EU TE VEJO - Um romance com o Coringa. escrita por Eurus


Capítulo 4
Vita Post Mortem.




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Quanto mais velho fico, mais percebo que a idade não traz sabedoria. Traz apenas cansaço. Não estou nem um pouco mais esperto do que há 30 anos. Só fiquei cansado demais para inventar mentiras e esconder temores. Autoconhecimento não mostra minhas imprudências. A exaustão mostra.

Kurt Sutter

Filhos da Anarquia T1xE6

Desde o retorno do Batman, Gordon se certificou de que realmente se tratava de Bruce e não algum simpatizante do vigilante, como já havia acontecido no passado. De início, com o Coringa deixando pouco rastro, não houve muito motivo para contatar Wayne. Na mente de Gordon ainda era estranho associar o Batman ao Bruce Wayne, o playboy magnata e bilionário de Gotham.  

Naquela madrugada Gordon foi ao encontro de Bruce em um armazém abandonado em Lyntown. O local carecia de luz e estava repleto de caixas de papelão velhos, tubos de aço abandonados e outras tralhas, as janelas tinham buracos e as paredes estavam desgastadas. Havia um cheiro ruim e forte, difícil de identificar. 

O Comissário olhava ao redor cuidadosamente e ao olhar para frente viu a alguns metros um homem barbudo que o observava silenciosamente. O jeito estranho que o homem o olhava na meia luz descartou a possibilidade de ser apenas algum morador de rua. Com os olhos semicerrados, apoiando a mão na pistola que carregava no coldre ao lado direito do quadril.

— Bruce? — o Comissário baixou a arma discretamente ao reconhecer os traços faciais do moreno a sua frente.

Bruce sorriu de lado em resposta. Vestia um sobretudo longo e tinha um gorro na cabeça. Realmente, se estivesse sujo poderia ser facilmente confundido com um morador de rua qualquer. Para Gordon ver Bruce Wayne de carne e osso era como ver um fantasma.

— Bem…Vejo que não perdeu o costume de aparecer do nada — Gordon sorriu apoiando as mãos no quadril.

Bruce sorriu curto.

— Um sequestro? — perguntou indo ao assunto.

— Sim. Aqui está uma cópia do depoimento de Britta Lena Ledger. Inclusive, descobri que a moça é advogada nas Empresas Wayne. Sua funcionária. 

— Em que instância? — Bruce correu os olhos pelo documento em mãos. 

— Parece ser nova. Finalizou o estágio e concluiu o curso de direito ano passado. 

— Ela foi confundida com a filha de um…engenheiro? — Bruce perguntou com as sobrancelhas tensionadas em confusão.

— Sim…é uma das… — Gordon procurou a palavra. — …Inconsistências do caso. Pra começar, ela falou com muita certeza que seu sequestro foi culpa do Coringa, mas quando perguntei por mais detalhes, não ficou muito claro que ela o viu. 

Bruce levantou o olhar para ver um Gordon cético.

— Acha que ela está mentindo — Wayne o observou curioso.

— Bem, ela aparece dizendo que foi sequestrada pelo Coringa, mas não tem um arranhão sequer. Além do mais, desde quando Coringa comete um deslize como esse? Confundir duas pessoas? — Gordon ficava mais e mais agitado com os questionamentos enquanto Bruce o assistia cuidadosamente — E digamos que ele realmente a confundiu com alguém, porque libertá-la?  Por que liberta-la tão perto da delegacia?

— Ela foi levada à delegacia? 

— As câmeras de segurança mostram que um carro a deixou praticamente na porta da DPCG.

— Foi possível ver mais alguém dentro do carro? Placa?

— Sem placa. Não foi possível identificar ninguém. 

— Alguma evidência na residência dela?

— O apartamento estava limpo. Apenas a cama foi revirada, de acordo com as gravações que conseguimos da ligação entre Britta e Jocelyn, a amiga que nos contatou. Mesmo isso! — falou de repente — Por que ela ligou para a amiga e não diretamente para a polícia? 

