Caçadores urbanos e o mistério do filho proibido escrita por Tynn, WSU


Capítulo 1
Prólogo – Diário de um caçador




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/810037/chapter/1

— Fala, galera! Aqui é Carlito e estou iniciando uma nova série no canal chamada Diário de um caçador!

— Carlos, que merda é essa? — ouve-se uma voz aguda e irritada ao fundo.

— Estou gravando um vídeo... — Carlos responde desconfiado.

— Você é estúpido ou se faz? A porcaria da câmera está com a tampa ainda.

— Oxê, verdade...

Escuta-se um clique e vê-se o nariz grande e saliente de Carlos em zoom máximo. A imagem entra em desfoque, diminuindo o zoom até enquadrar um garoto preto, de cabelos encaracolados e sorriso contagiante. Ele acena.

— Foi mal, pessoal! Como eu estava dizendo, eu sou Carlito, o estudante de engenharia mecânica mais descolado de Recife. E aquela dali é Vanessa. — O foco desliza para uma mulher sentada na sua poltrona de veludo em um quarto luxuoso. Ela usa uma camisola violeta com decote em V. Os cabelos eram longos e ruivos, sendo penteados rigorosamente. Ela estava no meio do seu ritual matinal de cuidados com a beleza.

— É o quê? — Vanessa grita assim que se vira e dá de cara com a lente da câmera. Apesar da pele clara, o rosto da moça estava preto como o carvão devido à máscara de peeling que usava para retirar cravos. — Eu vou te matar!

A mulher puxa uma das pantufas dos pés e arremessa em direção a lente. A figura do chinelo cresce na tela até tudo ficar embaçado. Depois de um momento de instabilidade na câmera, volta-se a observar a mulher sentada na cadeira, retirando o segundo chinelo.

— Calma, queridinha. Eu só quero apresentar os membros da equipe. E essa câmera aqui é resistente à beça.

— Você enlouqueceu de vez? Minha imagem não pode ser exposta na internet nem nosso trabalho como caçadores, seu energúmeno irresponsável!

Antes que Vanessa pudesse arremessar a segunda pantufa, a imagem muda freneticamente para um corredor de paredes verdes. Ouve-se ainda o barulho da pantufa batendo na parede, errando o alvo. A imagem focaliza o rosto sorridente e suado de Carlos.

— Sabe, sempre precisamos de alguém chato para comandar a equipe, e esse alguém é Vanessa. Ela é a mais velha do grupo e basicamente bancou todo o nosso Quartel General. — Enquanto fala, o rapaz anda pelo corredor da casa, gesticulando para a câmera. — Agora vou levar vocês para uma das minhas companheiras favoritas. O nome dela é Eduarda, ou Duda para os mais íntimos. É a super-nerd, entende tudo de computação. Uma garota fofíssima, mas também muito tímida. Aqui está o quarto dela.

Ele para na frente de uma porta de madeira. A mão de Carlos aparece na câmera mas, antes de dar a primeira batida na porta, para inesperadamente. Vemos o rosto do rapaz se aproximar do quarto, encostando a orelha na porta. Ele faz um sinal convidando o telespectador para acompanhá-lo e abre apenas uma brechinha. Vê-se uma garota de cabelos castanhos e ondulados parada em frente ao espelho, o corpo aprumado e os olhos semi-cerrados, ela falava para seu reflexo.

— Eu não sou uma pessoa fraca, sou forte! Decidida! Empoderada!

A porta abre-se de supetão e Eduarda faz uma careta apavorada. Ela encara a câmera, o seu rosto ficando vermelho como uma pimenta, e em seguida corre para se esconder na cama, cobrindo-se até a cabeça com um lençol de Star Wars.

— O que você está fazendo, Carlos? — Ela pergunta de dentro do seu esconderijo, a voz trêmula e envergonhada.

— Eu vim ver seu momento de empoderamento feminino. Gostei!

— Sai daqui!

— Mas você é a nerd do grupo, se apresente. — O lençol de Star Wars, onde a garota estava oculta, para de tremer.

