A Dança das Serpentes - Interativa escrita por Dhuly


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Novamente com mais uma interativa nesse universo que eu nunca me canso, espero que vocês também não :)



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c i d a d e   s o m b r i a

A luz do sol passeava pelas cortinas translúcidas e coloridas de seda, beijando as maçãs do rosto do Príncipe Ardyn Martell. Já era tarde na manhã, o que dizia que não era mais a luminosidade sincera do começo do dia, mas sim a quente e escaldante que dava a Dorne sua fama como o reino mais quente de Westeros. Todavia, aquilo ainda assim não incomodava o herdeiro de Lançassolar, pois aqueles que nasciam naquelas terras estavam acostumados a queimar sob o imponente sol do deserto.

Dessa forma, ele continuava a dormir.

O peito, exposto pela fina camisa de cetim que usava, subia e descia num ritmo preguiçoso e vulgar. Sua mente afiada ainda estava inebriada pelo vinho tinto dornês que havia bebido mais do que devia, enquanto sonhos de uma noite de prazer tomavam conta de sua imaginação desacordada. O príncipe de Dorne poderia passar a eternidade daquela forma, perdido em sonhos e luxúrias de uma noite sem consequências para sua vida.

Entretanto, uma mão inconsequente pensava o contrário.

Ardyn levou empurrões bruscos que o tiraram de seu estado de inércia, abrindo levemente o par de olhos cor de amêndoa. Os cílios pesados e escuros lutando para não se fecharem novamente, enquanto sua mente agora desperta tentava assimilar o que acontecia ao seu redor. Ele suspirou pesadamente, tomando noção da dor de cabeça que já sentia martelando seus sentidos. A boca agora seca após tanto vinho ansiava por água e sua barriga roncava por algo sólido. E todos aqueles problemas recém descobertos não eram piores do que a mulher que se encontrava em sua frente.

Daessa Dalt era tudo, menos receptiva no olhar que direcionava ao seu príncipe.

Tinha os lábios finos e retos colados um ao outro, seu nariz aquilino rebitado para cima em desaprovação e seus olhos negros como piche o julgavam como uma criança de colo que havia derramado seu mingau sobre a mesa. Sua marcante verruga que encontrava-se acima de seu lábio superior se repuxou quando ela abriu a boca para ralhar com ele.

— Você está sendo esperado em Lançassolar, sua avó, a Princesa, o chama. — Ela disse com um tom imperativo, dali não havia chance de argumentação. Quem olhasse aquele cena de longe acharia cômico como a mulher baixa e esguia dava ordens tão facilmente ao herdeiro daquele reino. Entretanto, aquela não era qualquer pessoa, enquanto a Princesa de Dorne governara, Daessa Dalt criara os herdeiros Martell, tanto Ardyn como Aryelle. — E já está atrasado.

Ela partiu com isso, levantando poeira com seus passos rápidos e ágeis.

— Como me achou? — Sua voz sonolenta saiu seguida de um bocejo demorado.

Daessa não virou para olhá-lo, mas ele conseguiu ouvi-lá muito bem enquanto saia pela porta do quarto.

— Ora, todos esses anos e acha que não sei onde achá-lo, é só procurar pelo lugar mais promíscuo da Cidade Sombria. — A acidez era visível mesmo à distância e isso tirou um meio riso de Ardyn, que se deitou novamente com força, causando um movimento na cama que também fez o seu acompanhante despertar subitamente.

Edwyn Yronwood piscou o belo par de olhos azuis que possuía.

Eram lindos, como safiras recém lapidadas. Chamavam a atenção de qualquer um, especialmente de Ardyn, há anos atrás quando o viu pela primeira vez. O príncipe se viu obrigado a roubar um beijo do rapaz, que sorriu entre os lábios acariciados por sua boca rápida. Nunca se enjoaria daqueles lábios rosados, eram sua maior fonte de tentação e desejo, os únicos que conseguiam saciá-lo. O jovem Martell apenas se soltou dele quando percebeu que não poderia postergar mais sua ida, se colocando de pé com um pulo da cama, o que não ajudou com sua dor de cabeça.

