Eu sou... Scarlet Flawless escrita por lljj


Capítulo 1
Intro




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O lustre do salão de baile derramou um brilho acobreado sobre os casais rodopiantes. As notas do piano empregavam o tom elegante da dança, ritmada pela animação dos violinos. A agitação envolveu os convidados em abraços exigentes, impedindo-os de ver além da própria diversão. Ninguém prestou atenção quando me abriguei sob as sombras de uma coluna lateral e desabei contra a parede.

Eram duas horas da manhã e meu corpo implorava por descanso.

Meu vestido não passava de uma requintada prisão de tecido, tão apertado que as costuras tremeram quando respirei um pouco mais fundo. Os sapatos de salto, elogiados mais de uma vez ao longo da noite, estavam aptos para se tornar instrumentos de tortura. Suor se acumulou na minha nuca e costas, e o desconforto me trouxe o desejo insano de saltar para fora da minha pele.

Por um minuto de abençoada solidão, observei o bailar gracioso dos casais. Pessoas bonitas, compostas, nobres. Tão alheias a minha presença que duas duplas pararam a poucos metros de distância para recuperar o fôlego. As jovens ladies se ofereceram para pegar refrescos e saíram saltitando. Os cavalheiros afrouxaram a lapela do paletó; prova de como o calor do verão levou a melhor sobre a rígida etiqueta.

— Lady Avelin está um deslumbre essa noite — comentou o mais baixo. — Deixe-me dançar a próxima música com ela.

— Faça o que quiser — disse o outro, e a luz das tochas realçou o dourado dos seus cabelos enquanto ele olhava ao redor. — Viu para onde foi Scarlet?

Uma risada soou.

— Tire o cavalinho da chuva, meu amigo. Ela já deve estar nos braços de algum velho a essa hora. Não viu como lorde Sanders babou durante o recital? Ele pagaria uma fortuna para ter uma apresentação mais íntima.

— Eu também! Aquele corpo assombrará meus sonhos pelas próximas décadas. Quase cheguei ao ápice só de vê-la caminhar para o palco.

Outra risada, dessa vez, pingando malícia.

Os sussurros se tornaram incompreensíveis sob o barulho do salão, porém imaginei do que se tratavam. Scarlet Flawless era a nova sensação da Muralha Sina. A capital imperial e seus nobres residentes se renderam aos encantos dessa plebeia sortuda, que além de um rosto bonito tinha talento para a música. Eles queriam vê-la, ouvi-la, tocá-la. Estava fora das minhas capacidades entender tanto fascínio. Sempre considerei Scarlet uma dose hiperconcentrada aos sentidos. Bonita demais, talentosa demais, ousada demais. Uma mulher intimidante. Não era o tipo de pessoa com quem eu desejaria uma conexão prolongada.

O que era uma pena já que ela era eu...

As ladies retornaram com as bebidas e logo os casais voltaram para a pista de dança. O número de dançarinos diminuiu conforme as horas avançaram, mas ainda havia uma quantidade considerável enxameando o salão. Não era como se algum dos lordes e ladies precisasse acordar cedo ao amanhecer, e o anfitrião já era bem conhecido por seus bailes que varavam a madrugada.

Lorde Nicholas Lobov parecia o próprio rei ao circular entre seus convidados. Tinha uma taça de vinho na mão e uma expressão altiva no rosto. Era impressionante como ele conseguia andar tão elegantemente tendo que suportar o peso maciço de seu ego. Ao avançar pela lateral do salão, seu caminhar era rápido e discreto. Seu olhar fixo à frente dispensou qualquer um que tentou deter seus passos. Passou próximo a mim, tão perto que notei o franzir irritado de suas sobrancelhas, mas não me viu. Seguiu em direção ao portal do jardim interno. Ali, um homem de manto negro se escorava no batente. Lorde Lobov saiu e a figura sombria o acompanhou de perto.

