Por Onde Andou Eichler? escrita por Mitchece


Capítulo 10
Não alimente as fadas




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A moral dos três não tava muito alta quando retornaram da gruta das iaras para o mirante do início da periferia de Àttinos, então ficaram em silêncio durante todo o trajeto.

Pólen deu mais um band-aid amaviado para Írios trocar o curativo da testa. Desta vez ele era da cor roxa e com estrelinhas voadoras. O garoto olhou seu reflexo numa poça de água e viu que o corte estava praticamente todo cicatrizado. Mágico.

Incomodada com o astral do ambiente, Pólen decidiu pegar o mapa de Breno para dar uma olhada no que havia na região. Em poucos segundos de pesquisa, seus olhos brilharam e disse que havia um atalho perfeito para voltarem às bicicletas.

Os dois rapazes a seguiram mata adentro, por fora da trilha. Apesar de Pólen ser contra cortar as ramas de plantas dessa forma, preferiu não discutir com Breno e o deixou afiar bem a lâmina de sua adaga para usá-la para cortar a mata e abrir caminho até chegar em um outro pico. Ele também tinha uma bela vista, mas do lado contrário do outro onde estavam.

— Eu não lembrava desse barranco - Breno comentou admirado e contente quando chegaram no local.

— A gente desceu aqui só uma vez, lembra? - a garota já se preparava para pular. - A Valen tava de guia e a gente meio que se perdeu, mas achamos essa maravilha.

De pronto feito, Írios não entendeu a empolgação dos dois. Era apenas uma descida íngreme coberta por um enorme campo de uma espécie de grama alta que lembrava um pouco de trigo pronto para ser colhido, mas com as hastes finas como fios de cabelos. As plantas cor de ouro balançam em ondas, seguindo o vento fresco que lhes agraciavam.

Mas quando Pólen deu um salto do alto do pico para cair de barriga sobre as plantas altas, Írios entendeu tudo. O corpo esguio da garota deslizou sobre os trigos dourados como se eles fossem um grande escorregador de sabão. Não sabia que tipo de propriedade mágica aquele campo tinha para dar esse efeito escorregadio, mas a garota se divertia demais. Breno se jogou logo em seguida e começou a soltar muitas gargalhadas. Írios gostava de ver gente rindo e se divertindo.

O garoto assistiu os dois se afastarem à distância até quase chegarem no final da grande descida, então também pegou um impulso e se jogou sobre os trigos dourados. O pulo para a liberdade causou-lhe um formigamento muito forte na barriga. Enquanto estava no ar, ficou com um leve receio de, por algum motivo, o trigo mágico não lhe dar o mesmo efeito que deu nos outros dois: pronto, cairia de cara no chão, numa queda bem feia e vergonhosa.

Mas a sensação de queda era daquelas fortes que fazia o estômago pinicar todo por dentro e a barriga ser invadida por um frio tão expansivo que desceu até para os pés. O toque do trigo na pele era sedoso e pinicava de leve, mas nada que desagradasse. Agora entendia porque Breno não conseguia conter aquela risada gostosa. Quase chegando ao fim, teve vontade de gritar em plenos pulmões, mas se conteve por vergonha.

Já no destino, na parte de baixo da encosta, Pólen e Breno se limpavam das pequenas sementes do trigo que ficaram grudadas nas roupas.

— Se não fosse um saco subir até lá, eu iria de novo - Pólen comentou ainda rindo

— Não dá pra voltar? - Írios apontou para o pico logo após retomar seu equilíbrio. - Não parece tão inclinado olhando daqui.

— Não dá - Breno respondeu retomando o fôlego. - É trigo-liso, é impossível fazer o caminho contrário sem escorregar para trás.

A roupa e a pele de Írios acabaram atraindo mais das sementes que o normal. Breno observou a dificuldade do garoto desajeitado em afastar as pequenas bolinhas de si.

— Posso ajudar? - pediu para Írios.

— Por favor.