— Precisa mesmo me deixar? — O outro perguntou ainda envolto em um emaranhado de travesseiros e lençóis.

— Não tenho muita opção, se Daessa veio até aqui é porque algo de importante deve estar acontecendo. — Respondeu já fechando os botões de sua blusa frouxamente e indo atrás de sua botas que estavam cada par em um lado do quarto, não se recordava como haviam parado daquela forma e duvidava que precisasse se lembrar.

— Você não acha que… — Edwyn parou no meio da frase, repreendendo a si mesmo.

— Não. — Ardyn rebateu sério por um momento apenas, pensando em sua avó e no seu posto como herdeiro de Dorne.— Se fosse esse caso, ela teria vindo antes.

O homem na cama acenou positivamente, jogando os braços por baixo do travesseiro, deixando suas costas e seu corpo claro mais à mostra. Edwyn era um pedregoso, nascido nas Montanhas Vermelhas de Dorne, sua aparência transparecia isso, ainda mais tão ao Sul do reino, onde a maioria tinha os traços roinares ou eram marcados na pele pelo sol escaldante. Ardyn deixou um sorriso sacana transparecer, roubando mais um beijo e um riso bobo do Yronwood.

— Fique bem onde está e mais tarde eu voltarei para repetirmos o mesmo da noite passada, ou quem sabe fazermos melhor. — Disse terminando de se vestir por fim e saindo do quarto antes que se arrepende-se ainda mais de deixá-lo ali.

Desceu as escadas estreitas para um um salão separado em “cômodos” por sedas, tapetes e cortinas penduradas ao teto. Um cheiro de vinho e especiarias diversas tomava conta do lugar mesmo na manhã. Alguns poucos homens e mulheres preguiçosos ainda estavam jogados em tapetes, almofadas ou divãs, todos tão desgrenhados como ele mesmo esteve minutos atrás. Ardyn queria continuar como eles e ignorar o pedido que fora feito, mas marchou por entre os corpos entorpecidos até a porta principal a contragosto.

A vida na Cidade Sombria já havia despertado horas atrás.

O povo dornês sabia aproveitar o clima ainda ameno antes do sol nascer para levantarem suas barracas em paz e acharem um bom lugar no meio do labirinto que eram aquelas ruas no pico da manhã, próximo ao meio dia. As vozes distintas se elevavam em meio ao barulho da rua, mercadores oferecendo tâmaras, olivas, limões e laranjas, escorpiões em conserva, sedas coloridas, tintos dorneses e muito mais do que uma pessoa poderia comprar em apenas um dia. Bazares dos mais diversos dominavam as esquinas em profusão de cores, caravanas tentavam reabastecer seus estoques antes de voltar ao deserto e também lutavam com os vendedores locais para fazer as pessoas levarem o que haviam trazido de longe.

Ardyn caminhava pelo rio de pessoas que desciam naquele horário de pico as ruas e vielas.

Qualquer estrangeiro se perderia ali com facilidade, as casas se amontoavam uma sobre as outras, uma mistura de barro e palha, que aprendeu a prosperar sob as sombras de Lançassolar, se tornando o mais próximo do que eles poderiam realmente chamar de uma cidade em Dorne, embora não fosse de comparação real com qualquer uma das verdadeiras cidades do resto de Westeros. Contudo, ele não era nenhum estrangeiro, havia crescido caminhando por aquelas ruas, fosse acompanhado ou sozinho. Vestido com suas sedas nobres ou com as roupas roubadas de um cavalariço. Por conta disso seu rosto era conhecido suficientemente para que os rostos ao seu redor olhassem para ele mais de uma vez. A maioria sabia quem ele era, comerciantes ofereciam suas mercadorias para ele e o príncipe recusava com um sorriso carismático e a promessa de voltar outro dia, eles aceitavam isso de bom grado. Crianças puxavam as bordas de seu gibão e suas mães ralhavam para não atrapalharem o príncipe com um tapa em suas cabeças, ele entregou um sol dourado para um menina chorosa que saiu feliz, pronta para gastar sua pequena fortuna.