O desconforto acumulado em meus ossos desapareceu. Cada miligrama de cansaço valeria a pena se eu tirar alguma informação relevante desse baile infindável. Nobres escapando da própria festa eram um bom sinal. Pelo menos, para mim.

Seguindo pelas sombras, deslizei com facilidade para o jardim. O brilho esmaecido da lua delineou vasos de plantas e canteiros de flores. Ninguém à vista, embora o som de vozes flutuar na brisa. Andei o mais silenciosamente que os malditos sapatos permitiram. Formulei três desculpas diferentes para estar ali caso necessário. Já me flagraram algumas vezes antes, mas ser a grande Scarlet Flawless tinha lá suas vantagens. No cenário aonde eu me encolheria amedrontada, Scarlet se erguia com um sorriso coquete e uma explicação condizente com sua fama de vagabunda. Ninguém se espantaria caso ela se encaminhasse para um encontro tórrido nos confins nebulosos do jardim.

Em vez de um amante disposto, encontrei lorde Lobov, o homem misterioso e uma conversa interessante às margens da fonte de carpas. Abriguei-me atrás de uma cerca viva e apurei os ouvidos. A entonação do lorde indicou que sua digna fachada de compostura estava a um passo de trincar.

— Ele não vai conseguir! — exclamou. — Um maldito soldado não tem poder contra mim.

— Meu lorde — disse o estranho —, devemos eliminá-lo antes que a suspeita aumente?

Lorde Lobov emitiu uma sequência de palavrões que faria uma mulher mais sensível ofegar. Eu não conhecia esse lado veemente de sua personalidade. Algo para acrescentar à sua ficha, logo abaixo de esbanjador, mulherengo e corrupto.

— Primeiro preciso descobrir que provas ele possui — declarou. — Quero ver esse documento.

— Podemos fazer as duas coisas, meu senhor — sugeriu o desconhecido. — Pegar os documentos e dar cabo de Erwin de uma só vez.

Uma centelha de alarme acendeu em meu peito. Um caso simples de associação de palavras: se me dissessem cor, pensaria em vermelho; se me dissessem muralha, pensaria em Sina; se me dissessem doce, pensaria em biscoitos; se me dissessem Erwin, pensaria em... nada, sentiria. Sentiria várias coisas.

— Existe um rumor que ele quer recrutar um grupo de criminosos da cidade subterrânea — continuou o estranho. — Podemos fazer um acordo com esses homens antes dele. São vermes do submundo que se voltam para a melhor proposta, meu lorde. É só oferecer uma boa recompensa em troca do documento e da vida de Erwin.

— Você espera que eu confie em bandidinhos do subterrâneo? — indagou o nobre.

— Podemos pedir fidelidade em troca de liberdade — argumentou o outro. — Se balançarmos um passaporte para a superfície, farão tudo o que pedirmos.

Ah, nobreza... Como não odiar?

Em um mundo com recursos limitados, onde a fome, peste e violência espreitaram a maior parcela da população, uma pessoa devia se dar por satisfeita em viver na muralha mais segura, com uma casa, refeições diárias e dinheiro para passatempos. Porém esse não era o pensamento padrão da sociedade de Sina. Lorde Lobov, por exemplo, nasceu numa família rica, nunca passou necessidades ou privações; sua influência no parlamento inspirou respeito entre seus semelhantes e temor entre os plebeus. Por que, em nome das Muralhas, ele desviava verba da polícia militar?

Porque ele é um filho da puta era a resposta.

No passado, perdi noites em claro tentando compreender tanta ganância. Eu era só uma garota ingênua, afinal de contas. Agora, eu era Scarlet Flawless e as nojeiras do caminho não desviavam o meu foco. O complô assassino de lorde Lobov não passou de uma gota de perversidade nos rios de corrupção a verter desse mundo. Eu podia voltar ao salão e buscar entre os outros nobres uma informação mais útil para o meu objetivo.

O único impedimento era aquele nome.

Erwin.

