A Outra Face escrita por Taigo Leão


Capítulo 5
Capítulo 5




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Desde a transformação para o novo “eu”, nunca mais vi o rosto de ninguém conhecido. Embora me lembre claramente do rosto de cada um deles, me pergunto se algum deles seria capaz de ver através deste rosto que possuo: ver através de mim.

Talvez a resposta para isso seja um simples “não”, e talvez pensar dessa forma seja o mais coerente a se fazer. Mesmo assim não consigo evitar.

No dia que seguiu após o evento com a síndica, a encontrei pelo condomínio. Ela se sentiu tão envergonhada que mudou o caminho, indo para outra direção. Talvez seja melhor assim: ela no canto dela, eu no meu. Assim evitamos maiores complicações, pois, como já relatei antes, posso ceder facilmente a seus encantos, e assim talvez não responda por mim.

Descobri que ela não possui um marido de verdade. Se já o teve outrora – muito possivelmente em sua mente -, ele não está mais aqui. Não sei que fim levou, mas esse marido simplesmente não existe. Não sei se ela já agiu dessa maneira com outros homens que moram por aqui, embora às vezes me pergunto se realmente moram outras pessoas por aqui, pois é muito difícil ver alguém, além da própria síndica. Dessa forma, até mesmo andar pelo condomínio para qualquer coisa simples e indiscutível como levar o lixo se tornou uma tarefa estafante, pois agora temo qualquer tipo de contato com ela. Também estou agindo minuciosamente em cada centímetro de coisas minhas que há nessa casa. Antes de sair, me certifico que todas as gavetas e armários estão fechados. Me certifico de cada canto e cada objeto, e no dia seguinte certifico novamente, pois temo que ela entre aqui e faça alguma coisa. Talvez eu esteja exagerando, mas meu novo “eu” pensa que pensar deste modo é extremamente conveniente, dada a situação.

Terminei de ler “A Metamorfose” e me senti frustrado. Assim como em minha situação, a história não explica como ocorreu com o rapaz do livro. A mudança apenas ocorreu, e segue dali em diante. Eu gostaria de saber o real motivo, talvez pudesse ao menos fantasiar essa como a origem de meu próprio caso também.

Continuo fazendo rondas em minha antiga casa, porém, nunca mais vi minha irmã. Eu poderia dizer que ela tenha se mudado, mas às vezes vejo janelas abertas, embora não tenha visto ela em momento algum. Nos bares, não encontrei alguém como eu, tão pouco uma resposta para minha condição. Mas não tenho outro lugar para onde ir, eu sou sozinho. Essa é uma cidade muito grande para encontrar alguém que possa me entender. Apenas pensar nisso já é cansativo o suficiente.

Até mesmo cessei parcialmente a busca por um sonho, para viver um pouco mais a vida deste novo “eu”. Estou mais a par de sua vida. De seus pensamentos. Ideias. Embora o doutor diga que essa é a minha vida, quanto mais vejo como “eu” penso e vivo, vejo que este definitivamente não sou eu: é um outro alguém vivendo dentro de mim. Estou aprendendo a viver com ele, até que eu recupere meu antigo “eu”, que está aqui dentro, em algum lugar. Espero que ele não desista de voltar. Espero que continue aguardando.

Depois de me tornar essa nova pessoa, comecei a dar certa atenção maior para os outros. Me sinto fascinado por eles. Na verdade, fascinado por seus rostos. São rostos tão belos. Será que algum deles também está em posse de um rosto falso, assim como eu? Essa pessoa vive de maneira sigilosa, ou até mesmo extravagante. Essa pessoa pode se sentir como um ator, vivendo uma vida que não é a sua. Imagino quão poético deve ser esse tipo de coisa, mas me sinto muito cansado para tentar algo neste nível. Como já aleguei algumas vezes, não tenho tanta imaginação assim para elaborar algo do tipo ou para viver dessa forma, embora minha condição me permita vivenciar as mais ardilosas aventuras, se ao menos soubesse como me transformei nisso... Eu poderia, por exemplo, matar alguém, e nunca ser detido. Poderia roubar, assassinar, fazer tudo de mais cruel, e depois era só trocar de rosto novamente. Eu poderia ser cada um dos que entram aqui, mas também poderia não ser ninguém. Essa é minha nova fantasia, e também o que me torna livre: se descobrisse a origem desse “poder”, então eu seria verdadeiramente livre. Comecei a pensar desta maneira.