Assim ele seguiu caminhando, rumo ao Portão Triplo.

A Torre da Lança era marcante contra o céu azul e sem nuvens daquele dia, mesmo ao longe. Uma lembrança constante do lugar ao qual ele pertencia e de onde as responsabilidades lhe aguardavam. Cerrou seu maxilar involuntariamente à medida que a lança de aço dourado no topo da torre ficava cada vez mais próxima, se preocupando com o encontro que teria pela frente. Não era comum sua avó solicitar sua presença, ou mesmo ser Daessa a vir procurá-lo, aquele deveria ser um assunto importante a ser tratado.

Foi o que continuou perturbando sua mente ao mesmo tempo que chegava nos portões que permitiam a entrada na fortaleza. Os guardas com lanças a mãos e escudos pintados com o brasão dos Martell abriram os portões para ele, sendo seguidos por outros dois pares de homens que fizeram o mesmo nas duas outras passagens. Havia um motivo bem óbvio aquela entrada ter sido batizada de Portão Triplo, pois três portões se encontravam alinhados um atrás do outro para permitir que o visitante passasse sob todas as três Muralhas Sinuosas. Seus passos o levaram até o Velho Palácio.

O castelo ancestral e fortaleza de sua família.

Sede do poder da casa Martell, capital de Dorne.

Aquele lugar nunca lhe deu a sensação de casa.

Mas marchou para dentro da mesma forma.

 

 

 

t o r r e   d a   l a n ç a

Myriah Martell era uma mulher que já havia passado dos setenta dias de seu nome. Havia sido coroada Princesa de Dorne no início de uma guerra contra a Campina que havia ceifado a vida de seu pai quando não passava de uma donzela. Ninguém acreditou que ela pudesse dar conta de todo o caos que estava instaurado em Dorne naquela época, mas contra todas as expectativas ela havia prosperado como a Princesa Martell que era.

Insubmissa, imbatível e inquebrável.

Contra todas as expectativas ela havia permanecido. Mais tempo que seus irmãos e irmãs, mais tempo que seu marido, mais tempo ainda que seus filhos. Agora tudo o que lhe restava eram seus dois netos, Ardyn e Aryelle Martell. O herdeiro de Dorne e sua irmã mais nova. Os três últimos daquela família que ainda existiam. Embora Ardyn não conseguisse se lembrar com clareza da última vez que pensou neles como uma família de verdade, mesmo para os padrões não usuais de Dorne, havia algo que faltava neles.

Isso passou por sua mente entorpecida pela ressaca enquanto abria as portas do quarto da matriarca Martell.

Aquele cômodo ficava em um dos quartos no topo da Torre da Lança, as janelas abertas deixavam que a brisa do mar entrasse junto da luz do sol naquele fim de manhã. Todavia, mesmos os ventos mais fortes e a quantidade excessiva de incenso queimando não conseguiam apagar o odor de doença que tomava aquele recinto. Ardyn ignorou a vontade inapropriada de tampar o nariz.

— Está atrasado.

Ele ouviu a voz da irmã antes de realmente notar a presença dela.

Aryelle estava de costas para ele enquanto se aproximava. Conseguia ver apenas um véu vermelho adornado de dourado que escondia seu rosto e cabelo. Sentava-se ereta como uma lança sobre um banco almofadado. Ele fincou os pés ao seu lado, olhando o perfil inflexível da irmã, tão séria e fria para seus apenas dezoito dias de seu nome. Era fácil ver a semelhança física entre os dois, os mesmos cabelos encaracolados e marrons, os olhos amendoados, os narizes fortes. Porém, tudo o que tinham de semelhança física era desfeito pelas personalidades distintas. Eram como fogo e gelo, não se misturavam.

 Ela não virou para ele ainda assim, mantinha o rosto fixo a frente, enquanto uma das mãos fazia movimentos letárgicos sobre a barriga proeminente.

O príncipe ignorou o ato calculado da irmã.