Breno deu um passo para mais perto do rapaz e com leves tapas sobre o tecido de sua roupa ajudou a limpá-lo. Breno estava indeciso sobre sua oferta, mas as sementes podiam criar fortes irritações na pele se ficassem muito tempo em contato. Apesar de não morrer de amores por Írios, decidiu ser prestativo e evitar que ele passasse por maus bocados - e acabasse até atrapalhando a viagem.

Enquanto isso, Pólen anunciou que entraria numa parte da trilha ao lado para pegar algumas raízes que faltavam em seu estojo de cura, aproveitando que só encontraria algumas naquela região. Sugeriu que os dois garotos comessem um pouco antes de continuar a viagem e ofereceu frutas frescas que havia trazido porque estragariam antes dos outros condimentos secos e amaviados.

— Muito obrigado - Írios esboçou um sorriso genuíno para o garoto de cabelos curtos. Não esperava aquela atitude vinda dele. Mas Breno apenas afirmou com a cabeça e deu as costas para o rapaz.

Breno se isolou para o canto da clareira, ao lado de um pequeno e fino riacho. Sentou-se numa pedra alta e sacou um caderno de folhas sem pauta que ficou folheando enquanto comia seus chips de banana-da-terra e manga.

Írios ficou confuso com a atitude do garoto. Como podia mudar de um cara simpático para um excluído em poucos segundos? Será que se incomodava tanto assim com Írios? Se esse fosse o caso, Írios cogitou também se incomodar com Breno ou fazer pouco caso de sua presença.

Mas Írios não conseguiria ser assim. O garoto estrangeiro tinha para si que ele deveria se esforçar para demonstrar ser uma companhia agradável para Breno (ou qualquer outra pessoa), afinal, ele não estava lá para tirar vantagem dos dois feiticeiros, nada assim. Ele só queria… viver junto de feiticeiros iguais a ele. Finalmente ter a adolescência que foi privado de viver até então. Com seus iguais.

Mas também entendia que não podia forçar a barra. Se meter na viagem tinha sido o suficiente dessa cota. Depois de alguns minutos, Írios decidiu se aproximar de Breno (a uma distância segura), ainda de pé sobre o gramado, para admirar a vista do riacho. O garoto de cabelos pretos não tirou o olho do caderno e o outro notou que ele estava desenhando algo com um lápis de carvão, mas preferiu não ficar encarando diretamente o que fazia para não intimidá-lo.

— Você mora em Àttinos desde sempre? - Írios perguntou sem tirar os olhos da água cristalina que serpenteava sobre as pedras arredondadas. Queria demonstrar que estava apenas ocasionalmente observando o riacho.

— Uhum - Breno respondeu com um murmúrio. Não de desdém, mas sim de distração, pois tava concentrado no que fazia. Na realidade, não parecia estar incomodado com o fato de Írios estar próximo dele enquanto criava, ou incomodado por ser assistido. Então o garoto de pé decidiu olhar com mais atenção o que Breno fazia.

— Uau! Isso tá incrível - Írios comentou quando notou que Breno desenhava Edite com muitos detalhes. Seus traços eram firmes, seguros, com sombreamento delicado e que dava ao desenho ainda mais fidelidade do que representava.

— Ah, valeu - Breno aceitou o elogio meio acanhado. Estava finalizando os detalhes dos longos cabelos da iara.

— Sério, você desenha muito bem! - a admiração transbordava em suas palavras.

— Que nada - o garoto respondeu ainda focado no desenho. Não soou como falsa modéstia, parecia apenas uma falta de confiança: - Da turma de registro de natureza dos escoteiros, sou o piorzinho.

— Pra mim tá incrível - Írios comentou.

Como resposta àquele comentário, Breno estava acostumado a ouvir coisas como “Nossa, então os demais da sua tal turma dos escoteiros devem ser muito mais fodas!”. Lembrou-se de algo que Eichler costumava dizer sobre as qualidades e o jeito dos seus amigos: “Para mim, você basta”. Era algo que a mãe de Eichler repetia sempre para ele, então replicava para os amigos.