Mas para alto tão bom, também existe algo ruim. Caso eu siga dessa forma pelo resto de minha vida – com esse novo rosto; sendo este novo “eu” -, eu nunca seria realmente visto por ninguém. As pessoas próximas a mim nunca saberiam quem eu realmente sou, então viveríamos em uma relação superficial, pois embora possam viver comigo, ver como me expresso e tudo mais, sinto que elas nunca poderiam me ver realmente. Além disso, temo que consiga viver uma vida verdadeiramente feliz assim, consiga casar, e até mesmo ter filhos, e um dia acordar e me ver com meu antigo rosto de volta. Se isso acontecer, eu, novamente, perderia tudo. E seria muito para aguentar.

Sou como um ator, mas me perdi em meu papel.

Tive um encontro com o doutor, dessa vez, fora do consultório. Acho que não quis me analisar. Dessa vez, ele quer apenas conversar comigo, como se fôssemos amigos. Acho que posso chamá-lo assim, pois é a única pessoa com que mantenho contato desde o incidente. O local escolhido foi um pequeno bar, próximo ao seu consultório. Eu não sabia que o doutor bebia e fumava, mas estou feliz em saber que compartilhamos esse gosto em comum. Aliás, fumar é um hábito que adquiri do meu novo “eu”.

— Acho engraçado lhe ver em lugares assim. Você não tem cara de que frequenta esses lugares. - Ele me disse.

— Posso dizer o mesmo de você.

— O que está achando dessa nova vida?

— Estou apenas vivendo-a, doutor. Sem ter muito tempo para pensar, pois se parar para pensar, então talvez eu tenha um colapso.

— Ainda acredita que esse “você”, não é realmente você?

— Acredito, sim. Estou vivendo a vida dele agora, já que não posso voltar para a minha enquanto não houver um tipo de solução completa para isso. E às vezes, nessa nova vida, ocorre certos conflitos de interesses entre meu novo e o antigo “eu”. Penso em agir de maneiras que não me agradariam nem um pouco. Lhe darei um exemplo, deixe-me ver... Ah! Lembre-se do caso da síndica que mencionei antes. A vontade de meu novo “eu” era deixá-la entrar em meu quarto e transar com ela, mas eu não queria isso. Consegue compreender? E você pode novamente insistir em que, discretamente, estou tentando viver uma nova vida sem nem perceber isso, como se meu subconsciente estivesse agindo, mas não acho que seja o caso. Não consigo acreditar nisso, doutor, pois se realmente fosse a minha vontade, mesmo que sutilmente de meu subconsciente, então não deveria haver tanto julgamento de minha parte em relação a qualquer coisa que penso ou faço.

— Às vezes eu sinto vontade de abraçar meu lado mais carnal, mais selvagem. Está tudo bem nisso, imagino eu. As pessoas simplesmente não conseguem aguentar a pressão que vêm de todos os âmbitos de suas vidas. Seja do trabalho, família, relacionamentos ou até mesmo a pressão que colocamos em cima de nós mesmos. Alguns conseguem lidar com essa pressão de formas mais sutis, como leitura, artes, videogames ou andar de bicicleta, por exemplo. Mas existem aqueles que não se contentam com isso, e procuram algo a mais. Para esse tipo de situação, existe o que vemos na vida noturna. Jogos, apostas, bebidas, drogas, prostituição. Se você perguntar por aí, todos vão dizer como esses lugares – Bares, tabernas, casas de massagem e coisas do gênero -, são indecentes e repugnantes, mas se olhar bem, todas as noites, de segunda a segunda, estes lugares estão cheios. Todos se libertam de algum modo, talvez você esteja tentando encontrar o seu.

— Acho que nenhuma dessas pessoas se sentem tão livres quanto eu. E exatamente por ter toda essa liberdade, me sinto tão sozinho. Eu apenas gostaria de me sentir em meu corpo novamente. Estou vivendo essa vida, com esse rosto, mas me sinto extremamente desconfortável quando paro para pensar sobre isso. Embora me dê dores de cabeça, me sinto feliz pelos conflitos internos, pois significa que meu antigo “eu” ainda está aqui, em algum lugar. Imagino se ele sente medo de que o novo “eu” assuma o controle de uma vez por todas...

— Qual desses é o verdadeiro você: O antigo ou o novo?

— Você não entende? É justamente isso que gostaria de entender.

Eu e o doutor bebemos um pouco. Assim como eu, ele é uma pessoa bem reservada, que fica mais na sua. Eu entendo-o claramente, embora não saiba por que ele decidiu me ajudar. Ele poderia simplesmente me abandonar, mas resolveu ficar aqui. Talvez ele apenas quisesse ter um amigo, e encontrou isso em mim.

