Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 148
sete vidas epílogo vida 5 capítulo 17




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SANTA MONICA

Sam estava deitado no confortável sofá da sala do apartamento de Necker, mas não conseguia relaxar. Desde que voltara para Los Angeles, perguntava-se o tempo todo se não tinha se desviado por tempo demais do que devia ser sua única prioridade: salvar o irmão, ou, pelo menos, sua alma.

Sabia que vender a própria alma não era a solução. Precisava romper aquele padrão ou ele e o irmão continuariam andando em círculos. Tinha que haver outra maneira de tirar Adam do Inferno.

Ruby. Não queria procurá-la, mas não enxergava outra saída. Quanto mais pensava no assunto, mais lhe parecia que Ruby era sua única alternativa. Sabia que Bobby não aprovaria, mas não deixaria que ninguém se pusesse entre ele e seu objetivo.

Mas, antes tinha que desvendar os mistérios que envolviam Necker. Descobrir suas verdadeiras intenções. Bobby estava certo. Se Necker fosse uma ameaça, não importava o que ele tivesse feito de bom. Teria que matá-lo. Mas não era só isso. Necker estava muito mais envolvido naquela história do que tentava fazer parecer.

Sam se levanta e pega de volta a faca de Ruby, que tinha guardado no local onde primeiro a encontrara. Olha pensativo para a faca e da faca para o corredor que levava ao quarto onde Necker dormia. Não tivera tempo de perguntar a Necker sobre a faca e todas as implicações que ela trazia. Pretendera questionar o merman no mesmo dia em que a encontrara, mas acabara aceitando o convite para passarem o domingo em Beverly Hills. Lá as coisas se precipitaram e, por um tempo, acreditou piamente que Necker estava morto. Ele agora estava de volta, mas ainda muito fraco e o maldito sentimento de culpa não permitira que fizesse o que precisava desesperadamente fazer. Pôr tudo em pratos limpos. Fechar aquela história e se concentrar na libertação de Adam.

A presença da faca de Ruby no apartamento de Necker desmontava a hipótese de um encontro casual na lanchonete. Deixava claro que Necker sempre soubera quem ele era. Significava que Necker estivera mentindo para ele desde o começo.

Não tivera tempo. A verdade é que tivera sim a chance de esclarecer tudo assim que se libertara do comando hipnótico, mas hesitara em trazer o assunto à tona. E sabia que hesitara porque, no fundo, não queria matar Necker. Não queria, mas isso não significava que não o faria.

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Foi tirado de seus pensamentos pelo que pareciam gemidos de dor vindos de trás da porta fechada do quarto principal.

– Ei, o que pensa que está fazendo? Você ainda não está em condições de se levantar da cama.

– Preciso .. aaai .. ir ao banheiro.

– Bem, ok. Apóie-se em mim. Eu te levo até lá.

– Olha, não quero .. aah! .. deixá-lo .. cons .. trangido. Eu estou nu e .. como você mesmo disse .. sou .. um .. aaai .. estranho.

– Esquece o que eu disse antes. Essa sua cara não é a de um estranho. E todo o resto também parece bem familiar. Portanto, é como se eu estivesse olhando para mim mesmo. Mas, mais importante que tudo, é que você me salvou e está aí todo ferrado. Portanto, dane-se o constrangimento.

– Vou .. aai .. tentar .. não ficar excitado .. quando .. aaai .. você der ahh .. balançadiii .. nha.

– Nem vem. Não vai rolar. Seu ferimento é no peito. Isso, você pode fazer muito bem isso sozinho.

– Não pode .. me condenar .. por tentar.

– Posso. Mais ainda. Posso MATAR você se tentar se engraçar comigo. Se eu fosse você, não me arriscaria. Deu muita sorte de ter escapado dessa.

– Pára, dói quando eu tento rir.

– Quem disse que eu estou brincando?

