Protofonia escrita por Camélia Bardon


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Oie! Como vão vocês? Espero que bem!
Essa aqui é uma songfic pro desafio do grupo do Facebook, aproveitei a oportunidade para postar a one-shot que estava engavetada há tempos. O link da música vai estar nas notinhas finais ♥ Fazia tempo que não escrevia ones, perdi o costume e quase que estouro o limite de palavras KKKKKKKKKKK



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Carlos amassou outra partitura, arremessando a bolinha de papel numa cesta perfeita no canto do apartamento. Se estivesse num filme clichê, aquele seria o momento em que receberia uma ligação do cliente perguntando a quantas andava a sinfonia encomendada. Em seguida, quase como se estivesse esperando o mínimo sinal de vida escutando com um copo atrás da porta, apareceria o locatário e cobraria o terceiro mês de aluguel atrasado com uma ameaça passivo-agressiva. E então, Carlos, no apogeu de seu desespero, teria uma epifania criativa ao encontrar um pedaço de papel milagroso perdido em meio ao monte que já havia descartado, abrindo-lhe a visão como uma musa inspiradora.

Entretanto, Carlos estava com o aluguel em dia. Faltava um tempo considerável para entregar a encomenda, o que significava que qualquer ligação de cobrança seria absurda. Também não havia papel milagroso, uma vez que ele era mais adepto à tecnologia do que aos métodos tradicionais de anotação – não por opção: ter um cachorro que aspirava toda e qualquer substância que caía fora do lixo o obrigou a aceitar os avanços tecnológicos. Por último, mas não menos importante… 

Carlos dificilmente seria o protagonista de qualquer filme clichê que fosse. Jamais tinha visto um filme clichê onde o protagonista se parecesse com ele. Não era alto, forte, com maxilar quadrado ou branco. Carlos conseguia alcançar os 1,70 m se usasse seus sapatos sociais com saltos. Apesar de ter conquistado reconhecimento com suas apresentações de ocasião nos pianos espalhados pelas linhas de metrô, as matérias que abordavam entrevistas sobre sua vida pessoal sempre davam um jeito de fazer alusões engraçadinhas sobre sua falta de altura. “José Carlos Augusto Pereira dos Santos, 25, o menino-prodígio de Ouro Preto, compensa em talento o que lhe falta em estatura”

Francamente. Como se não bastasse ter três nomes próprios. 

Talvez, se fosse otimista, poderia ser aquele personagem secundário desajeitado que só aparece para servir de alívio cômico e/ou força moral para o mocinho e depois some quando o protagonista enfim conquista o par romântico. 

Com um suspiro, Carlos deixou que o metrônomo preenchesse o silêncio do apartamento. Era irônico que uma cidade como São Paulo estivesse em silêncio às 17h. Quer dizer, se ele não contasse os roncos ocasionais de Tobias. O velho companheiro dele estava em plena crise de meia-idade canina, mas não fazia muita questão de se esforçar para combater o inevitável. 

Enfim, tudo conspirava para que Carlos terminasse seu projeto. Afinal, não era todo dia que recebia uma proposta de parceria de Dodi Jeff, outro grande nome na plataforma – mas um permanente, com contratos e tudo. Quem escutasse os dois nomes juntos jamais diria que sairia algo de bom da junção do estilo do rap de Jeff e o singelo clássico de Carlos. Era pegar ou largar e, por mais que estivesse com o aluguel em dia, nunca era possível prever em quanto tempo morria uma sensação-relâmpago. Tinha de aproveitar enquanto ainda era relevante em seu nicho.

Tudo conspirava, exceto sua criatividade. O cérebro de Carlos estava criando teias de aranha.

Tic, toc, tic, toc, tic, toc

Ele grunhiu, levantando-se do banquinho para se espreguiçar. Aproveitou para desligar o metrônomo, porque tinha certeza que teria pesadelos com aquele som por uma semana inteira. A parte ruim de ser um “menino-prodígio” era não ter ideia de como os instrumentos de composição deveriam ser usados, na prática. Ele era instintivo com as teclas, aprendendo a usar o instrumento através de vídeos e dedução. Estava aprendendo a usar uma partitura só agora.

Carlos, popularmente conhecido como @aquelemeninodopiano, poderia muito bem ser considerado como uma farsa musical. E passava a maior parte do tempo perguntando-se quando enfim as pessoas iriam se dar conta disso.