Embora eu tenha muito medo disso, a cada dia que passa começo a aceitar o meu destino. Talvez eu nunca mais volte a ser quem eu era antes. Talvez esse venha a ser definitivamente meu novo “eu”. O único eu que existe, se é que isso é possível. Se parar pra pensar, eu já não sei como poderia voltar a minha antiga vida, após tanto tempo fora. Não que eu tivesse muita coisa, mas pensar nisso mais a fundo pode me deixar reflexivo por muitos dias. Tenho medo de continuar nessa vida, fadado a ser completamente sozinho. Uma coisa é ser sozinho por escolha, outra é por não ter opção.

— Sabe uma coisa que me assusta, doutor? Tenho medo de que, uma hora eu esteja triste, verdadeiramente triste, a ponto de chorar, mas meu rosto não demonstre isso. Ou eu esteja alegre, mas ele permaneça sério. Já parei frente um espelho e testei inúmeras reações. Todas funcionaram, é claro, mas mesmo assim eu temo. E se meu novo “eu” estiver me pregando uma peça?

Seguimos por mais algum tempo no bar, até que o doutor resolveu ir embora e pediu que eu fosse até seu consultório no dia seguinte.

Ali ele disse que ainda não havia encontrado uma solução para meu problema, como eu imaginava, mas também disse temer que eu esteja passando por um transtorno de personalidade, o que é muito comum entre as pessoas ansiosas, e, pelo visto, ainda mais comum entre aqueles que se tornam outras pessoas.

Aceitei seu diagnóstico sobre mim e a receita que me passou. Agora terei que tomar antipsicóticos, que têm, entre os efeitos colaterais, o delírio. Espero que o doutor tenha razão quanto a isso. Também espero que ele encontre logo uma maneira para que eu volte a ser como era antes.

Nos primeiros dias tomando aqueles comprimidos, deixei de sair de casa. Apenas trabalhava, e quando voltava, tomava um. Então apagava e só acordava no dia seguinte. Parei de ter os pensamentos conflitantes e senti um pouco de paz. Talvez o doutor tenha razão, eu estava ficando louco. Talvez esses remédios possam mesmo acalmar um dos meus “eus”, só espero não apagar o “eu” errado.

Durante pouco menos de uma semana segui com essa rotina, mas no quinto dia, comecei a ter alucinações, e os pensamentos voltaram. Comecei a sentir febre. Também estive a ver e a sentir coisas, que me faziam acordar no meio da noite, atrás de algo ou alguém.

Mais uma vez tive um sonho com a síndica. O mesmo da última vez. Um sonho carnal, cheio de desejo, e acordei extremamente tímido. Quando saí de casa, no dia seguinte a esse, a encontrei no corredor, e para minha surpresa, ela me cumprimentou, e estava feliz. Não sei se realmente foi um sonho, ou se realmente a levei para meu apartamento, só sei que a partir desse dia, passei a trancar a porta com a chave e a escondê-la todo dia, antes de dormir.

Com medo de voltar a ter alucinações, retornei para a vida noturna, na esperança de ter ao menos um pouco de paz.

Fui para um bar no centro da cidade, não muito longe daqui, e mal acreditei com o que encontrei ali. Tamanha presença me deixou completamente assustado, mas também admirado.

Enquanto fumava, próximo do balcão daquele bar, senti algo. Uma sensação... reconfortante. Eu estava próximo ao balcão, mas não sabia onde estava a origem dessa sensação, até que comecei a buscá-la, e a encontrei, do outro lado do bar, próxima ao banheiro feminino. Ali havia um grupo de três garotas e mal pude me conter quando reconheci a do meio – a única que me interessava -. Era minha irmã.

Me senti emocionado, pois desde que me tornei este novo “eu”, nunca mais a vi, nem mesmo em meus sonhos. Já estava perdendo as esperanças de voltar a vê-la um dia. Nunca imaginaria encontrá-la em um lugar assim. Eu estava feliz, embora não tenha a certeza de que pudesse demonstrar isso.

Mas logo me dei conta que, embora fosse uma conhecida, era irmã do meu antigo “eu”. Ela não possuía vínculo algum com este novo “eu”, que está aqui. Eu não poderia simplesmente chegar nela e me apresentar como seu irmão desaparecido. Ela não acreditaria em mim, além disso, prometi ao doutor que não revelaria minha condição para ninguém.