– Certo, sem .. brincadeiras. Escuta, .. preciso me reidratar. Preciso ficar submerso por algumas horas. Pode ..a! .. encher a banheira? Tem sal grosso.. na cozinha. Vai ajudar na minha .. recuperação.

– Tudo bem. Te ajudo a entrar na banheira de hidromassagem, abro a torneira e vou pegar o sal. Vem. Isso. A outra perna agora. Apóia. Isso. Agora deita. Deita. Cuidado. Cuidaaado. Doeu? Bom. Pronto. Água quente?

– Não. Fria. Por favor.

– Pronto, já está começando a encher. Relaxa. Eu já vou pegar o sal. Mas antes posso perguntar uma coisa? Porque continua com a minha aparência?

– Não estou forte o suficiente .. para uma trans .. formação. Vou precisar de mais alguns dias. Incomoda você?

– Não. Perguntei mais por curiosidade. Está com fome?

– Muita. Não comi nada desde aquele dia. Não podia.

– Quer que eu prepare o quê?

– Peixe. Cru. Corte em cubos e bata no liquidificador. Nenhum tempero.

Sam volta a tempo de evitar que a banheira transborde. Derrama um pacote inteiro de sal grosso iodado na banheira e liga a hidromassagem. Entrega um bowl com a pasta de peixe para o merman, que vai engolindo aos poucos, fazendo caretas de dor.

– Mais?

– Mais tarde.

– Necker! Por quê?

– Porque o quê?

– Aquilo em Rodeo Drive. Chamar a atenção dos demônios para você.

– Eu não sabia .. que ia acabar daquela maneira. Não tinha .. nenhuma intenção de morrer por você, acredite.

– Mas, se arriscou muito.

– Eu pretendia .. aai .. despistá-los. Me misturar na multidão .. e mudar de forma. Chegar no mar. Quando eu vi .. fui arremessado de encontro .. àquele mastro de bandeira. Por sorte, .. o mastro era de aço.

– Como assim? O quis dizer com isso?

– Nada! Esquece.

Necker, que estava só com o rosto fora d’água, desliza e se acomoda no fundo da banheira de hidromassagem. A sensação era boa. A água, mesmo que artificialmente salgada e oxigenada, criava um ambiente relaxante. Mas Necker não estava relaxado. Não era capaz de ler pensamentos, mas sabia ler emoções. Percebeu que Samuel entrara no modo caçador. E isso não era bom.

Necker se xinga mais uma vez pelo descuido. Onde estava com a cabeça? Não podia entregar de bandeja suas vulnerabilidades. Samuel era, antes de tudo, um caçador. Sempre alerta, sempre desconfiado. Tinha lhe dado o benefício da dúvida, mas Necker sabia que não podia se deixar iludir pela atitude amistosa do outro. Não era humano e sabia muito bem que Samuel reunia tudo que não era humano na categoria monstro. Não hesitaria em matá-lo se descobrisse suas verdadeiras intenções. Talvez, se contasse logo toda a verdade .. Não. Precisava fazer sua parte. Manter a farsa enquanto fosse possível. Só esperava que isso não custasse sua vida, como já quase acontecera.

Suspirou fundo. Há muito tempo não se sentia tão inseguro.

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Necker teria morrido se o mastro fosse de bronze ou de qualquer outra liga metálica de cobre. O cobre podia envenenar-lhe o sangue. Havia uma base científica para a crença popular de que somente uma arma de bronze molhada no sangue de um homem sob influência hipnótica de um nyx podia ser usada para matá-lo. Sob sugestão hipnótica, o cérebro humano liberava na corrente sanguínea uma substância que catalisava a ação tóxica do cobre sobre os glóbulos vermelhos do sangue dos nyxes. Uma adaga de bronze contaminada pela substância podia levar um nyx à morte em minutos.