Breno parou de rabiscar e apontou o caderno de capa preta para Írios, que, sentindo a boa recepção, sentou-se ao seu lado na pedra para olhar com mais detalhes o desenho. Breno deixou-o até segurar o caderno.

Írios começou a folhear e percebeu que realmente eram desenhos de registros da fauna e da flora local. Tinha diversos animais majestosos e plantas esquisitas que ele jamais tinha visto, nem mesmo em filmes e séries. Sua criatividade nunca seria o suficiente para conceber aquilo tudo.

— Uau… - Írios murmurava a cada desenho que folheava - Olha esse rinoceronte com galhadas! Incrível isso…

Írios cheirava a nozes tostadas e o tom da sua voz parecia genuinamente interessado, doce. Breno não tinha parado para organizar as ideias sobre por que exatamente Írios o incomodava tanto. Sabia que começava por causa da armadilha do líquen, mas tinha algo ainda mais subjetivo que era difícil transmitir de sentimentos para palavras ou trazer para a superfície da sua lógica. Apenas… sentia raiva. E tinha para si que sentiria isso independente do rapaz mostrá-lo que não merecia.

Breno não se lembrava, mas um dos primeiros desenhos do caderno era um perfil de Eichler. Quando se deu conta, Írios já estava a uma página de chegar nele e preparou-se para virá-la por completo. Breno tomou-lhe o caderno das mãos com força e deixou Írios sem entender muito bem. O estrangeiro pediu desculpas e se afastou, levantando-se da pedra. Breno achou melhor que o recado final fosse de que Írios não tinha aquela liberdade toda com ele e decidiu guardar o caderno e voltar a comer em silêncio e sozinho. Servir intimidade para Írios era um erro.

— Vou dar uma mijada - Breno titubeou à Írios numa tentativa de justificar a saída brusca de perto dele. Mas o outro garoto tinha entendido seu desconforto porque conseguira ver de relance a figura de um rapaz na folha do caderno. Não reconheceu como sendo Eichler porque nunca tinha o visto, mas suspeitou dessa possibilidade. Até mesmo uma pequena fração de um registro de Eichler era o suficiente para Írios achá-lo absolutamente lindo.

— Tá bom - respondeu ameno para dar a entender que não se incomodou com a brutalidade de Breno. Voltou a sentar na pedra, desta vez sozinho. Não conseguiu deixar de se culpar por ter ido rápido demais na aproximação com Breno. Írios jurava que estava se esforçando para ser um cara legal, vencer a timidez e pelo menos… tentar.

Mas parecia que forças maiores sempre o atrapalhavam para fazê-lo falhar. Aquilo acontecia com ele em qualquer cidade que morasse ou grupo que tentasse fazer amizades. Talvez fosse destinado a ficar sozinho e a situação toda da viagem fosse uma falha de percurso, algo que não deveria acontecer em sua trajetória. Por isso estaria fadada ao fracasso e apenas geraria decepção à ele.

Írios respirou fundo, descontente consigo mesmo, e uma imagem curiosa surgiu em sua visão. Levantou a cabeça e escutou o som de bater de asas de insetos grandes, como besouros. Sobre a água fraca do riacho, viu uma pequena e magricela mulher de vestido rosa e cabelos loiros bem curtos. Ela se parecia tanto com a Sininho de Peter Pan que seu visual soou até como uma piada.

— Olá, humano! Você parece triste - ela exclamou o cumprimento com alegria e depois fez um beiço triste para falar sobre o humor de Írios. Sua voz era ainda mais aguda que a das iaras, mas isso condizia com seu tamanho. Não era maior que um lápis.

— Olá - Írios respondeu meio sem jeito e ainda se recuperando da surpresa do aparecimento dela.

— Meu nome é Alane! Sou uma fada! - girou no próprio eixo após dizer o próprio nome. Suas asas eram da metade do seu tamanho e batiam freneticamente como as de um beija-flor. Um pó brilhante emanava delas incessantemente, como glitter colorido. Era um serzinho agitado. Estava voando e tentando ficar parada na altura do olhar de Írios, mas seu corpo balançava de um lado para o outro, para cima e para baixo.