Ao escutar os ruídos do dono, Tobias levantou as orelhas ansioso por um afago. Carlos coçou atrás das orelhas do vira-lata, recebendo uma série de lambeijos como agradecimento. Sorrindo, o humano sentou-se no sofá ao lado do cão e permitiu que este subisse em seu colo. 

— Acho que ‘tá na hora d’ocê começar a trabalhar para ajudar a pagar o aluguel, sô… eu não queria bancar o agiota, mas ou é isso ou vamos ter que tomar medidas drásticas.

Tobias resmungou, colocando a pata sobre o joelho de Carlos. Parecia estar dizendo algo como “você é muito molenga para medidas drásticas, colega. Além disso, você me ama”.

— É, eu sei… Tem toda razão, amigo. Mas pelo menos a ração ‘cê podia pagar. 

O cachorro bufou, arrancando um riso baixo de Carlos. E então, ele decidiu por apreciar o silêncio. A noitinha já ia caindo, não faria mal preparar-se para dormir mais cedo. 

Uma hora e meia depois, seu silêncio foi interrompido. E por um som ainda mais irritante do que o de um metrônomo. 

☆ 

Laura mal teve tempo de tirar os sapatos da rua. Havia algum botão em seu corpo que era acionado no momento em que colocava os pés dentro de casa, obrigando-a a parar e anotar as ideias que tinha tido ao longo do dia. Mesmo tendo feito a mudança naquele mesmo dia, Laura sentou-se no chão e colocou tudo no papel.

As “ideias” vinham de todos os lugares, mas principalmente de conversas escutadas de butuca: no metrô, dos pacientes que aguardavam na recepção lotada com frequência da Unidade de Pronto Atendimento, dos colegas de trabalho, das amigas da avó, dos amigos do namorado de dona Irene. Laura não podia simplesmente tapar os ouvidos. As conversas vinham e tudo que Laura podia fazer era dar asas a elas. Fazia isso através da ficção.

Algumas eram extraordinárias demais para incluir, outras muito íntimas. Laura colecionava-as com carinho dentro de suas pastas, mas ainda não sabia o que fazer com elas. Até aquele dia.

Porque, naquele dia, Laura tinha finalmente saído da casa da avó — com o incentivo dela, inclusive. Por mais que fossem carne e unha, a chegada de seu Pedro, namorado da avó, havia feito com que Laura refletisse na urgência de permiti-los viver uma vida a dois. Não tinha conhecido o avô, mas as histórias que dona Irene contava até faziam com que ela sentisse alívio por ele já estar morto. Se ele estivesse vivo, a garota corria sérios riscos de tratá-lo com desprezo. Então, tomada a decisão, apesar de Laura ter um salário mais ou menos decente, dona Irene tinha insistido em pagar parte do aluguel da neta com a aposentadoria. Era sua condição para concordar com a mudança. 

Dias antes, dona Irene havia dado o melhor presente de casa nova que Laura poderia querer. A antiga máquina de escrever que namorava há anos, presente na casa da matriarca Dourado desde antes mesmo de Laura entrar em sua história. Dona Irene dizia que a máquina esperou por ela, e Laura não poderia concordar mais. Modéstia à parte. Cuidaria dela como a própria vida. Quer dizer, melhor do que a própria vida. Sendo honesta, lembrar-se da higiene já era uma grande conquista.

Por isso, quando trouxe todos os pertences para dentro do novo apartamento — semi-mobiliado, para o festejo de sua preguiça e de seu salário semi-decadente —, a primeira coisa que Laura fez foi libertar a máquina de escrever de sua caixa e colocá-la para trabalhar.

Havia um charme especial em usar coisas tornadas obsoletas para registrar coletâneas de coisas novas. Era como uma forma especial de ressignificar o passado. O único defeito da máquina era o barulho. Até mesmo sua gata, Vendetta, que em geral era calma e bondosa, já tinha miado para ela expressando seu descontentamento. Laura nunca havia morado num apartamento antes, porém as regras de convívio indicavam que era possível fazer barulhos até as 22h. Então, azar.

Ah, a quem ela queria enganar? Estava morta de medo de aborrecer os vizinhos. Pior: morria de medo de pagar uma multa. O problema era que ela não conseguia digitar mais devagar. Será que dava para abafar o som de alguma maneira?

Laura respirou fundo e continuou a digitar. E então, a mágica aconteceu. Enquanto registrava a história de um viúvo que conheceu a esposa durante uma viagem de balsa para uma cidadezinha na Bahia, a parede começou a emitir notas de piano.