Claro, havia outras formas de matá-lo, inclusive as mais óbvias. Podia morrer de fome ou de desidratação. Podia morrer queimado ou decapitado. Necker amaldiçoa o momento em deixara Zetes convencê-lo a procurar Samuel Winchester. Tenta mais uma vez esvaziar sua mente. Convencer-se que estava nervoso à toa. Que as coisas estavam sob controle. Sam não sabia que ele matara Ruby. Aparentemente, também não percebera sua ação deliberada de impedir que seguisse em busca de Adam. Quando descobrisse .. Não, não podia se entregar ao pânico. O melhor a fazer era ficar ali submerso o maior tempo possível. Precisava se recuperar rápido. Talvez precisasse lutar pela sua vida.

Necker passou mais de doze horas submerso. Nas duas últimas, observado atentamente por Sam, que trouxera uma cadeira para perto da banheira e aguardava, pacientemente, que Necker emergisse. Quando ele finalmente emergiu a cabeça, Sam lhe passou um segundo bowl com pasta de peixe.

– Como está se sentindo?

– Melhor. Obrigado, Sam.

– Sua secretaria está cheia de mensagens. Parece que você tem muitos amigos.

– Eu gosto de pessoas.

Sam não esperava aquela resposta. Olha bem no fundo dos olhos de Necker que sustenta o olhar inquisidor de Sam e dá um sorriso amistoso. Sam finalmente se rende e também dá, ele também, um pequeno sorriso. Naquele momento, Sam sente seu coração um pouco mais leve. Voltara a ter a esperança de não precisar matar Necker, afinal.

– Aquele homem que trouxe você .. É um destes amigos?

– Na verdade, não. Não somos amigos. Muito pelo contrário. Mas ele sabia que eu me recuperaria se ficasse submerso no mar por tempo suficiente. Ele já viu acontecer antes.

– Já tinha acontecido de você ter sido empalado? Há quanto tempo? Ele estava lá?

– Faz muito tempo. Quase .. duzentos anos. Ele estava lá. Foi ele quem me arremessou contra uma estaca .. uma estaca de madeira. Uma viga partida. Parte da estrutura de um celeiro destruído. Como agora, a estaca atravessou meu peito.

– Você, obviamente, sobreviveu. Mas, o que você fez para deixá-lo tão irritado?

– Nada. Ciúmes. Ciúmes de irmão.

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Necker deita a cabeça e se deixa levar pelas lembranças. Lembranças de quando era jovem. Dos seus primeiros anos no continente americano. Quando ele ainda não havia sido domesticado pelos homens. Sim, domesticado era a palavra. E não somente ele. Com o tempo, os próprios homens haviam se domesticado.

Mas, naqueles tempos, as regras eram outras. Os homens costumavam carregar armas e costumavam usar as armas que carregavam. Os homens não hesitavam em matar. Ele também não. Quando decidiu viver entre os homens, decidiu que viveria como um homem. Mais de um século depois, quando os homens passaram a usar as leis para resolver seus problemas, ele também mudou sua forma de resolver conflitos.

A maioria dos homens que matou foi em defesa própria. Apenas um ele matou e devorou. Mas era isso ou morrer de fome. Teria feito diferente se tivesse escolha. Não se sentia culpado.

Afastara-se de Aglaope porque se cansara de sua crueldade. Como ele, ela também não precisava matar humanos para sobreviver. Fazia porque queria, porque gostava. Gostava principalmente de fazê-los matar por ela, por seu amor. Ela adorava esses joguinhos. Ele fora seu cúmplice em inúmeras mortes. Na época, ele era ainda um garoto, estava apaixonado e era fascinado por ela. Mas ele acabou percebendo que aquilo tudo não passava de crueldade sem sentido e resolveu partir. Mergulhou no Mediterrâneo e, oito meses depois, pisou em solo americano pela primeira vez.