Bruce não respondeu, leu alguns trechos no depoimento por alguns segundos. 

— Bem…esperei pelo Batman na cena do crime — Gordon comentou o olhando de soslaio. 

Bruce não deu resposta e Gordon olhou ao redor disfarçadamente enquanto Bruce relia a cópia do depoimento pela segunda vez. 

— Ela não quis fazer todos os exames do corpo de delito? — Wayne o olhou.

— Mais uma inconsistência. 

— Não se ela sofreu algum tipo de importunação sexual…

— Ela nega. Nega qualquer violência a não ser um soco que a apagou no momento do sequestro e quando ficou contida por cordas para evitar escape. 

— Realmente não acredita nela — Bruce notou. 

— O detetive experiente dentro de mim duvida de muitas coisas que aquela moça falou, não consigo negar. Além do mais, conhecemos o Coringa o suficiente para…

— Jenkins — Bruce o interrompeu recordando o nome mencionado no depoimento. 

— Ah sim! — O detetive exclamou quase animado — Ela diz que ele a confundiu com a filha do engenheiro Jenkins mas nós checamos e essa pessoa não existe.

Bruce o olhou curioso. Estava mais que nítido a desconfiança do Comissário pela jovem advogada, uma desconfiança um pouco exagerada aos olhos de Wayne. Ele entendia que Britta Ledger era o que eles tinham de mais perto de uma pista para chegar a Coringa, provavelmente um rastro plantado, mas Bruce também duvidava muito que se desesperar e antagonizar a moça era uma escolha inteligente no momento.

— E o que isso nos diz?  

— Nos diz que Britta Lena Ledger é uma grande mentirosa ou Coringa quer nos dizer algo. Uma pista. 

— A segunda opção é mais a cara dele — Bruce falou quase para si mesmo olhando o nada. 

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Mesmo que tivesse a escolha de ir para a casa de algum parente distante, Britta não o faria. Além do mais, sabia que Coringa não ficaria feliz com uma tentativa de fuga. Seja lá o que ele quis dizer com ‘’informações das Empresas Wayne ", Britta, sempre muito prática ao lidar com conflitos, só queria acabar logo com tudo aquilo. 

O Comissário Gordon ofereceu proteção e ela não conseguiu rejeitar. Nas próximas semanas duas viaturas ficariam estrategicamente posicionadas próximo ao prédio. Rejeitou a oferta de ter um policial no corredor, isso iria ultrapassar o limite de privacidade pelo qual a jovem tanto prezava, sobretudo depois de tudo o que havia acabado de acontecer. 

Gordon também disponibilizou uma viatura para te levar para casa. Sentada ao fundo da viatura, Britta se deu conta que sua liberdade não era sinônimo de que estava livre de qualquer perigo. Durante o caminho inteiro se pegou relembrando as palavras do capanga sobre como seria monitorada e apesar de não ter deixado isso claro, estava certa de que em algum momento, seu apartamento teria câmeras. 

Percebeu que o policial dirigindo tinha olhos atentos em si através do retrovisor. Assim como seu parceiro sentado na carona, ele era bem jovem. Provavelmente poucos anos mais novo que ela. Tinha a pele branca e o curto cabelo debaixo do cap era ruivo. 

— Tudo bem aí, senhorita? — ele perguntou com as sobrancelhas tensas.

— Sim —  sorriu de boca fechada o tranquilizando.

Mas não estava tudo bem e Britta sabia que seu rosto muito expressivo não escondia isso. Estava em uma crise interna, mesmo porque odiava estar naquela condição vulnerável e pela primeira vez, não teve vontade de simplesmente ser deixada sozinha. Se sentir insegura lhe incomodava tanto quanto ter sua privacidade invadida. Ao mesmo tempo, não gostava da posição de vítima. Sempre foi do tipo de pessoa que chega em um lugar e se mescla ao ambiente. Naquele momento sentia que todos os olhos estavam em si. A peça principal de uma exposição distorcida e confusa. 

‘’Lembre-se, estamos te observando, sempre.’’