Em algumas semanas o seu sobrinho ou sobrinha veria a luz do sol pela primeira vez.

Ele deveria estar radiante com aquela perspectiva, mas conseguia apenas manter uma indiferença preocupante, além de um temor como a maneira fria que sua irmã levantou o olhar para ele em busca de uma resposta a seu comentário anterior.

— Temo que não esperava receber tal convite para uma reunião Martell essa manhã. — Respondeu, um sorriso tímido brotando nos lábios. Não gostava de ceder às provocações da irmã, pois eram inapropriadas, ela não deveria agir assim e ele não deveria ser condescendente com isso, mas a relação deles sempre fora complicada.

— E eu temo que não seja apenas uma reunião Martell, mas de família. — Outra voz masculina chamou a atenção de Ardyn.

Um pouco atrás deles dois, encostado numa pilastra estava Garrett Tyrell, o marido de sua irmã.

Ou a marionete dela, como o príncipe gostava de zombar com Edwyn.

— Seria mesmo? — O Martell debochou, contendo o riso ao ver o marido rechonchudo da irmã corar perante seu tom cortante.

— Chega, vocês dois, já esperei tempo demais. — Aryelle sibilou se ajeitando em seu banco. — Garrett, acorde vovó.

— Não devemos esperar Daessa? — O príncipe perguntou olhando ao redor para checar caso não estivesse perdendo a presença de mais alguém.

— Como Garrett disse, é uma reunião de família, ela não é família.

Ele engoliu em seco, seria inútil de sua parte avançar naquele assunto.

O marido Tyrell de sua irmã avançou a passos cautelosos em direção a grande cama de dossel onde Myriah repousava. Mantinha um medo visível com cada aproximação da idosa, embora ela não pudesse apresentar perigo algum a qualquer pessoa, pelo menos não fisicamente. Garrett se aproximou da cama larga, teria que subir no colchão caso quisesse tocar na avó deles. Ardyn torceu o nariz, dessa vez não pelo odor, mas pela cena fútil.

Antes que pudesse esticar os dedos para tocar a mulher, os olhos da idosa se abriram.

Garrett claramente se assustou, afastando-se da cama e seguindo para trás de sua esposa como se fosse sua própria sombra.

— Eu estou acordada, obrigada pela preocupação, ainda não morri como especulam toda semana. — Sua língua afiada sibilou com sua voz rouca e que enchia o quarto, mesmo a distância em que se encontravam dela.

— Como está se sentindo, vovó? — Aryelle questionou em um tom mais doce do que o que usava normalmente.

— Pior do que ontem e estarei ainda mais ruim amanhã. Estou velha e doente, não há muito o que possa fazer. — Respondeu trazendo incômodo evidente a neta, que parou de alisar a barriga e ainda endireitou a postura mais do que ele achava ser possível. — Ardyn menino, traga um pouco de água para sua avó.

Ele obedeceu, enchendo seu cálice e levando até seus lábios enrugados.

Ela bebeu devagar, molhando seu queixo.

O neto limpou com um lenço, se afastando em seguida.

— Está fedendo a bebida. — Myriah não ralhou diretamente, era mais como uma mísera afirmação.

— Eu tento meu melhor. — Ele brincou com um sorriso de ponta a ponta brotando no rosto.

Sua avó suspirou profundamente, tossindo em seguida.

Aryelle virou o rosto contrariada.

— Talvez devesse tentar mudar seu conceito de melhor. — A mulher disse passando o olhar pelo seu rosto com calma, parecia estar tentando lembrar cada detalhe de suas feições e gravando em sua memória longínqua.

— Talvez. — Ele concordou com um aceno deixando o cálice sobre a mesa.

— Qual o motivo de nos trazer aqui, vovó? — Aryelle perguntou com impaciência.

Myriah lançou um olhar cansado para ela.

Ardyn não se lembrava da última vez que viu sua avó sem aquele olhar no rosto.

— Porque, para alegria dos que tanto especulam, acho que finalmente estou morrendo.

