Tudo que eu deixei escrita por alegrrdrgs


Capítulo 14
XIV




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Quando chega o dia, finalmente, o clima é de despedida. Eu abraço as meninas, com medo que alguma coisa aconteça com elas no caminho. A Carol ainda não gosta muito de mim depois de tudo, e eu acho que à essa altura ela nunca vai gostar, mas ela me deseja boa sorte mesmo assim.

Eu peço pro Rafael tranquilizar o Lucas e a Miranda, dizer que eu estou bem e vou assim que possível. Ele reforça que vai voltar com mais pessoas, para levar nós três, promete que vai voltar. Até lá a Bruna vai estar curada. Se ainda assim ela não tivesse... Nenhum de nós cogitou aquela possibilidade em voz alta. E eu sei que ele vai tentar realmente, mas não tenho tanta certeza se os outros sobreviventes vão querer se arriscar por três pessoas que não conhecem. Eu abraço ele muito forte, mas me recuso a chorar.

A Bruna morre de medo. Eu sei disso só de olhar para ela. Medo que a gente mude de ideia, que decida ir embora enquanto tem chance e deixar ela para trás para morrer de fome e de sede no chão do escritório. Ela se vê como um empecilho. E ela é, de fato, mas nós nunca deixaríamos ela para trás. Ela pode ser um empecilho, mas qualquer um de nós poderia estar na situação dela. E ela é família.

Ela chora quando se despede das meninas, e o clima é tenso, uma eletricidade no ar que antecede a tempestade. Tanta coisa pode dar errado, e tanta coisa pode dar certo.

A Maria desce primeiro, e então a Carol. O Rafael pula com uma habilidade que um de nós jamais teve, e isso só deixa mais óbvio como nós estamos doentes depois de anos bebendo água da chuva e comendo comida fora da validade, trancados em um prédio sem circulação de ar.

O José e o Moisés conversam entre si enquanto eu me despeço. Eu não presto atenção na conversa deles, olhando para os três que esperam na rua, ansiosos. Eu peço para eles me passarem a bolsa da Maria, para eu jogar para ela.

E então, o que eles fazem:

O que os dois grandes idiotas fazem:

Eles me jogam pela janela.

Eles aproveitam a minha distração, seguram meus braços e pernas e então me deixam cair. O José passa as minhas pernas pela janela, tão rápido que eu não entendo o que está acontecendo, o que eles pretendiam. O Moisés segura minhas mãos, inclinado para fora da janela, e eu encaro ele chocada com a traição. Eu balanço as pernas, tento voltar para cima, aperto a mão dele com força sem querer soltar, mas ele me solta.

Ele me solta, e o Rafael me levanta assim que eu caio no carro, fazendo um barulho alto. Não é uma queda alta o suficiente para me machucar, mas a traição dói muito mais. Eu tento pular de volta, tento voltar, mas ele fecha as cortinas. Fecha as cortinas pela primeira vez em quatro malditos anos, desde que nós assistimos os zumbis devorarem todos na rua. Ele diz que me ama, e então fecha a janela.

Eu grito e esperneio e mando ele abrir a janela, digo que eu não vou sem ele. Que é para ele pelo menos ter a decência de conversar comigo. Grito pelo José, imploro para ele me ajudar.

Mas nenhum dos dois volta a aparecer na janela.

E eu sei que eles não vão voltar.

Ele fez o que achou que era o melhor para mim.

Toda a minha gritaria começa a atrair zumbis, e por mais que eu queira matar o Moisés eu não quero colocar as meninas ou o Rafael em perigo, então eu respiro fundo, sinto a minha garganta fechar mas me recuso a chorar, ignoro todo o ódio que eu sinto por todos os homens daquele lugar, e a gente corre.