— Meu nome é Írios - foi o melhor que conseguiu dizer para aquela interação. Ainda estava tentando processar o momento filme da Disney que ele estava vivendo.

— Não fique desapontado assim, Írios! - a fadinha aproximou-se do seu rosto e deu um toque na ponta de seu nariz largo e arrebitado. - Nós, fadas, podemos te ajudar com um desejo!

Írios demorou para responder. Tinha muitas dúvidas e precisou escolher uma delas para falar primeiro:

— Qualquer desejo?

Seus olhos acastanhados brilharam. Ele poderia pedir para a fadinha Alane teletransportar Pólen e Breno direto para a tal ilha, e pronto. Os problemas deles seriam resolvidos e, inclusive, se veriam livres daquele feiticeiro meio humano e peso inútil.

— Realizamos qualquer desejo! - ela respondeu com uma alegria sem fim. Dava risinhos e saltitava no ar. Írios achou aquilo muito interessante, então levantou-se da pedra e ficou de costas para o rio para poder acompanhá-la voando para o centro da clareira.

— E você realiza desejo de qualquer um que encontra pela floresta?

— Nós usamos nossa magia para fazer o bem dos seres que vivem na floresta! - Ela respondeu muito orgulhosa do seu trabalho. - Vi você aqui, todo tristinho, e resolvi vir ajudar!

— Poderia… trazer alguém de volta à vida? - aquela curiosidade estava começando a queimar no fundo do seu estômago. Precisava confirmar.

— Eu posso fazer qualquer coisa com magia! - Ela estremeceu com ainda mais alegria e empolgação.

Nem Írios e nem Alane perceberam de imediato, mas Breno estava de volta à clareira, vindo pelas costas da fada. Quando notou o outro no fundo do seu campo de visão - ainda borrado do foco que estava na pequena Alane -, Írios viu a pequena fada ser cortada ao meio por um golpe diagonal da espada de Breno. O sangue rosa-choque espirrou para todo lado, principalmente no rosto espantado de Írios, e as asas cortadas da fada flutuavam levemente pelo ar até caírem no chão.

— Mas que merda! - Írios gritou quando sentiu o sangue quente no rosto. Ele alternava o olhar entre as duas metades do pequeno corpo espatifado da fada no gramado e o rosto furioso de Breno. Sua espada, ainda empunhada e em posição de ataque, estava emitindo fumaça de tanto calor.

— Oxe! Cê tá maluco? - o garoto de cabelo curto exclamou com raiva. - Dando moral pra merda de uma fada?

— Mas… - Írios não entendia o que havia feito de errado. Era só uma fada graciosa e uma conversa inocente. O que poderia haver de tão mal nisso a ponto de Breno matar a pobre e encantadora criaturinha?

— Você só pode tá de brincadeira, ayê— Breno resmungou decepcionado e tentando controlar a raiva. A espada aos poucos retornava à forma de adaga em seus braços agora relaxados. Depois, retornou à bainha. - Fadas são traiçoeiras, ela ia roubar a sua alma em troca de um desejo. É isso que as fadas fazem, ayê.

— Eu não sabia… - Írios sentiu-se imentamente estúpido e imaturo. Realmente, ser um feiticeiro pouco versado em magia vivendo na floresta daquele lado era perigoso, quem diria.

— É claro que não sabia - o rapaz resmungou com um rancor que já estava ficando marcado na figura de Írios quando falava sobre ele. - Você não sabe de nada, Írios! É por isso que não deveria tá aqui. Vai acabar matando a gente uma hora ou outra!

Írios não tinha muito o que contestar, então Breno voltou para perto da trilha de onde Pólen havia acabado de retornar. Ela assistia a cena um pouco confusa, mas já imaginando do que se tratava quando viu a fada morta aos pés de Írios e seu rosto pintado de rosa.