— Se apresentar para quem?

— Os inscritos do meu canal.

Um braço sai de dentro do lençol e tateia uma escrivaninha do lado da cama, onde um livro com a biografia de Steve Jobs repousa, e encontra um par de óculos redondos. O braço volta para dentro do lençol. Em seguida, aparece o cocuruto da garota, depois um par de óculos sob os olhos amendoados.

— E esse canal é sobre...

— É sobre nossa vida de caçadores.

Faz-se um instante de silêncio, tensão no ar.

— Carlos, você sabe que grande parte da população acredita que demônios, vampiros e seres incorpóreos são apenas fantasia, não é? E que é nossa missão como caçadores defender não só a integridade física da sociedade, mas também o psicológico de todos os cidadãos de bem. — A voz da Eduarda aumenta gradativamente. — Ao fazer um canal no youtube, você está colocando toda a sociedade em risco. E eu não estou falando de Recife, ou de Pernambuco, ou do Brasil. Eu estou falando do mundo inteiro!

— Tá, tá, tá...

Enquanto Eduarda discursava, a sua imagem ia ficando cada vez menor. Carlos dava passos para trás intimidado pela atitude da nerd, que agora se sentava e puxava o notebook. Não existia nada de mais apavorante em Eduarda do que ela irritada e munida com a sua arma mais letal: a tecnologia.

— Eu vou achar o teu canal, Carlos. E irei excluí-lo nem que para isso eu precise invadir o computador do CEO da Google.

— Um bom dia para você também, Duda! — O rosto de Carlos aparece ainda mais suado. Ele enxuga a testa com o dorso do braço direito enquanto anda pelo corredor novamente. — Quando a nossa nerd fica invocada, é hora de cair fora! Mas não importa, eu vou continuar com as filmagens. Vou apresentar a vocês os nossos lutadores, venham comigo!

Segue-se por um corredor estreito, onde mais portas trancadas são mostradas. A câmera caminha até o final e acompanha os degraus ao primeiro andar da casa, onde a cabeça de Carlos para na frente de uma porta de vidro fumê. Os dedos do rapaz digitam algo em um teclado numérico e a porta se abre para a lateral, automática. O cenário muda completamente: vê-se uma réplica de academia, das mais sofisticadas, com equipamentos para treino de perna, peito, bíceps e tríceps; alteres de variados pesos, espelhos nas paredes e um tatame de borracha. Ao fundo, duas pessoas treinam.

A primeira é uma mulher com seus 20 e poucos anos. Ela estava de costas, usando uma calça legging cinza, uma camiseta regata amarela e tênis. Seus movimentos são rápidos ao desferir chutes em um saco de areia. Dando gritos de incentivo, um homem musculo ajuda o treinamento da moça como um personal trainer, segurando o saco de areia. Ele é alto, pele parda, sobrancelhas grossas e cabelo cortado em estilo militar.

— Aqueles ali são Thaís e Raul. Thaís é uma lutadora extremamente habilidosa no combate corpo-a-corpo.

— É sim! — Ela responde sem nem olhar para trás.

— Aquele grandão lá é o Raul, ele já foi um militar do exército, mas agora tá aqui com a gente, dando porrada em tudo que é monstro.

— E metendo bala também — o homem completa.

— Essa parte eu queria omitir — Carlos fala contrariado. — Ei, galera, digam “oi” para a câmera!

Raul imediatamente para de segurar o saco de pancadas e sorri para a câmera, flexionando os braços na intenção de deixar seus bíceps mais salientes, soltando um “oi” forçadamente grave. Sua cara é subitamente atingida pelo saco de areia depois de um chute de Thaís no objeto.

— Foi mal! — Ela se desculpa ao ver o homem com a mão no nariz. — Você também não pode ver uma câmera que já quer se exibir.

— As gatinhas... — A voz sai abafada. Ao se certificar que o nariz não quebrara, ele tira a mão do rosto e consegue falar normalmente. — As gatinhas piram no soldado aqui.

