta para a vida e de volta para o lado dela. Isso jamais ocorreria porque eu sempre quis ser cremada. Então penso que talvez ela não solte a urna com as minhas cinzas até o momento delas serem jogadas do alto da Pedro do Arpoador. O padre profere as últimas palavras e volto a prestar atenção em minha volta.

            Está na hora... Mas a mãe dele não permite que a separem do caixão. Aquela cena me emociona a tal ponto que acabo por ter uma crise de choro. Ao começar a me recuperar, percebo que a maior parte dos presentes também chora bastante.

            Ouço o primo dele gritar:

            - Te amo, primo! Te amo pra sempre!

            Vejo ele sair de perto em prantos. A tia dele, e mãe desse primo, começa a passar mal e é socorrida por pessoas perto dela que a seguram quando a senhora desmaia e a levam as pressas para o hospital.

            Olho novamente para o caixão e a mãe dele ainda está lá, acariciando a madeira e falando palavras de amor para o filho morto. O marido, com muito custo, consegue tirá-la de lá e então o caixão é guardado.

            As pessoas começam a se retirar e minha melhor amiga, que durante todo esse tempo estivera na minha frente, vai até a lápide, se ajoelha e começa a chorar.

            Apesar do momento triste, não consigo deixar de sentir um orgulho gigantesco por ela. Sei como foi difícil permanecer quieta e deixar que apenas a mãe pudesse tocar o caixão pela última vez. E admiro o gesto dela de esperar que a mãe se retirasse para só então prestar a sua última homenagem.

            Da sua boca consigo ver que apenas uma palavra é dita repetidamente:

            - Obrigada!

            Percebo como ela amadureceu nos últimos anos e meu peito de enche de alegria. Ela agradecia por tudo o que ele fizera. Por todas as vezes que a consolara, por todas as vezes que a fizera rir com as suas caretas ou com as suas piadas. Ela apenas agradecia por ele ter entrado em sua vida. Nessa hora vi que minha melhor amiga finalmente se tornara uma mulher...

            Meus amigos e eu fazemos uma roda ao redor dela e da lápide e começamos a rezar. E então, como um aviso de que a morte não o tirou de nós, cantamos a única canção que poderíamos cantar:

               - Amigos para sempre é o que nós iremos ser, na primavera ou em qualquer das estações, nas horas tristes, nos momentos de prazer, amigos para sempre...


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Notas finais do capítulo

Homenagem à Diogo Fonseca Muniz de 21 anos, morto numa acidente de trânsito às 6h15min do dia 26/05/08 na Ponte Rio-Niterói
Não revisei o texto porque me remete à lembranças dolorosas... Qualquer erro é só me avisar que arrumo...