Ardyn cerrou o cenho, olhando preocupado para a avó.

Era a primeira vez que a via dizendo aquilo.

Que a via aparentemente desistindo.

Um som parecido com uma risada cortada saiu pela garganta de sua irmã.

— Vovó, me perdoe, mas você está morrendo há anos. — A impaciência de Aryelle parecia mais curta que o normal naquele dia. — Todos especulam, porque você está velha, as pessoas comentam o que querem ouvir. E a maioria das pessoas não sabem o que querem realmente, elas não entendem sobre a morte e o que ela implicará quando você nos deixar.

O Martell tinha que admitir que era uma verdade. Quando era criança ele se lembrava de ver sua avó sempre em uma cadeira especial que possuía rodas, já nos anos recentes ela não saia mais de sua cama sem a ajuda de pessoas fortes para sustentarem seu peso, pois suas pernas cederiam sobre si mesmas. Todos que viviam em Lançassolar e até mesmo os lordes distantes todo ano diziam que aquele era o ano que perderiam sua Princesa, o ano em que Ardyn acenderia, para a felicidade ou desgosto de muitos.

Porém, aquela realidade nunca parecera tão próxima como agora.

Saindo dos lábios de sua própria avó.

Ele conseguia notar o cansaço em seu falar, como ela às vezes mantinha os olhos fechados com um semblante de dor.

— Minha menina, não ache que você conhece a morte melhor do que eu. — Sua voz saiu pesada no meio de seu tom rouco. — Eu vi ela tomar toda minha família, amigos e meu povo. Vi reis nascerem e morrerem, enterrei meu pai e meus próprios filhos.

Aryelle apenas piscou e Ardyn virou o rosto com a menção de seus pais.

— Todos esses anos, eu me culpo por não ter feito mais por vocês dois quando seus pais morreram. — Myriah olhou para ele primeiro. — Você tinha apenas oito dias de seu nome, Ardyn. — Depois seu olhar seguiu para sua irmã antes de continuar com sua voz pesarosa. — E você tinha apenas acabado de nascer, minha menina.

— Vovó, não vejo o porquê de voltar ao passado, o que passou deve ser deixado para trás.

— Porque o passado é importante, sem aprender com nossos erros não podemos seguir em frente. — A matriarca continuou respirando com dificuldade. — Eu deveria ter feito mais do que deixar vocês dois sob os cuidados de Daessa, deveria ter sido uma avó de verdade. Mas, eu também havia perdido meu filho e a mãe de vocês que era como uma filha, eu estava de luto e com um reino para liderar.

Aryelle piscou contrariada.

Ardyn voltou a cerrar o maxilar.

— Nós não a culpamos por nada do que aconteceu, vovó. — Ele garantiu, mas um gosto de meia verdade amargava suas palavras.

— Isso não significa que eu não possa culpar a mim mesma.

— Vovó, por favor, onde quer chegar com tudo isso? — Aryelle finalmente se levantou, se aproximando de sua avó e sentando ao seu lado na cama.

Isso o lembrou de quando eles faziam isso quando eram crianças, o único momento quando tinham atenção de Myriah. Quando ela lhes contava história sobre Nymeria e Mors Martell, sobre os dez mil navios e as batalhas épicas dos dorneses nas Montanhas Vermelhas contra os invasores da Campina e das Terras da Tempestade. Ardyn se aproximou também, assumindo o lugar à direita.

Estando mais perto de sua avó ele conseguia ver melhor como estava mais abatida.

O cabelo branco mais ralo do que ele se lembrava, os olhos amarelados e sua respiração cada vez mais pesada. A doença a estava consumindo, ou ela finalmente havia desistido de lutar.  Um sentimento de angústia o abateu. Se Aryelle sentia o mesmo, ele não conseguia decifrar, seu rosto estava focado em sua avó e suas mãos firmes sobre as da matriarca.