Thaís revira os olhos e sai do enquadramento da lente, enquanto Raul pratica alguns movimentos dignos de um fisiculturista. Logo a cara bronzeada de Thaís ocupa todo o espaço da câmera. O olho direito dela se aproxima ao máximo, dando para ver cada detalhe de sua íris castanha e sua pupila. A garota pisca várias vezes.

— Qual é a da câmera? Ela é alguma engenhoca nova?

— Não, é uma câmera Canon EOS 5D. Comprei no mercado livre.

Agora os dentes de Thaís ocupam toda a tela. Ela faz umas caretas, abre a boca e mostra a língua pegajosa e cheia de saliva para a lente.

— Pra que tu tá fazendo essa filmagem, moleque? — A voz de Raul sai ao fundo. Thaís finalmente se afasta, deixando o enquadramento entre ela e o militar.

— É para um canal no youtube. Estou querendo falar sobre nossa vida de caçadores.

— Vida de caçador? — O tom de voz de Thaís sobe uma oitava. — Você está querendo nos expor para o mundo? É isto?

Carlos se afasta, observando o peito de Raul inflar como um urso. O homem puxa dois alteres em tom ameaçador. A fisionomia de Thaís também não é a das melhores. A moça encara a câmera em um misto de raiva e indignação.

De repente, tudo fica borrado. Escutam-se alteres sendo arremessados pela academia particular. A respiração de Carlos abafa os xingamentos cheios de Raul e as advertências de Thaís. As mãos de Carlos agem rapidamente no teclado numérico assim que ele chega no corredor; fechando a porta. Os dois lutadores batem no vidro fumê trancado que os separa da câmera.

— Eu que projetei essas travas! — Carlos berra vitorioso. — Vocês não têm como saírem daí sem que alguém os tire com a senha que eu troquei. E nem pense em arrombar a porta, Raul, ela é bem resistente.

As imagens seguem pelo corredor, sendo o silêncio cortado apenas pelo barulho das tentativas frustradas de Raul de arrombar a porta. Ao chegar no final do corredor, a câmera gira e o rosto de Carlos preencher a tela.

— Vocês estão vendo como eu sou incompreendido nesse grupo, não é? Eu só queria mostrar a vocês que existem pessoas cuidando para que tudo dê certo nas suas vidas, assim como o Aracnídeo ou o Temerário fazem contra o crime. A diferença é que eu e os caçadores lutamos contra criaturas sobrenaturais. Afinal, por que esconder que elas existem? Vocês precisam se proteger do que está ao redor. — Carlos respira fundo. Em seguida, fala em tom mais descontraído. — Bom, vocês já conheceram Vanessa, a ricaça metida do grupo, a nerd fofinha Duda, o brutamontes Raul e a lutadora de artes maciais Thaís. Ficou faltando alguém? Ah, sim, já ia me esquecer do Natanael! Que besta eu sou. Vem cá, é um dos caras mais legal do grupo. Sério mesmo. Apesar de ser um pouco fechado às vezes.

Carlos caminha até uma porta fechada. Ele faz sinal de silêncio com as mãos e abre devagarinho. A tela enquadra um rapaz sentado em volta de 6 velas pretas que flutuam suavemente. O rapaz tem as pernas cruzadas, como numa meditação, e encontra-se dentro de um círculo desenhado no chão com vários símbolos, as velas estavam na ponta dessas marcações. Natanael abre os olhos de súbito ao notar a presença de um observador, seu par de olhos estavam totalmente negros. Ao perceber quem era, sua feição suaviza, as velas caem no chão desajeitadamente e seus olhos voltam a exibir a brancura ao redor da íris agora azul.

— Carlos, é você.

— Foi mal interromper sua meditação sombria aí...

— Bem, eu já estava terminando. — O rapaz, com cabelos negros e franjas, pega as velas caídas e assopra aquelas que ainda se mantinham acessas. — O submundo está agitado esses dias, algo grande vai acontecer em breve.