Só queria chegar em casa e descansar. Talvez no dia seguinte, quando o dia fosse outro, aquela sensação terrível de ter um bolo no peito lhe abandonaria finalmente.  Logo estavam em frente ao prédio, já era madrugada, a rua estava vazia e silenciosa. O policial sentado no carona abriu a porta assim que estacionaram. Britta o olhou confusa enquanto saía do automóvel e já foi falando.

— Eu falei com o Comissário que não precisa…

— Não se preocupe, só vamos fazer uma varredura rápida e a deixaremos em paz — o policial ruivo, que antes dirigia, sorriu simpático — Na verdade… — olhou rapidamente para seu parceiro. — Eu posso…— a olhou cuidadosamente enquanto falava — ...fazer isso sozinho, e o oficial Rodríguez espera aqui embaixo. O que acha?

O outro assentiu. Britta automaticamente olhou para sua farda lendo seu sobrenome completamente grata pela sua empatia. 

— Obrigada oficial Bullock — agradeceu sorrindo de lado por um rápido instante e praticamente correu em direção ao portão do prédio.

>>

Para seu alívio, o policial se manteve calado durante o trajeto no elevador. Realmente não queria ouvir nenhum tipo de conselho ou tentativas de lhe assegurar que ficaria bem. O ambiente familiar dos corredores fez Britta sentir-se segura e por um instante parecia que era só mais uma noite voltando do trabalho. A sensação mudou quando pararam em frente ao apartamento onde haviam as características faixas amarelas e pretas de isolamento cruzadas à porta. 

— Aqui — o policial Bullock lhe deu as chaves em mãos e lhe olhou preocupado quando a moça o olhou. 

— Obrigada…— a voz saiu em sussurro enquanto pegava o molho de chaves. 

Teve um rápido flashback do dia em que pegou aquelas chaves pela primeira vez. Lembrou de como não conseguia esconder o sorriso, tamanha sua felicidade em ter um apartamento tão decente pra chamar de seu. A parceria das Empresas Wayne com a prefeitura, incluía auxílios moradia, sobretudo para universitários bolsistas que como Britta não tinham família ou renda alguma. Naquele momento o sentimento era bem diferente. 

Seu lar, seu canto de conforto havia se tornado cena de um crime. Ela sequer imaginou que isso lhe aconteceria um dia. Não de novo. A violência não era uma novidade pra Britta, lidou com isso sua vida inteira mas estudou e trabalhou muito duro para que essa realidade ficasse longe do seu lar.  Não pode deixar de reviver memórias dolorosas de anos atrás.  

— Senhorita Ledger?

— Huh? — olhou para o policial.

— Você está bem? 

— Desculpa… — riu sem graça encaixando a chave na fechadura. — É só que…eu só tinha visto essas faixas em filmes e séries… 

Ao abrir a porta, o policial Bullock logo se colocou à frente. O apartamento estava do mesmo jeito de sempre. O que não causou grande surpresa à moça que observou o jovem policial empunhar a pistola e a olhar pelo ombro. 

— Procedimento padrão…

Ela assistiu o policial seguir pelo corredor que dava para o banheiro e quarto. Ao chegar no quarto pode ver o policial arrastando a cama de casal para o chão. 

— Ainda estava virada… — explicou.

— Ah sim…

Foi impossível não lembrar do momento em que os capangas viraram a cama para cima e lhe agarraram violentamente pelos braços. Fechou os olhos por alguns segundos se desfazendo da memória desagradável. 

— Bem…Imagino que queira descansar agora! — Bullock surgiu do corredor com um semblante leve e animado.

— Sim…—  a moça se viu sorrir espontaneamente.

— Boa noite, senhorita Ledger — ele assentiu com a cabeça dando as costas e ela ficou ali por alguns segundos o vendo ir.

— Pode me chamar de Britta — a resposta tardia saiu em uma voz cansada e ele voltou rapidamente a surpreendendo.

— O que disse? — perguntou confuso.

— Eu disse que pode me chamar de Britta —  falou sem graça.