— Porque eu temo por vocês dois. — Ela disse virando o de um para o outro. — Eu escuto coisas preocupantes, tanto aqui mesmo em nosso lar, como por toda Dorne. Ainda tenho ouvidos por todo o meu reino e nada do que escuto me agrada. Pessoas falando coisas horríveis, e pior ainda, planejando coisas terríveis. Eu queria saber mais, porém não tenho mais a influência que um dia tive, o meu povo cresceu separado e irritadiço durante o meu reinado, eu…

Ela parou para tossir, seu corpo tremendo com esforço.

Pela primeira vez os olhares de ambos os irmãos se cruzaram fixamente, Ardyn achou ver culpa ali, mas não conseguiu decifrar realmente o que estava ali antes dela virar o rosto, escondendo suas emoções por detrás de seu véu.

Myriah limpou a garganta com dificuldade.

— Os tronos na Torre do Sol precisam estar assegurados, precisam de uma liderança forte.

Aryelle apertou ainda mais a mão de sua avó.

— Nós somos os últimos de nossa casa. — A voz dela falhou um pouco e seus olhos pesaram, piscando algumas vezes. — Precisamos seguir nosso lema. Insubmissos, não curvados…

Ela não completou a última frase, adormeceu com a respiração pesada.

— Não quebrados. — Aryelle completou, deixando a mão da avó repousar e se afastando.

Ardyn fez o mesmo.

Ele abriu a boca para dizer algo, mas sua irmã o calou.

— Vamos deixar ela descansar, ela obviamente está muito cansada.

— Nós dois talvez devêssemos conversar, sobre o que ela disse e…

— Não há necessidade. — Aryelle começou a se afastar, sendo seguida pelo esposo. — Acho que o que nossa avó quis dizer foi bem claro, sobre o que o futuro de nossa casa precisa, do que Dorne necessita para se manter inteira.

Ele a observou enquanto a irmã caminhava para a porta.

— Você deveria voltar ao seu amante, ele deve estar aguardando debaixo das cobertas.

Ardyn não tentou seguir atrás dela.

Fazia anos desde a última vez que haviam tido uma conversa real.

Que haviam se tratado como irmãos.

Sabia que não podia colocar toda a culpa na irmã, ele havia fugido da responsabilidade depois da morte dos pais.

Como irmão, como príncipe.

Deixou a avó em sua cama, pensando no quanto precisaria beber para esquecer aquele sentimento ruim que crescia em seu peito. Talvez devesse procurar Daessa e conversar com ela seriamente sobre o que sua avó havia dito. Ou talvez realmente devesse voltar para Edwyn o quanto antes, quem sabe aceitar o pedido dele de irem para Paloferro juntos.

Como um covarde que ele mesmo acreditava ser, a segunda opção parecia muito mais tentadora.

 

 

 

t o r r e   d a   l a n ç a

Aryelle retirou o véu de sua cabeça.

O pano leve e bordado por mãos hábeis revelaram longos cabelos castanhos encaracolados, untados com os mais nobres óleos de Dorne. Suas mãos enfeitadas de pulseiras douradas tilintavam ruidosamente quando ela colocou véu sobre a mesa de madeira escura. Cartas pela metade se encontravam jogadas, esperando ela voltar a terminá-las. Perfumes de Essos e acessórios distintos estavam encostados em outro canto.

Ela ignorou tudo aquilo, olhando para frente.

O espelho refletia uma mulher jovem, era isso que a maioria das pessoas via nela. Apenas uma mulher jovem demais, decidida demais, direta demais. Pouco se importavam com o que sua idade realmente representava, ou o papel que ela tinha de cumprir desde muito jovem. Respirou profundamente, ignorando a dor que a cutucava na lombar após ficar tanto tempo sentada e a dor que atormentava seu coração após sair dos aposentos de sua avó. Seu filho também se remexia em sua barriga, inquieto como ela se encontrava. Seu menino, ela sabia que seria um menino.

Ela queria que ele parasse quieto por apenas alguns minutos.

Queria que seu marido se calasse por apenas alguns minutos.