— Sempre tem coisa ruim acontecendo — Carlos comenta.

— E você quer gravar algum tipo de documentário?

— Ah, sim...

Antes de Carlos continuar, entretanto, ouve-se um grande estardalhaço no corredor. A câmera se move freneticamente, de um canto ao outro, e finalmente resolve sair do quarto. No final do corredor, via-se Vanessa bufando, Raul e Thaís correndo como loucos e Eduarda andando ameaçadoramente com um tablet. Natanael aparece na porta, confuso.

— Carlos, por que eles estão apostando uma corrida para te matar?

— Porque ele quer nos expor para o mundo! — Vanessa grita, enfurecida com sua máscara de peeling preta na cara.

A câmera gira para uma escadaria e Carlos sobe os degraus rapidamente até uma grande área aberta reservada para festas, na cobertura da casa. O foco para em uma beirada, observando o chão lá embaixo. O Quartel General ficava em uma área pouco movimentada, com um vasto jardim ao redor, mas logo em seguida via-se uma avenida. Era uma zona residencial de classe média alta. A câmera vira para encarar a manada enfurecida na cobertura.

— Vocês não estão entendendo! Eu acho injusto as pessoas viverem na ignorância, precisamos mostrar ao mundo o que está acontecendo! — Carlos se defende.

— Eu vou mostrar é o meu punho na sua fuça! – Raul vocifera em resposta. A câmera balança e volta a se aprumar.

— Não dê um passo para trás ou você cai! — Natanael avisa, ao ver que o estudante se desequilibrara por um instante. — Alguém pode me explicar o que está acontecendo?

— Carlos teve a genial ideia de fazer um canal no youtube dizendo a todos que nós somos caçadores! — Thaís responde.

— Eu já achei os 6 e-mails criados por ele desde 2005 e suas respectivas senhas. – Eduarda comenta teclando no tablet. — O e-mail com maior atividade nesses últimos dias é de sua conta do gmail, mas ainda não tem nenhuma postagem no canal do youtube.

— Pessoal, nós não podemos proteger todo mundo! Por mais que possamos tentar, é impossível. Além disso, têm pessoas que estão sendo tratadas por psiquiatras porque acreditam que os fantasmas quem veem são alucinações. Por favor, me deixem ajuda-las!

— Sinto muito, Carlos, você já sabe que precisamos manter nossa equipe em segredo. Aposto como deve ser bom ter a glória que alguns corrompidos obtiveram ao salvar o Brasil de seres maléficos. Mas nós não somos exatamente os mocinhos da história e nunca seremos tratados como tal. Está na hora de crescer, garoto — Vanessa anuncia encerrando o assunto. — Thaís, fique à vontade para destruir aquela câmera. Ele comprou com o meu dinheiro.

A lutadora age rapidamente. Ela sai detrás da equipe com um gingado próprio de quem decide iniciar uma luta e seu tênis preenche a tela por completo, fazendo tudo se transformar em um grande borrão de cores. Vê-se o azul do céu misturado com o verde da vegetação embaixo e cinza das paredes movendo-se incansavelmente, girando, girando, girando. Os borrões ficam cada vez mais desfocados até tudo sumir com um estrondo e um chuviscar cinza dominar a tela.

...

Barulho de carro. Buzinas. Passos. Chiado.

...

— Pode continuar falando, eu ainda estou na linha. Minha atenção vacilou um pouco porque acabei de achar algo curioso no chão, acredito que a lente tenha quebrado, mas ainda está gravando (...) Sim, é uma câmera digital (...) Não, não sei se funciona (...) Ele ainda trabalha em uma empresa de conserto de eletrônicos? Ótimo! (...) Pode avisar sim, irei o mais breve possível para lá (...) Lógico que tentarei resgatar o que estiver neste cartão de memória (...) É, pode-se considerar que o detetive Joseph Almeida está de volta (...) Coincidências, meu amigo, elas não existem (...) Até breve!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Caçadores urbanos e o mistério do filho proibido" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.