Írios, todo cabisbaixo e de ombros murchos, foi para o riacho limpar-se. Pólen aproximou-se dele para lavar as mãos sujas de terra e comentou antes de sair, num tom levemente irônico:

— Relaxa, agora você sabe que não deve se meter com fadas.

 

 

O restante do dia foi usado para continuar no caminho até o próximo ponto. Retornaram até às bikes e pedalaram por horas até o final da estrada que usaram para sair de Àttinos.

Írios se manteve mais ao fundo, afastado, para dar espaço aos dois amigos e para esconder sua cara de decepção consigo mesmo. Ficou atento às conversas deles porque temeu que Breno, depois do incidente com a fada Alane, convencesse Pólen a fazê-lo retornar à cidade. Mas tudo que ouviu foi, em certo momento, eles discutirem se fariam uma pausa ou não na fazenda da família de Julian.

A garota não parecia muito fã da ideia quando disse:

— Ele nem atendeu o búzio de ontem, ayê. Ele que se exploda agora.

— Cê podia ser menos rancorosa, né? - Breno pediu. - A tia Vilma bem que ia receber a gente com uma pratada de estrogonofe.

— E o Julian bem que podia dar moral pros amigos dele - Pólen encerrou o assunto com a reclamação irônica.

Breno imaginou que Pólen faria de tudo, até incorporar sua versão pedante e irritante, para reaproximar todos da Malta - era o que ela faria normalmente. Ainda estava tentando entender a disposição dela para deixar Julian e Valen para trás.

Os sóis já davam sinais de que se poriam no horizonte dali algumas horas quando entraram em mais uma trilha, desta vez numa floresta de pinheiros altos. Discutiram se deveriam montar acampamento em breve para descansar. Breno conferiu o mapa e viu que mais para frente não havia nenhuma fonte de água para eles tomarem um banho ou se limpar, então seria melhor pararem por ali mesmo.

Continuaram andando pela trilha até encontrarem uma clareira mediana. Deixaram as bikes amarradas umas às outras e Breno foi armar uma fogueira enquanto Pólen ensinava Írios a usar a barraca enlatada.

— Não tem muito segredo, é só puxar o lacre e jogar no chão que tá pronto - ela explicou mexendo na pequena lata. Se não fosse um desenho de barraca na embalagem, Írios juraria que encontraria milho quando a abrisse.

— E pra desmontar? - O garoto questionou, curioso, pois parecia que iria dar um trabalhão. - Preciso enfiar a barraca toda de volta na lata?

Ayê, não - Pólen riu de leve. - Pode usar sua varinha pra reverter o estado dela em lata de novo.

Írios engoliu em seco e ficou se questionando se seria capaz de fazer aquilo. Tinha pouca habilidade com a varinha, mesmo sendo um objeto cotidiano e relativamente simples de usar. Pólen percebeu sua preocupação, então continuou:

— A barraca é um objeto amaviado. É só fazer o movimento de giro com a varinha pra reverter e pensando na barraca virando lata. É simples.

— Tá bom - ele murmurou ainda inseguro.

— Se quiser, fica aí praticando. Só lembra de tirar suas coisas de dentro da barraca antes, senão vão ficar presas na lata.

— Tá bem, obrigado.

Antes que ela saísse de perto, Írios tomou coragem para fazer mais uma pergunta, mas desta vez bem baixo para que Breno não o escutasse:

— Pólen, o que é ayê?

Ayê é ayê, ué - ela respondeu como se Írios na verdade soubesse a resposta e tivesse tirando uma com a cara dela. Se afastou para ajudar Breno na tarefa dele.

Írios deu de ombros e desistiu de entender o que aquilo significava. Se concentrou na lata em suas mãos e fez como a garota orientou. Em poucos segundos, a lata que jogou aos chãos havia se expandido em forma de uma barraca de acampamento grande o suficiente para acolher duas pessoas. Depois, puxou sua varinha do coldre e ficou fazendo o movimento de giro que ela citou, mas nada aconteceu com a barraca num primeiro momento.