— Eu não gosto daquela mulher. — Ele sussurrou perto dela, como se pudesse ter espiões escondidos sob o chão ou pendurados ao teto. O suor escorrendo de suas têmporas e encharcando suas axilas fedorentas, não acostumadas ao calor de Dorne. Nada de Garrett havia se adaptado àquele reino. — O jeito que ela falou, parecia que sabia de tudo.

Aryelle Martell olhou para o reflexo de seu esposo Tyrell tentando esconder sua repulsa.

— O que quer dizer com tudo? — Repreendeu prontamente, levantando uma sobrancelha inquisitiva. — Não fizemos absolutamente nada, não estamos envolvidos com nenhum sussurro que ela possa ter ouvido, ninguém sabe de coisa alguma Garrett.

— Mas, aquela mulher, ela…

Ele se calou quando a esposa se virou rapidamente para ele.

Havia algo de severo na presença de Aryelle que sempre fazia com que ele recuasse prontamente.

Ela se aproveitava de seu aparente medo.

— Aquela mulher é minha avó, Princesa tanto minha como sua, desde o momento que colocou seu manto florido em minhas costas. — Relembrou com o sabor amargo que o dia de seu casamento trazia a sua língua. — A trate com todo o devido respeito que você tanto se vangloria ter recebido em sua tão amada Campina.

Garrett se retraiu como um camundongo picado pela serpente.

Sua face rosada ficou vermelha como sempre ficava quando ele se irritava. E aquilo acontecia mais vezes do que ela tinha paciência para lidar. Aryelle se levantou devagar, aparentando levar mais peso sobre suas costas do que seus poucos dias de seu nome deveriam fazê-la carregar. Se aproximou do marido a contragosto, levando suas mãos pequenas a seu rosto redondo.

— Você apenas está nervoso. — Disse a verdade, seu tom de falsa ternura sempre conseguia acalmá-lo, como uma mãe lidando com mais uma birra de seu filho pequeno. — Eu não deveria ter colocado tanta responsabilidade em suas mãos.

Porém, como ela mesma havia dito, Garrett não havia feito absolutamente nada.

Se alguém realmente deveria se preocupar, deveria ser ela.

Fora Aryelle quem havia escrito as missivas em secreto, quem havia se encontrado com Lordes e Ladys nos Jardins de Água em noites de sussurros. Fora ela e apenas ela a pessoa responsável por aumentar os rumores que Ardyn talvez não fosse a melhor pessoa para governar Dorne após a morte de Myriah Martell. Todas aquelas coisas tecidas com cuidado e habilidade por ela. Ainda assim, naquele momento era Garrett quem tinha preocupações e chiliques, quem precisava de apoio.

Era uma crueldade cômica.

— Os Sete nos protejam do que está por vir. — Disse ele segurando sua grande estrela de sete pontas que sempre levava ao peito. — Eu te avisei que essa não seria uma boa ideia, derramar sangue da família é um pecado imperdoável e que deve ser pago em um dos sete infernos.

Aryelle se afastou finalmente, seguindo até a grande janela de seu quarto.

Vivia alguns andares abaixo do quarto de sua avó, na Torre da Lança.

Dali ela conseguia ter uma visão privilegiada da Cidade Sombria, da costa que se estendia no horizonte e do pátio do Palácio Velho. Um cavalariço preparava dois corcéis de areia, os famosos cavalos dorneses, capazes de correr por dois dias e uma noite sem se cansarem. Soldados guardavam os portões, na mesma posição solene de alerta.

— Você me avisou que não queria muitas coisas Garrett. — Ela disse sem virar para o homem, suas palavras fazendo com que os medos que ela possuía se reviraram em seu estômago junto de seu filho agitado. Seu irmão apareceu em sua mente, estirado sobre uma poça de sangue escuro. Balançou a cabeça afastando tais temores. — E não haverá necessidade de derramar sangue algum, Ardyn fará o que é certo, para ele e para Dorne, tudo acontecerá da forma que foi planejado. 

Precisava acontecer.

O Tyrell se aproximou dela novamente, colocando uma mão em sua barriga e outra em seu ombro.

Ela lutou contra a vontade de tirar ambas aos tapas.