— Ah! Okay… — ele sorriu simpático.

Por algum motivo aquele sorriso trouxe um alívio enorme para Britta. Como se seu sorriso tivesse desfeito todo o clima tenso que ela sentia pairar ao seu redor naquele momento.

— Boa noite, Britta — se despediu e ela acenou para ele, mas imediatamente ele retornou. — Acho melhor vir comigo pra trancar a porta…—  explicou. 

— Sim! Claro! — falou sem graça o acompanhando até a sala.

>>>

Desde que retornou a cidade, raras foram as vezes que Bruce se viu obrigado a vestir o traje, apesar disso, se certificou de fazer algumas atualizações, sobretudo na máscara. Passava a maior parte do seu tempo treinando ou em seu escritório. O casarão em Neville era diferente da Mansão Wayne em muitas coisas, mas era tão confortável e silencioso quanto. 

Aquela tarde, estava no escritório, como de costume. Enquanto corria seus olhos por documentos e informações em seu computador, Bruce podia sentir que já estava se acostumando ao ar diferente do lugar. Havia algum tempo que Bruce se habituara ao diferente e ao improvável em suas aventuras com Selina Kyle ao redor do mundo. Imediatamente lembrou-se de como ela o fez abrir os olhos para novas realidades e talvez a mudança que mais lhe incomodou foi a forma como se despediram. 

Selina não aceitava que Bruce retornasse a cidade e ele não entendia porque ela não podia simplesmente o esperar em vez de ter uma reação tão imediatista e conclusiva. Apesar da forma tensa que correu o último momento, Bruce decidiu manter em mente apenas os bons momentos. A memória sobre a morena o fez pegar seu celular e acessar seu contato quando ouviu passos lentos se aproximarem. Sabendo que se tratava de Alfred, pousou o aparelho na escrivaninha de Imbuia.

— Como pretende abordar essa garota? — Alfred perguntou assim que pôs os pés na sala. 

Bruce não respondeu. Quanto ao mistério mais recente, àquela altura não tinha pensado muito em Britta Ledger, mas sim no tal Jenkins.

— Seria fácil para o Bruce Wayne fazer uma visita a sua funcionária das Empresas Wayne…ter uma primeira impressão genuína e natural de quem ela é…

— Alfred — Bruce olhava para Alfred com um olhar seco e tão direto quanto suas próximas palavras. —  Você enterrou Bruce Wayne anos atrás.

— Exatamente. Eu fiz o que foi preciso ser feito. Não foi isso o que você queria?  

Perante a rebeldia de Alfred, Bruce respirou fundo. Já estava perdendo a paciência com o senhor inglês.  Apesar de Alfred não o servir mais como mordomo por causa das limitações de sua idade, Bruce achava natural tê-lo por perto. Alfred era seu mentor, era família. No entanto, desde que voltou a morar com ele, a atitude de Alfred parecia decair a cada dia.  Com a idade mais avançada, Alfred foi perdendo o tato ao falar. Era quase como se sua senilidade se tornasse uma conveniência, a famigerada teimosia de uma pessoa idosa. Seria cômico se não fosse um grande incômodo para Bruce.

— Tem alguma coisa que quer dizer Alfred?

— Sinceramente, há muito o que se considerar — o mais velho levantou as sobrancelhas exageradamente. — Mas no momento a pergunta que paira em minha cabeça é, quem é você?

— Eu sou quem preciso ser — Bruce resistiu a vontade de revirar os olhos.

Não havia acordado naquela manhã com a intenção de refletir filosoficamente em sua própria existência.

— Você nem queria estar aqui, Bruce.

— No entanto estou — farto do assunto, se levantou, pegou o smartphone e se dirigiu à saída passando por Alfred que estava a poucos passos da porta.

— Eu particularmente acredito que a vida após a morte não é somente um questionamento religioso ou cultural que permeia ao redor do mundo…Sobretudo acho interessante as várias formas nas quais são retratadas — incrédulo com o que ouvia, Bruce se viu obrigado a virar-se para encarar o mais velho. —  Ressurreição, vida nos céus, espíritos guias, reencarnação…

— O que está dizendo? — se perguntou se a idade estava fazendo Alfred se entregar à insensatez.