Em uma das várias tentativas, tudo que conseguiu fazer foi tombar a barraca para o lado e quase sair rolando pela clareira. Conseguiu recuperá-la logo, e então lembrou-se de fixá-la no chão com os ganchos que possuía.

Pólen foi para o canto da clareira montar sua barraca e ajeitar sua mochila. Para iluminar o local, jogou sua adaga no ar e com um cantarolar a fez flutuar ao seu redor, emitindo uma luz amarelada. Írios sabia fazer aquele tipo de magia, mas ficou prestando atenção em como a garota cantava para enfeitiçar a arma. A letra da cantiga era comum para ele, mas ficou impressionado com o domínio de Pólen sobre a cantalíngua: era praticamente perfeito, sem sotaque algum para o português.

A sonoridade que a voz da garota tinha enquanto usava a língua das coisas impressionava. Parecia tão perfeita quanto nas fitas que Írios ouvia para aprender as cantigas na escola. O tom de Pólen se projetava para fora com clareza extrema e o timbre era delicado. Era tão versada em cantalíngua que parecia que havia outra voz dentro de sua voz, como se estivesse cantando dentro de uma gruta com eco. Impossível os objetos amaviados não entenderem o que ela suplicava com sua magia.

O garoto ficou prestando atenção em como ela encantava a arma com maestria, focando principalmente na letra para tentar reproduzir mais tarde. Cantalíngua soava como francês e precisava ser proclamada com fluidez para que a magia acontecesse limpa e sem imprevistos. Se Írios conseguisse reproduzir aquela cantiga quase como Pólen, poderia ter um bom resultado - mesmo sem dominar totalmente aquela língua.

Mas algo aconteceu e deixou tanto Pólen quanto Írios encucados: a adaga de Pólen caiu ao chão, desrespeitando seu cantarolar como se a garota tivesse o interrompido. Ela tentou cantar mais alto e claramente, mas a adaga não reagiu. Até mesmo a luz que emitia se apagou. Pólen ficou desconfortável e irritada com a arma e Írios preferiu parar de ficar olhando a garota para não constrangê-la ainda mais.

— Desgraça de arma - Pólen resmungou recolhendo a adaga do chão. - Desgraça de Iterum.

Írios não sabia o que Iterum significava, mas decidiu não perguntar. Voltou a se concentrar no seu destalento em conseguir fazer uma simples barraca voltar a ser uma simples lata de alumínio.

Depois de um tempo, Pólen e Breno ficaram conversando ao redor da fogueira quando os sóis se puseram. Írios se aproximou apenas para dividir com eles uma refeição. Esquentaram alguns legumes em espetos sobre o fogo. Depois, o garoto se recolheu na barraca.

Nunca tinha acampado antes, era tudo meio esquisito. Fazer as necessidades, mesmo encolhido entre arbustos e árvores, era extremamente desconfortável. Írios sentia que aquelas florestas tinham olhos em todo canto. Se uma fada surgiu na sua frente sem mais nem menos mais cedo, o que mais poderia sair entre aquela mata?

O banho também não foi lá grandes maravilhas. Esperou que Pólen e Breno fossem primeiro e se enfiassem na mata para alcançar uma bica próxima para se limparem, um de cada vez. Mesmo Írios duvidando muito que os dois amigos teriam interesse em espiá-lo, ficou extremamente envergonhado por ficar nu no meio da mata. Aquele deveria ter sido o momento mais vulnerável de toda a sua vida naquele Lado.

De volta ao acampamento, um leve medo bateu sobre os ânimos de Írios. Logo ficaria totalmente escuro e ele não conhecia aquela floresta, nem o que vivia nela. Queria dormir rápido para não ser consumido por aqueles pensamentos. Pelo menos, se acontecesse algo, as barracas dos outros dois estariam por perto.

Antes de se recolher na barraca, Írios ficou afiando sua adaga no lado de fora enquanto Breno e Pólen continuavam jogando papo e dando risadas ao redor da fogueira.