— O que for melhor para nosso filho e o futuro dele, o Pai dará força a ele e a Velha sabedoria para nós dois criá-lo. — Suas palavras saíram com um ar sonhador e afetuoso, enquanto Aryelle apenas o queria longe de si o mais rápido possível. — Além de que temos o apoio de toda a Casa Tyrell, eles virão em nosso auxílio quando precisarmos, como meu pai prometeu.

Aryelle não colocaria suas esperanças em um reino estrangeiro que até hoje apenas havia oferecido sangue a Dorne, mas concordou para que ele fosse embora e parasse de verbalizar todos os pensamentos que passavam por sua mente simples.

— Sim, agora vá procurar a aia, preciso de um banho.

O marido obedeceu e isso a garantiria ao menos alguns minutos de sua tão preciosa paz.

O silêncio que seguiu a fez respirar com alívio, voltando a atenção para o pátio mais uma vez.

Os dois cavalos que ela viu mais cedo estavam finalmente prontos, ela observou enquanto Ardyn subia em um deles e tomava as rédeas de outro. Ele iria fugir, como sempre fazia. Fugiu quando os pais deles morreram, fugiu das responsabilidades como herdeiro, fugiu de seu papel como irmão dela. Disso a Princesa sempre carregou mais ressentimento do que gostaria de admitir. Sua mente ainda vagava contra sua vontade para sua infância nos Jardins de Água, quando nem ela e nem Ardyn sabiam de seu papel no mundo.

Lembrava claramente de ter um irmão apenas em nome e sangue, mas que nunca a tratou como família.

Seu irmão, que deveria ter estado presente para ela quando os pais morreram e eles não tinham ninguém além de uma avó que não possuía tempo para eles. Seu irmão que sempre preferiu a companhia de escudeiros e meninos do verão do que ela. Seu irmão que deveria ter intercedido por ela quando foi obrigada a se casar com um estrangeiro que abominava. Seu irmão que deveria ser o futuro de Dorne, mas encarava todas as responsabilidades de seu título com desdém.

Irmão, aquela era uma palavra que ela não associava a Ardyn há muito tempo.

Esperava que ele soubesse disso quando o momento chegasse.

— Para onde ele está indo? — A volta de Garrett a tirou de seus pensamentos.

— Embora, provavelmente com o rapaz Yronwood. — Respondeu sem se virar para o marido, focada em Ardyn passando pelo primeiro portão, rumo a cidade que tanto apreciava.

— É uma boa ideia deixá-lo partir, depois de tudo o que aconteceu hoje?

— Eu mesma não teria como impedi-lo.

— Mas…

Aryelle se colocou de pé novamente, seus momentos de paz eram sempre passageiros e curtos.

— Ele está indo exatamente para onde deve ir, para longe de Lançassolar, para longe do trono. — Ela explicou retirando suas pulseiras e jogando sobre a mesa, a aia já deveria estar vindo. Aryelle apenas precisava ficar debaixo d’água para poder pensar, ela tinha muito o que pensar. — E você ouviu vovó, ela está morrendo e quando ela se for, eu estarei aqui.

Ela havia entendido o que Myriah quisera passar naquela manhã.

Os tronos na Torre do Sol precisam estar assegurados, precisam de uma liderança forte.

As palavras voltaram como sussurros em seus ouvidos.

Ela guardaria aquelas palavras em sua mente e seu coração, as usaria como colunas para seus objetivos.

Aryelle Martell asseguraria seu lugar.

Ardyn havia nascido para festejar e brincar, ela havia nascido para governar. E era o que ela faria, o que já estava fazendo há meses. O Reino de Dorne poderia não ser dela por direito, mas seria conquistado nem que fosse pelo sangue.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado desse começo!
Link da ficha: https://docs.google.com/document/d/1bKqKKQwRvMFFSqEFls0eIslB4RKeRVN3-abn_tGGSIk/edit?usp=sharing
Qualquer dúvida não hesitem em me chamar por qualquer um dos meios de comunicação!