— Estou dizendo que Bruce Wayne não pode voltar à vida, mas o Batman pode. Batman pode ressurgir novamente. 

Em seu coração Bruce acreditava que o ressurgimento final do Batman havia acontecido quando saiu, literalmente, do fundo do poço. Dessa vez, Bruce pensava que o retorno do Batman não deveria incluir significativas aparições ou grandes feitos, de fato, na circunstância atual, Bruce acreditava que um bom trabalho de detetive seria o suficiente. Afinal, acima de qualquer coisa, Bruce entendia que a investigação sempre foi a maior parte do trabalho do Batman.

— E não é isso o que tenho feito? — irritado.

— Não. Não completamente — Bruce podia ver nos olhos de Alfred que ele realmente acreditava naquilo. — Qual Vita Post Mortem escolherá?

Diante tantas perguntas e o que estava em jogo, haviam certas dúvidas que Bruce escolheu ignorar por ora, por isso deu as costas ao senhor, decidido a não ter aquela conversa. 

— Está distraído. 

A voz do inglês soou fraca e distante, Bruce já descia o corredor a passos largos. Tudo o que conseguia pensar é em como a atitude de Alfred estava se tornando mais e mais trabalhosa de se suportar. Em outros tempos as opiniões contrárias de Alfred eram construtivas, traziam peças que faltavam em seus quebra-cabeças mentais. Suas discordâncias eram até benéficas. No entanto aquilo estava sendo diferente, realmente desagradável.

Alfred por outro lado tinha um sorriso quase presunçoso nos lábios enrugados. Sabia que Bruce estava evitando e fugindo de certos assuntos e estava mais que decidido a fazê-lo enfrentar tais questionamentos.  Enquanto se sentava na poltrona do escritório de Bruce, Alfred tirou um livro pocket de seu bolso, folheou as páginas da tradução francesa de O Pequeno Príncipe.

— O Batman de barba…— Alfred murmurou irônico para si mesmo balançando a cabeça negativamente. 

>>>>

Voltar ao trabalho pareceu o melhor a se fazer. Não fazia sentido para Britta ficar em casa, cada canto que olhava te fazia lembrar dos barulhos, os passos pesados, as máscaras esquisitas e o momento de pânico quando lhe agarraram. Além do mais, não queria passar a impressão errada de que estava evitando sua…missão?! A ciência de que estava sendo monitorada lhe deixava ansiosa e pela primeira vez em muito tempo, o silêncio de seu lar, tornou-se maçante. 

— Quais informações…?

Desejou ter feito mais perguntas quando teve a chance. De que informações ele estava falando? Provavelmente se tratava de informações de difícil acesso. Como conseguiria acessar tais documentos? Além do mais, qual era o prazo? Todos esses questionamentos a deixavam mais e mais ansiosa. 

Não podia negar que as Empresas Wayne era o único lugar em que sentiria alguma sensação de normalidade, pois se havia algo que fazia Britta se sentir segura, era a rotina. Sobretudo pelo DPGC não ter divulgado o caso, ninguém a olharia estranho. E assim foi, o prédio continuava igual, o mesmo porteiro, mesmos recepcionistas, muitos rostos conhecidos passando de um lado a outro. 

Assim que chegou em sua pequena sala de escritório de pura papelada, nunca se sentiu mais aliviada, ainda que aquela sala fosse uma de suas decepções. Quando foi contratada a um ano atrás e ganhou uma sala pra chamar de sua, Britta teve uma falsa ilusão de que estava avançando na empresa muito mais rápido do que na realidade. A sala era o mínimo dos requisitos para a natureza discreta de seu trabalho que envolvia lidar com contratos de importantes setores da empresa. 