A gente corre, se esquiva e corre. Se esconde e corre mais um pouco. Sem fôlego, com sede, exaustos, a gente continua correndo. Eu choro a maior parte do tempo, em silêncio. Os zumbis aparecem a cada esquina, mas ainda é claro o suficiente e eles são lentos o suficiente para não ser um perigo imediato. O Rafael é experiente o suficiente também para conseguir escapar.

A noite chega e fica perigoso demais. Ele diz que nós estamos perto, mas é melhor parar. Foi um dia inteiro correndo, e nem eu nem as meninas aguentamos mais. Se nós quatro demoramos tanto tempo, eu não quero pensar no restante.

Nós entramos em um carro, as meninas no banco de trás e nós dois na frente. Elas dormem quase imediatamente, exaustas e desacostumadas a qualquer exercício físico, as pernas inchadas e a respiração ainda acelerada. Mas eu não consigo dormir.

Eu choro, mas de raiva. Ele me conhece bem o suficiente para reconhecer a expressão. Então ele me segura pelos ombros e me pede para parar, me pede para me controlar. Olha para trás, e mesmo dormindo as duas parecem aterrorizadas como ratinhos que saíram da toca, e ele me pede de novo, com firmeza. Me avisa que eu preciso me controlar.

Eu acuso ele, digo que ele ajudou os dois a planejarem isso. Ele se defende dizendo que não sabia de nada, que ficou tão surpreso quanto eu. Mas que era óbvio que ficar era mais perigoso que ir, então fazia sentido que o meu namorado tivesse me mandado embora.

Eu decido que odeio o Moisés.

O José também. Por que ele trocaria de lugar comigo? Não faz sentido. Apesar de que faz, sim. Mas não interessa, porque eu odeio os dois mesmo assim.

Ele diz que entende a minha dor, que sabe e que entende. Mas que eu preciso me controlar, ou nenhum de nós vai conseguir sair daqui. Ele me manda olhar para as meninas, aterrorizadas, e me diz que se eu não me controlar todo o risco vai ser a toa. Que se eu não me controlar, eu nunca mais vou ver a Miranda ou o Lucas.

Então eu controlo. Ou pelo menos digo para ele que vou me controlar, que vou fazer isso pelo meu irmão. Mas eu não durmo a noite inteira, e quando o sol nasce eu acordo eles, apressada, porque não confio em mim mesma sobre não voltar nem que seja para gritar com os dois que ficaram.

Chegar na canoa é rápido, porque nós realmente estávamos perto. Mesmo com as nossas pernas doloridas, tremendo, nós chegamos rápido.

Finalmente lá, a gente se reveza para remar, mesmo que só o Rafael tenha ideia do caminho. A comida acaba, mas pelo menos tem água ao nosso redor. Eu continuo calada, processando. Com medo. Com medo por ele. O que ia acontecer se a gente não conseguisse voltar? Se alguma coisa acontecesse com eles? E se outra pessoa aparecesse, agora que finalmente tínhamos sido descobertos por sobreviventes? E com menos pessoas ele não vai poder escapar das compras. E se acontecer alguma coisa?

Eu sei que é o fim, que eu nunca mais vou ver o Moisés. Que toda aquela história sobre eles irem depois não vai acontecer de verdade. Eu sei que nunca mais vou ver o Moisés, que nunca mais vou ver ele. A Bruna e o José também, mas ele principalmente.

O caminho é longo, tempo o suficiente para pensar. E esse é o problema. A minha maldita mente, que não para de pensar.

Se alguma coisa acontecesse com ele... Eu não saberia lidar. Simples assim. Eu explodiria antes de conseguir lidar com isso.

Mas vai acontecer, eu sei que sim. Eu sei que não vão querer voltar para ajudar. Por que eles voltariam? Por que os sobreviventes sairiam do paraíso que criaram para ir ao inferno buscar três pessoas?

A porra do escritório, a porra do luar, o beijo escondido, as risadas na loja de roupa, o cubículo... A porra da maneira como a gente partiu o coração da Ana, e como no fundo eu não me arrependia porque isso significava que eu tinha conseguido ficar com ele. Tudo, todos os momentos, tudo passando pela minha mente. As promessas e o faz de contas, tudo que a gente poderia ter num mundo normal, tudo que a gente foi ali. Ele era tão estúpido de jogar tudo fora tentando me salvar?

