Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska
Mina despertou de forma tão súbita quanto caiu na inconsciência. Uma mão chacoalhava seu ombro, já estava claro e a grama jazia vermelha, coberta de pétalas.
“Céus,” Ouviu a voz de Anna. Era ela quem acordava-a, repetindo seu nome, “De ressaca justo hoje? Não sabia que você era dada aos excessos.”
Ah, sim. A garrafa de gin ainda estava ali, embora houvesse ainda álcool lá dentro. Carmina soltou um suspiro, ergueu o tronco e segurou a cabeça em mãos. A noite havia sido um delírio. Mas ao vê-la assim, desacordada e próxima de bebida, é claro que Lena e Anna ou qualquer pessoa interpretaria de outra forma. Tinha que contar o básico para elas, para que pudessem ajudá-la, de alguma forma. Poderia permanecer sendo uma criada, mas fazer parte de um trio soava melhor do que solidão sem ganhos.
“O meu pai…”
Carmina sentiu a atmosfera mudar. Lena, que até então estava afastada, encarou Anna com um ar de gravidade, tensão.
“O que houve?”
“Carmina, o seu pai…”
“Foi encontrado morto hoje pela manhã. Só havia a janela aberta, o corpo e uma xícara de chá quebrada no chão. A patroa chamou o médico. Parece que foi um engasgo que o matou.”
Seguiu-se um instante de silêncio. E de tantas coisas que rodopiaram pelos pensamentos de Carmina, o resultado foi um sorriso crescente. Depois, uma gargalhada. Esperou rir sozinha, pois a satisfação e alívio pareciam só seus, entretanto, não demorou para escutar a risada das outras duas. A má reputação de seu pai o precedia e, ainda que não merecesse reverências ou solenidades mesmo na morte, surpreendia que Lena e Anna fossem tão abertas em partilhar do deboche.
Ajudaram-na a se levantar. Carmina colocou o medalhão no pescoço enquanto questionava:
“E a patroa?”
“Tão chocada que nem consegue sentir alívio.”
“Ainda,” Lena adicionou o comentário à resposta de Anna, “Dê-lhe mais alguns dias e logo verá a madame em seu auge.”
“Seria o melhor dos cenários,” Mina suspirou, “Mas a patroa já não era muita coisa sem suas porcelanas, talvez não reste muito sem o seu imenso peso de papel chamado marido. Já não é da minha conta.”
“Bom, até o homem ser enterrado, é da sua conta sim. Madame não sabe nem por onde começar.”
“E os hóspedes? Aqueles dândis que amam chá?”
“Estão estupefatos, mas não partiram.”
Mina enxergou claramente o que deveria fazer e não poderia ser mais grata ao poço e ao que quer que houvesse dentro dele.
“O corpo que esfrie. Preciso lidar com os hóspedes primeiro. Alguma de vocês duas pode pedir a missa para o padre enquanto resolvo isso?
O arranjo foi acertado: suas novas cúmplices pediam os ritos fúnebres ao morto, já Carmina foi tratar com os homens de negócios. Não tinha muito mais que suas roupas escuras, mas era o momento certo para colocar um vestido preto e não tocar no próprio avental. O medalhão em seu pescoço, tocado na noite anterior por uma visão carmesim, suscitava uma aura diferente em sua figura — ou aquilo, aquele novo olhar, era provocado por ter um desejo tão sordidamente realizado?
Os homens a receberam. Ouviram seu nome completo, souberam quem havia preparado os chás e puderam provar da sua erudição. E depois das amenidades, condolências e discursos vazios, Carmina foi direto ao ponto que lhe era mais caro: negócios.
“Afinal, o acordo entre vocês e meu pai parecia bem acertado antes dessa fatalidade. E sei que o coração de vocês tomará a atitude correta em tão delicada situação de uma viúva e uma jovem como eu. E veja, eu já era uma coluna de apoio para meu falecido pai, sei que levar adiante o sonho dele é o que ele desejaria. Um grande negócio e sustento para a filha.”
Houve desconforto, uma pausa e, então, consenso. Ela não poderia se importar menos com a motivação por detrás do sim daqueles senhores, desde que cumprissem sua palavra. Será que temiam a vergonha por deixarem mulheres desamparadas? Temiam a fúria de um morto? Ou era a estranha história de que um tiro em uma raposa trouxera azar?
O fato é que o negócio estava selado. Carmina fez parte do contrato dos chás e os assuntos financeiros agora lhe diziam respeito.
Quando chegou o funeral de seu pai, ela vestia cetim e detalhes em renda preta. Sua mãe acompanhava-a, ainda incerta de como agir agora que não era mais senhora ou patroa de sua filha, sem ser serva também de um marido ruim. O local estava deveras vazio para um homem tão conhecido, mas apropriado para um homem detestável.
Ouviu as preces e não disse nada. Não quis ver o rosto do pai nem quando o caixão ainda estava aberto, pois a última lembrança que queria ter dele era a forma com que a chamará de rata e lhe mandara ao relento. Se um dia se considerasse muito dura em seu ódio, muito fria em relação à própria mãe, lembraria disso e de como aquele ponto havia sido permitido por uma sequência de eventos imperdoáveis dos dois.
Em um dia perfeito de Primavera, com o vento cantando e pétalas vermelhas caindo, ela se despediu-se do caixão a ser engolido na terra. Disse apenas uma coisa àquela caixote de madeira, indiferente ao seu conteúdo:
”Obrigada, senhor.”
Seu sorriso discreto era ácido e tão verdadeiro.
A reclusão da família nos dias que se seguiram ofereceu tempo suficiente para Carmina pensar. Com os ganhos do Festival das Flores e uma soma de dinheiro no nome de seu pai, foi possível pagar os ritos e ainda sobraria até que os lucros viessem à sua porta. Futuramente, Lena e Anna seriam suas sócias.
Comprou as galinhas do vizinho, mandou reforçar o galinheiro. Mas, de tempos em tempos, deixava um pedaço de carne nos fundos da propriedade — tal qual uma oferenda, um agradecimento à uma raposa. E a carne sempre sumia na manhã seguinte.
Sentada e com muito tempo livre, Carmina tinha uma caneta tinteiro e papel em mãos. Voltara à poesia.
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