Pousou a mochila cheia de documentos à mesa - os que imaginou que seriam de interesse dos marginais - e encarou a grande janela ao fundo que lhe daria uma bela vista se não fosse pela pilha de arquivos e mais arquivos que bloqueavam a visão para a avenida movimentada.

Um toque à porta lhe pegou de surpresa. 

— Pode entr…

Não terminou de falar e uma mulher com o dobro de sua idade, que aparentava ter o triplo com sua expressão carrancuda e um cabelo preso em um coque com cachos exagerados. O batom vermelho da Senhora Grace pareceu chegar antes dela mesma. 

— Lucius Fox quer que saiba que se precisar, pode tirar o dia de folga — após falar com todo o desprezo, a assistente a olhou de cima para baixo. 

— Lucius Fox? — Britta não podia acreditar. 

— É… 

Senhora Grace estava claramente incomodada e um pouco curiosa, o que lhe fez demorar a porta da jovem, esperando ter algum tipo de esclarecimento. Percebendo isso, Britta se conteve para não revirar os olhos. Se pôs a tirar as pastas da mochila para organizá-las na pilha na mesa atrás de si.

— Obrigada Senhora Grace — agradeceu forçadamente a fim de expulsar a presença amarga da assistente do diretor.

Enquanto voltava para casa, Britta se perguntava se aquilo era mesmo real. Pra começar, só de imaginar que o diretor Lucius Fox sabia de sua existência, era um pensamento fora daquele mundo. Desde a morte de Bruce Wayne, Lucius Fox havia tomado a frente das Empresas Wayne apesar dos intensos boatos de que sua idade não o permitia fazer o trabalho. 

Os boatos iam além, espalhando que um conselho era quem estava à frente da empresa, mantendo a mentira de que ele era diretor apenas para não desestabilizar ainda mais a empresa que havia perdido muitas ações desde a invasão de Bane. Para piorar, a discrição e reclusão de Fox fazia toda a fofoca ainda mais crível. Mas Britta não acreditava em nada daquilo. De fato, tinha uma admiração imensa por Lucius, que era conhecido por sua ética de trabalho e profissionalismo de excelência e consistência que Bruce Wayne nunca conseguiu sustentar. 

Além disso, para Britta e outros da comunidade afro-americana de Gotham, Lucius Fox era uma das figuras que mais representava e os inspirava na cidade. Foi Lucius o responsável pela iniciativa das Empresas Wayne junto a prefeitura de dar início a projetos sociais que a deram uma formação, uma moradia decente e a possibilidade de um emprego em tão pouco tempo.

Era louco imaginar que Lucius sabia de sua existência e refletindo em tamanha generosidade em lhe dar um dia de folga, se sentiu com bom humor suficiente para assistir uma série. Estava fazendo um chá de canela para tomar com biscoitos de leite quando ouviu batidas na porta da sala. De repente Britta estava tensa novamente.  

Após alguns segundos percebeu que havia prendido a respiração e logo batidas mais fortes e mais urgentes soaram novamente. Ela não soube se devia manter-se quieta ou perguntar de quem se tratava. Nesse momento se arrependeu de não ter um olho mágico em sua porta.

— Britta? — a voz de um homem soou familiar — É o Comissário Gordon! — imediatamente respirou aliviada. 

— Estou indo! — se apressou em destrancar a porta.

— Oi — ele deu um sorriso preguiçoso. — Desculpa vir sem avisar. Espero não ter te assustado. 

Percebeu o olhar curioso do Comissário em suas mãos. Britta que não tinha notado que ainda segurava o machucador de pedra em sua mão direita, sorriu sem graça. 

— Eu estava fazendo chá...— explicou. — Gosto de quebrar um pouco os paus de canela...

— Por favor, pode continuar — ele apontou para a cozinha americana atrás dela. — Serei breve. 

De volta a cozinha, Britta viu o policial sentar ao outro lado da bancada. Também viu quando Gordon colocou um pequeno gravador em cima da bancada entre os dois. 

— Tem algum problema? — perguntou curiosa.