A gente dorme no barco, revezando de dois em dois, e em algum momento as minhas lágrimas secam. Quando finalmente o rio faz uma curva onde dá para enxergar a fazenda sob a luz do sol nascente, as pessoas no trapiche curiosas, e nenhum zumbi, eu penso que tinha passado tanto tempo com saudade da minha família, tanto tempo querendo voltar para eles, e agora eu finalmente ia me reunir com eles.

A expectativa de encontrar os dois. A saudade absurda, que quase me enlouqueceu.

Mas a que custo?

Eu vejo o Lucas, tão maior que garotinho que eu me lembrava, correndo pelo caminho de pedras para chegar até o trapiche, curioso como as outras pessoas que esperam. Isso quase me fez esquecer. Quase. Deveria ter me feito esquecer, na verdade, porque nada deveria ser mais importante que aquilo.

Mas eu tinha passado quatro anos trancada naquele prédio, quatro anos tendo só aquelas pessoas. Chorando no ombro deles, recitando harry potter com o José, conversando com a Bruna sobre tudo e qualquer coisa. Quatro anos chorando e sofrendo e tendo certeza que nós íamos morrer juntos ali. E mesmo quando eu olhava para Carol e a Maria, de mãos dadas na canoa, em expectativa e com medo e ansiosas, eu não deixava de sentir carinho por elas, mesmo que elas me odiassem e me culpassem. A Tainá, carinhosa e paciente como uma mãe, que tinha morrido. A Ana, gentil e cuidadosa até o fim, que também tinha morrido.

Eles também eram a minha família, o idiota do Moisés era a minha família. A porra de um relacionamento que não deveria ter sido tão bom, se encaixado tão bem, ter feito tanto sentido mesmo no meio do apocalipse. Eu fiz de tudo, a minha vida inteira, para não me apegar a ninguém além do necessário, e o plano não poderia ter dado mais errado.

Eu queria não ter amado ele, porque seria mais fácil. Eu quero não pensar nele, não lembrar do sorriso dele, da risada, da testa franzida em preocupação, a porra do olhar dele tão perto do meu quando ele me beijava, a voz dele dizendo que me amava e ia ficar do meu lado. Ele por inteiro, corpo e alma, salvando a minha vida de todas as formas possíveis.

Eu posso ver o Lucas se aproximando, o choque no seu rosto quando me reconhece assim que estamos perto o suficiente. Os outros, ainda curiosos com a cena, em choque com a novidade que o Rafael traz na canoa. A Miranda próxima a eles, confusa e então correndo. Ela corre primeiro, e então Lucas parece despertar e corre também. O choque em seu rosto assim que me reconhece, a confusão no seu olhar. Chorando, correndo, os dois vindo até mim, os gritos me chamando.

Lucas, vivo, me chamando.

Miranda, viva, me chamando.

Chorando, se jogando na água para chegar até mim (e uma parte do meu cérebro pensa em como ele não sabia nadar quando eu o deixei), e quando eu pulo na água, finalmente de volta ao rio com eles dois, o meu irmão me abraçando e a minha irmã me abraçando, nós três chorando e eles gritando o meu nome mesmo quando nós três estamos agarrados, uma parte de mim agradece ao Moisés.

Eu tinha conseguido voltar para eles. E eu me sentia feliz e grata por isso. Mas...

Mas eu sei, nesse momento, que devia ser o mais feliz da minha vida, que sempre ia existir um "mas". Que o momento mais feliz da minha vida não estava completo.

Porque eu não podia simplesmente esquecer, porque eu não conseguia ignorar tudo que tinha acontecido, o que tinha me levado até ali.

Eu sempre vou pensar em tudo que eu deixei para trás.


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