Havia um Erwin no meu passado, um que entrou para a Tropa de Exploração uma década atrás e com quem nunca mais tive contato. Se estava vivo ou morto, eu não podia dizer, embora sua imagem ainda queimar vividamente sob minhas pálpebras.

— Entre em contato com esses bandidos — ordenou o lorde. — Eles devem entrar na Tropa de Exploração e recuperar o documento. Isso é o principal. Também prometa mais que um passaporte. Diga que terão uma vida luxuosa e...

— Scarlet!

O chamado retumbou pelo jardim, calando o nobre e pondo meu coração em disparada. O sangue correu através de minhas veias com força dolorosa, o suor em minha espinha esfriou a ponto de causar arrepios. Virei-me lentamente enquanto o estranho que chamara se aproximou a passos barulhentos. Do outro lado dos arbustos, lorde Lobov permaneceu em um silêncio mortal. Merda.

O homem se deteve a um braço de distância, perto o bastante para o tom dourado de seus cabelos parecer familiar mesmo na baixa claridade. Se isso não fosse o suficiente para identificá-lo como o nobre descarado que me procurou no salão, a entonação melosa o faria.

— Até que enfim te encontrei — disse, sorrindo galantemente. — Para uma mulher tão notável, sua presença é bem escorregadia, não?

Que momento perfeito para tal declaração. O fato do idiota não saber que uma sentença de morte estava sendo dada a cinco metros de distância não me fazia odiá-lo menos. Ele ainda ousou estender a mão para um cumprimento. Segurei-a para ganhar tempo e ele roçou os lábios sobre meus dedos.

— Daniel Desvalles — apresentou-se, aquecendo minha pele com seu hálito. — É um prazer finalmente conhecê-la, Scarlet Flawless.

Pois bem, era hora do controle de danos.

Lorde Lobov e seu capanga sabiam que eu estava ali. Grande problema. O estúpido Desvalles deixou implícito que eu estava fora de vista a algum tempo. Ponto negativo. Considerando que mais nenhum som veio dos arbustos, lorde Lobov tentava manter sua presença oculta. Bom. Lorde Desvalles não demonstrou notar os outros homens, o que evidenciou sua imbecilidade, mas facilitou o meu trabalho. Tudo o que eu precisava era dar uma resposta convincente a pergunta que flutuou no ar: o que Scarlet fazia sozinha no jardim escuro?

— O prazer é meu, lorde Desvalles — cumprimentei, alto o bastante para os espectadores ocultos escutarem. — Engraçado saber que estava à minha procura, pois estou na minha própria perseguição. Por acaso viu lorde Lobov por aí? Disseram que ele havia entrado no jardim, mas não o encontrei nessa escuridão. Tenho algumas dúvidas para esclarecer.

Bem, isso nublaria as principais desconfianças. Não que elas viessem da parte de Desvalles, que se ocupou mais em encarar o meu decote do que ouvir a explicação.

— Não vejo Lobov há algum tempo, mas posso ajudá-la em sua busca. — Com uma confiança enjoativa, prendeu minha mão na curva de seu cotovelo e me puxou de volta para o salão. — Podemos usar esse tempo para nos conhecermos melhor. Ouvi tantas coisas a seu respeito, embora os boatos não façam justiça à sua beleza.

Doses extras de autocontrole me impediram de suspirar. A tagarelice de Desvalles pelo menos me poupou de dar outras respostas. Quando encontrar lorde Lobov novamente eu ofereceria uma apresentação de saideira. Mais duas músicas para alegrar seus convidados e dissipar qualquer suspeita. Depois, dedicaria uma análise aprofundada sobre a conversa do nobre e seu capanga. De qual documento falavam? Por que lorde Lobov ficou tão nervoso? O Erwin citado era o mesmo Erwin Smith que salvou a minha vida tantos anos atrás? Se fosse o mesmo homem, seria a hora de devolver o favor.


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Notas finais do capítulo

Atualizações às quartas-feiras!



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