Ele veio sem nada. Nem mesmo a roupa do corpo ele trouxera. Mas, não demorou muito e ele se tornou um homem rico. Ou quase. E assim foi. Por muito tempo, ele não viu nada de errado em usar a voz para conseguir o que queria. Foi mais ou menos nesta época que assumiu a aparência que exibe até hoje. Na época, a grande maioria dos americanos era loura, de olhos azuis. Ele próprio era originalmente louro. Louro e atarracado. Tinha pouco mais que 1 m 65 cm. Mas, ele não queria ser mais um na multidão. Tornou-se um moreno de olhos verde-acastanhados de quase 1 m 80 cm e uma beleza exótica. Gostava de sobressair na multidão. Gostava de ser olhado e admirado. Quando a média de altura da população subiu, já no final do século XX, ele também aumentou sua altura. Para 1 m 95 cm.

Beleza e juventude abriam qualquer porta. Ainda mais ele sendo bissexual. Ele quase não precisava mais usar a voz. Ele podia ter em sua cama, as mulheres e os homens que quisesse. Com a voz, isso nunca foi problema. A voz podia lhe trazer até mesmo amor. O que a voz não podia lhe dar era uma amizade verdadeira.

Amigo é aquela pessoa que você não controla. Que diz sim e também diz não. Que pode até fazer o que você quer, mas às vezes obriga você a fazer o que ela quer, mesmo que você não queira. Um amigo é quem se dispõe a nos acompanhar pela vida toda. E isso é um problema quando não se envelhece no mesmo ritmo das outras pessoas.

É por isso que ele precisava tanto de Zetes. Zetes era adorável e irritante como um amigo de verdade tinha que ser. Quando o conheceu, desejou tê-lo ao seu lado para sempre. E até isso era possível, pois Zetes é imortal. Foram diversas vezes para a cama, mas não era isso que os unia. Sempre foram mais amigos do que amantes. Zetes era o irmão que ele sempre quis ter.

Mas existia um problema de difícil solução. Zetes já tinha um irmão. Um irmão de verdade. E eles eram inseparáveis. Necker passou a odiar Calaïs. E o teria matado, se um vento pudesse ser morto. Mas, se podia, ele não sabia como.

Necker nunca confessou a ninguém que agiu de forma premeditada para afastar os irmãos. Mas, a reação de Calaïs também o pegou de surpresa. Ao ter o corpo atravessado pela estaca de madeira, ele realmente acreditou que Calaïs pretendia matá-lo por ciúmes do irmão e usou isso para criar a desavença que manteve os irmãos separados por dois séculos.

Foi, por muito tempo, possessivo na relação com Zetes. Mas o tempo passou, o mundo mudou e ele mudou com o mundo. Foi aos poucos se tornando mais generoso. Começou a ser sentir culpado sempre que via Zetes triste por estar afastado do irmão. Ensaiou até mesmo incentivá-lo a se reaproximar do irmão. Zetes adotara a identidade de Chad Murray e se tornara ator. Pouco depois, seu irmão também se tornou ator, adotando o nome de Callum Blue. Necker percebeu ser essa uma nova tentativa de Calaïs para se reaproximar de Zetes. E, desta vez, ao contrário de todas as outras, não fez nada para impedir.

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Zetes era seu amigo e ele acabaria concordando fazer qualquer coisa que Zetes lhe pedisse. E foi um pedido de Zetes que o levou até ali. Foi um pedido de Zetes que o colocou cara a cara com Samuel Winchester.

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– Então, como eu suspeitava, ele também não é humano. Que tipo de criatura ele é?

– Um anemoi. Um vento.

– Vento? Como assim, VENTO?

– Um espírito do ar. Ele se condensa na forma humana, mas é feito .. de ar. O nome dele é Calaïs. É filho do vento frio que sopra no norte da Europa, Bóreas.

– E o que significa isto aqui?

Sam exibe para Necker a faca que mantivera escondida nas costas. A faca de Ruby.

– Pode me explicar como essa faca veio parar em suas mãos?

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Dessa vez, atender o pedido de Zetes poderia significar sua morte.


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Notas finais do capítulo

12.04.2012
Precisei revisar o parágrafo do capítulo 2 em que o Zetes fala do irmão para que ficasse coerente com o que foi contado aqui.