Apesar de se considerar uma boa mentirosa, Britta sabia que seu depoimento havia sido um tanto vago. Algo no olhar e expressões do Comissário a fazia acreditar que ele não estava ali com as melhores intenções e para seu pânico interno, não sabia o que faria se fosse pega mentindo. Por um lado não queria mentir para a polícia mas por outro estava sendo monitorada 24 horas por dia e sabia que ir contra o Coringa poderia colocar a vida de Jocelyn em risco. 

— Não! Problema algum... 

Um bom mentiroso reconhece o outro. Sabia que Gordon estava mentindo, sobretudo porque por qual motivo o Comissário de polícia perderia seu tempo para visitar a vítima de um crime com um gravador? 

— Jocelyn está bem? — se certificou de perguntar.

— Sim. Temos uma viatura próximo a ela também — esclareceu e a morena se sentiu aliviada. — Bem, na verdade, gostaria de fazer algumas perguntas. Espero que não tenha problema — a jovem mulher notou uma ponta de ironia em sua voz, mas ignorou mantendo os olhos no chá que já borbulhava a sua frente. 

— Problema algum. Espero poder ajudar — sorriu curto. — Chá de canela? — ofereceu.

Gordon hesitou por alguns segundos. A moça o olhou atentamente, curiosa com sua hesitação. Naquele momento, uma tensão repentina e silenciosa foi estabelecida entre os dois.

— Não, obrigada — finalmente rejeitou. — Se importa se eu gravar essa conversa?

— Não — respondeu rápido. — Como posso ajudar? — perguntou casualmente enquanto colocava um pouco de leite na xícara com chá. 

— Sua amiga, a Jocelyn, foi muito inteligente ao gravar a ligação, no momento do sequestro. Nos ajudou muito. No entanto, depois de um tempo percebi que naquele momento poderia ter ligado diretamente pra polícia. 

Britta não conseguiu segurar o riso por conta do pensamento de que mais uma vez, lá estava Jocelyn dando um jeitinho de atrapalhar sua vida. Viu Gordon cerrar os olhos levemente por causa de sua risada irônica.

— A Jocelyn tem um costume irritante de ligar nos momentos mais inconvenientes. — Pousou a xícara na bancada e o olhou —  geralmente eu não atendo porque meu celular está sempre silencioso. Mas por coincidência, quando eu ia clicar na opção de ligar pro número da polícia acabei aceitando a chamada dela. Foi tudo muito rápido naquele momento.

— E você escolheu atendê-la? — a pergunta a incomodou, mas Britta manteve a calma.

— Eu gosto de pensar que sou bem racional, mas naquele momento eu estava muito nervosa — sentiu um leve constrangimento em seu íntimo ao relembrar o desespero durante o incidente. — Foi um deslize, como expliquei e como o senhor disse, acabou sendo de ajuda. 

— Hum...

Britta tomou um gole da bebida quente e levemente adocicada pensando em como queria estar tomando chá com alguns biscoitos de leite. Desejou que o Comissário fosse logo embora, estava atrapalhando seu bom humor. 

— A senhora disse que foi sequestrada pelos capangas do Coringa. 

Não gostou de como Gordon pronunciou a palavra ‘’senhora’’. Britta sabia que se quisesse o Comissário conseguiria controlar melhor sua má vontade em dar um de bom policial com ela. 

— Isso. 

— No entanto, não ficou claro em seu depoimento se viu o Coringa em si ou não. 

Aquilo era um interrogatório, não apenas ‘’algumas perguntas’’. Estava claro que Gordon estava tentando muito não ser mais incisivo em suas palavras. No entanto, Britta não se sentia intimidada. Tinha o desejo em atuar em tribunais, argumentando na defesa. Ele não a intimidava em nada. Se o Coringa queria que ela mentisse pra polícia, ela faria isso muito bem, sobretudo quando o Comissário estava decidido a encher o seu saco.

— Os capangas usavam máscaras de palhaços, estava escuro, como eu disse, houve momentos em que eu estava encapuzada, como quando me colocaram no carro antes de me libertarem. Além disso, algumas vezes ouvi os capangas falarem o nome dele.