O ataque de Breno à fada o deixou em alerta para novas possíveis ameaças e não queria estar despreparado, principalmente para não haver motivo para o taxarem de peso-morto ou agouro na viagem, mas ele ainda sim aproveitava ao lado da amiga.

— Írios - Pólen pediu em meio a soluços de tanto rir -, vem aqui, rapidinho!

Acuado e surpreso com o chamado, o garoto deixou a adaga e a pedra de amolar e foi com passos tímidos até a fogueira.

— A gente tava lembrando da história trágica da Valen quando a gente tava aprendendo a invocar escudos na escola - Pólen introduziu limpando as lágrimas de tanto rir. - Sério, ela era péssima, muito ruim, horrorosa. Mas, assim, é uma parada difícil mesmo, geral errava muito na aula. Mas a Valen era muito pior. Ai, eu amo as histórias desse dia. Foi assim na sua turma também? Por favor, diga que têm uma história catastrófica sobre aulas de escudos.

— Ah - Írios começou meio sem jeito porque não sabia como explicar aquilo. - Não tive essa aula lá no Outro Lado.

O humor de Pólen e Breno quebrou um pouco por causa da estranheza que a resposta gerou.

— Como assim? - Breno indagou, já achando que se tratava de uma piada mal feita. - É um módulo mega básico.

— É que lá é meio… diferente. Ruim, pra falar a verdade. A gente aprende pouca coisa, é só o básico - sentiu-se o maior coitado ao falar, mas era a realidade. Sua esperança era aprender a ser um feiticeiro de verdade quando começasse a ir na escola de Àttinos, ou convivendo com pessoas como Pólen e Breno.

— Ah, entendi - Pólen respondeu com um misto de pena e decepção por não haver nenhuma história engraçada para ele jogar na roda.

Írios até queria ouvir qual era a tal da história da Valen que a Pólen estava contando, mas preferiu se despedir e se retirar para a barraca. Retirou da mochila uma das sementes de araucária que tinha pêgo após se livrar do líquen e colocou abaixo do fino travesseiro para adormecer logo.

Do lado de fora, Pólen notou o seu búzio chamá-la. Correu até sua bolsa para pegá-lo e colocá-lo no ouvido. Ouviu a voz de Julian e seu corpo reagiu alegremente pelo contato do amigo. Achou que se tratava de uma ligação. Já imaginou que Julian mudaria de ideia e diria que os encontraria no dia seguinte, mas a voz do morosa do amigo ocupou-se apenas em confirmar que de fato ele não toparia ir para a viagem porque sua família precisava dele.

Depois de ouvir a mensagem, Pólen chutou com força parte da madeira que Breno havia recolhido para a fogueira. O rapaz observou-a um pouco assustado com o acesso de raiva. No dia anterior tinha sido ele a estourar daquela forma. De fato, aquele período parecia estar sendo estressante para eles a ponto de causar tantas oscilações em seus humores.

Breno sabia o quão importante era para Pólen manter a Malta junta e reunida, principalmente naquele momento conturbado. Acompanhou tudo que ela tentou fazer para mantê-los próximos após a morte do Eichler. Aquilo era importante para o rapaz também, claro. Mas para Pólen significava algo maior e bem mais profundo.

Irritada e querendo esconder as lágrimas que começaram a brotar de seus olhos, Pólen resmungou um boa noite choroso para Breno e enfiou-se na sua barraca. Breno continuou ao pé da fogueira. Recordou seu caderno e abriu na primeira página, onde pôde ficar admirando o perfil de Eichler.

Ah, como Breno queria que aquela fogueira que o aquecia estivesse também alimentando Pólen, Eichler, Valen e Julian ao redor dela. E eles esquentando uns aos outros com longas conversas e risadas.

Poderia ser só por mais uma noite, um único momento, uma hora, que fosse.

Pelo menos poderia saber que seria a última vez, e daí poderia aproveitar de verdade como as últimas vezes mereciam.

Mas tudo que podia fazer naquele momento era dormir para que a sua cabeça o deixasse em paz.


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