Não havia uma forma de me apresentar sem dizer a verdade para ela, e a colocar a par de tudo que fez com que me afastasse dela, mas talvez mil desculpas e afirmações não sejam o bastante.

Me senti feliz por sua aparência. Estava feliz, bem. Embora nossa relação fosse fria, temi que ela sentisse minha falta, ou que fosse embora dessa cidade. Desde muito tempo atrás sempre fomos apenas eu e ela, e de repente, agora estamos separados. Sei quanto me senti sozinho. Será que ela se sentiu da mesma forma?

Permaneci o resto da noite naquele bar, em meu lugar, observando-a de longe. A vi beber, dançar e se divertir com suas amigas. Cada movimento, gesto ou reação dela me fascinava muito. Eu estava feliz; estava em êxtase. Era como se estivesse tendo um pequeno vislumbre de minha antiga vida. Um vislumbre colorido e alegre, do qual eu não gostaria de me esquecer por nada. Eu estava ali, como se tivesse parado no tempo, até que lá pelas 23h da noite, ela decidiu ir embora. Ela estava alegre, mas não o bastante para se perder do caminho de casa ou para fazer algum tipo de besteira. Suas amigas lhe acompanharam até a estação, mas pegaram um trem no sentido contrário, deixando-a ir embora sozinha. Por sorte, eu estava lá, e a acompanhei, de longe. Pelo trem, estação e ruas até chegar a porta de casa. Diferente do meu antigo eu, esse não usa óculos ou um chapéu, não mais. Então, não devo chamar a atenção de ninguém por estar seguindo essa moça pelas ruas. Caso um policial ou algo do tipo me pare, eu teria muitos problemas, mas sei ser discreto, ao ponto que acredito não ter sérios problemas quanto a isso. Minha irmã não saberia de nada.

Quando ela entrou em casa, me senti aliviado. Foi um alívio ver que minha irmã estava bem. Ao menos parecia estar. Pensei em ficar por mais algum instante ali. Estava tão feliz que não me importava com a hora e nem com mais nada. A tempos não me sentia tão contente e, de certa forma, até mesmo nostálgico. A sensação que tive era de que estava revendo uma memória muito antiga de dentro de mim, mas essa memória, embora pareça ser de anos atrás, estava ali, intacta, como se tivesse parada no tempo. Não sei se isso faz sentido, mas é como me sinto agora.

Por sorte, ainda a vi novamente, quando ela abriu uma das janelas que dava para a rua.

Embora tenha deixado a cortina fechada, pela luz do ambiente, eu conseguia ver a silhueta de minha irmã, desenhada na cortina. Ela estava mexendo em seu celular, e logo sumiu por um instante, mas, quando retornou, sua silhueta me deixou extremamente triste. A imagem que vi me assombrou até a hora em que fui dormir: Quando minha irmã voltou para a janela, parecia tranquila, enquanto olhava para o céu, e assim ficou, por alguns instantes, mas logo se prostrou, apoiando na janela, e se desabou a chorar.

Confesso que embora tenha me deixado triste, aquela imagem também me trouxe uma esperança que eu pensei ter perdido. Eu havia gostado da sensação que tive nesta noite. Meu antigo “eu” talvez estivesse aflorando novamente; eu queria voltar para essa vida. Por um momento, não queria mais viver como um novo “eu”. Queria ser eu novamente. Sei que isso não está ao meu alcance, mas pelo menos, agora, estou decidido a vigiar minha irmã, para protegê-la. Eu devo isso a ela. Ficarei ao seu lado, de longe, a apoiando. Principalmente pelas noites. Se a encontrei em um bar, o que dirá que ela não frequente outros? Talvez eu consiga me lembrar um pouco sobre como é sua rotina, e consiga encontrar um tempo livre na minha que bata com um dela, assim poderei vê-la novamente, poderei protegê-la. Se o homem do qual roubei este rosto foi morto e não virou notícia, quem garante que esse tipo de coisa – digo, os assassinatos -, não ocorrem todos os dias, sem que ninguém fique sabendo? Pensar nisso me faz ver como a vida noturna, embora atrativa, também pode ser bem perigosa.

Decidi então protegê-la de longe, como um anjo da guarda, até que possa voltar para sua vida, com uma forma coerente para explicar tudo que aconteceu e o que me fez abandoná-la, ou até que ela esqueça de mim completamente, sendo feliz, de longe. Eu continuaria aqui, apoiando-a, e isso não me seria ruim de forma alguma. Talvez voltar para sua vida agora seja uma coisa ruim a se fazer. Eu preciso pensar mais a respeito disso.

 

 


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