Quando deu seu depoimento na madrugada do sequestro, Britta escolheu não falar sobre seu momento cara a cara com o criminoso. O momento havia sido esquisito demais e sinceramente não achava necessário contar. Como boa mentirosa, Britta sabia que era necessário ter muito claro a narrativa que contaria.

— Entendo, mas senhorita Ledger...

— Pode me chamar de Britta. 

— Britta — Ele sorriu amarelo. — Coringa é um dos criminosos mais sádicos e cruéis de Gotham, entende que o que está me contando é tão surpreendente quanto dizer que sobreviveu sem nenhum arranhão a uma queda de 15 metros de altura, sem equipamento de segurança?

— Bem, me apagaram com um soco — deu o mesmo sorriso amarelo. — Eu também não acredito em milagres, Comissário, mas tudo o que estou te contando é verdade — o encarou séria.

— E quanto ao que não está me dizendo? — perguntou após alguns segundos em silêncio. 

A pergunta a pegou de surpresa. A mulher sempre soube usar as palavras e informações a seu favor, mas Gordon havia acabado de tocar no ponto fraco da questão. Havia muita coisa que ela não estava contando e o olhar do Comissário no seu deixou claro que ele sabia disso. Para sua sorte, ávido em lhe interrogar e satisfeito com seu silêncio, o  policial continuou falando e como qualquer bom advogado, ela usaria o que ouvisse a seu favor.  

— Por exemplo, não contou que é advogada nas Empresas Wayne. Essa é uma informação importante. 

— Quando me perguntaram minha profissão, não me perguntam onde trabalho. Eu estava exausta, Comissário. Havia recebido um golpe na cabeça, não pensei que fosse uma informação importante...

— E no entanto não quis fazer todos os exames do corpo de delito — a interrompeu.

— Eu sei dos meus direitos — rebateu imediatamente. 

— Claro — o sorriso vitorioso do policial a deixou confusa.

Por que ele tá sorrindo? 

Não sei…O chá tá esfrian…

Teria Britta mordido alguma isca que não percebeu? Britta era inteligente, mas Gordon era um detetive experiente e muito competente. No entanto, a moça tinha ao seu lado a consciência limpa de que de fato era inocente e estava sendo chantageada. Além disso, deixar Gordon com uma pulga atrás da orelha era o melhor jeito que ela tinha de ele continuar determinado em sua investigação para então encontrar algo, já que Britta não tinha meios de contar toda a verdade de uma vez por todas. Gordon desligou o gravador e a mulher o olhou curiosa. 

— Britta, sei que é uma jovem inteligente. Não estaria trabalhando nas Empresas Wayne se não fosse. Não sei qual sua parte nisso, mas ninguém é sequestrado pelo Coringa e sai ileso e volta a trabalhar como se nada tivesse acontecido no dia seguinte. 

— Está me vigiando? 

— Sim. Estamos de olho em você. O ponto é, estou te dando a oportunidade de fazer o que é certo. Está mentindo ou não está contando alguma coisa. Agora é o momento de falar.

Ela sabia que o Comissário estava certo. Mas além de não poder falar a verdade, o ego de Britta não estava gostando nada do jeito que ele estava falando com ela. Se tem uma coisa que a moça mais detesta é as palavras: homem branco, autoridade, deboche e intimidação, em uma frase. Havia algo libertador na ideia de bater de frente com pessoas assim.

— Não pretendo receber mais visitas inesperadas. Se precisar fazer mais perguntas, ficarei feliz em ir à delegacia — sustentou o olhar dele e pressionou o dedo médio no botão do aparelho fazendo a gravação continuar. — Mais alguma coisa, Comissário? 

Ele levantou as sobrancelhas surpreso, mas logo fechou sua feição.

— Na verdade foi de grande ajuda, senhorita Ledger — respondeu se levantando e lhe deu as costas.

Assim que Gordon fechou a porta, Britta revirou os olhos se voltando para a chaleira a fim de esquentar o chá novamente.


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