Ela franziu a testa, confusa. Piano? Na parede? Tudo bem, ela tinha almoçado e tomado uma xícara de café no lanche da tarde, delirando de fome ela não estava.

— Você também ouviu isso? — ela sussurrou para a gata, que ignorou-a. Nada diferente na vida de quem tem um felino. — Só porque eu falei, agora parou… 

Como é que alguém conseguia ter um piano num apartamento? Certo, tudo bem, aquele era o primeiro andar, mas ainda assim. 

Quando teve certeza de que a música havia cessado, Laura voltou a digitar. E não estava louca: cinco minutos depois, o piano a acompanhava, quase como se estivesse tentando competir pelo barulho. Para testar sua teoria, Laura escreveu por algum tempo e depois interrompeu a sessão de escrita. O piano fez companhia para ela, mas parou logo em seguida. 

Laura endireitou a postura, sentindo os cabelos da nuca se arrepiarem.

— A gente sabe se temos vizinhos, Detta?

Na hora, Laura se deu conta de seu erro. Se os vizinhos hipotéticos conseguiam ouvir a máquina de escrever, era óbvio que podiam escutá-la falando através das paredes. Que vergonha. 

Finalmente retirando os sapatos do trabalho, Laura resgatou a cafeteira das caixas de mudança e calçou chinelos confortáveis. Trocou a ração da gata e enquanto isso foi preparando-se para encarar o inevitável. Teria de ser social ou corajosa para enfrentar um fantasma pianista. 

Pouco importava que trabalhasse na recepção de uma UPA. O atendimento ao público fazia com que você fosse mais falso, não preparado para interagir com pessoas. Porque, de duas uma: numa UPA você estava realmente passando mal e correndo perigo ou queria um atestado médico porque estava com preguiça de trabalhar. O restante das pessoas era uma incógnita, e Laura entrava em pânico só de pensar em cometer alguma gafe social. Por isso, o café. Não tinha situação ruim que não pudesse ser apaziguada por um cafézinho. Era o melhor que podia oferecer, uma vez que não consumia álcool ou refrigerante. 

Após uma longa sessão de respiração – e de uma carreirinha extra de gato para relaxar –, Laura bateu à porta ao lado. 

☆ 

A primeira coisa que Carlos notou foi a altura dela. Era humilhante que estivesse usando chinelos e ainda assim fosse uns bons dez centímetros maior do que ele. Ainda assim, ela parecia inofensiva. Com a barulheira que estava, Carlos esperava… Sei lá, um crossfiteiro cortando agressivamente sua batata-doce para o pré-treino. Ou seria pós-treino? Carlos nunca tinha pisado numa academia em toda sua vida. 

— … comigo?

— Hein?

Ela já estava falando há algum tempo, mas num tom tão baixo que até mesmo os pensamentos de Carlos estavam sendo mais eloquentes. Após um pigarro, a desconhecida repetiu gaguejando:

— D-desculpe. Eu perguntei se eu estou incomodando… E se for o caso, se v-você gostaria de tomar um café comigo, para compensar? Q-quer dizer, é você quem está tocando o piano?

Ele tinha quase certeza de que ela não tinha dito tudo isso da primeira vez, mas torcia para tratar-se apenas de uma reformulação de frase. Infelizmente, Carlos era do time de pessoas que era séria demais até mesmo em momentos descontraídos. Já Tobias farejava atrás da porta entreaberta, doido para dar alguns latidos e marcar o território. Desconfiado.

Por outro lado, o café era tentador. 

— A propósito… Meu nome é Laura. E, perdoe-me pela pergunta indiscreta, mas eu te conheço de algum lugar? O seu rosto não me é estranho… 

Ela estendeu a mão para Carlos, parecendo estar recomposta da tentativa inicial de comunicação. Compadecido pela situação, Carlos apertou-a. Ela era quem tinha a aparência mais intimidadora entre os dois, porém seu tom de voz e seu aperto de mão eram delicados. Em algum lugar no fundo de sua consciência, escutou a mãe dizendo: “eu já não te falei, menino? Tu não pode julgar os outros pela cara, não. Você, por exemplo, é um baixinho invocado que na verdade é a maior maria-mole”. Que hora mais inconveniente para sentir saudades da terrinha. 

— Carlos — ele abriu um sorriso mínimo, ainda segurando a mão dela. Por alguns instantes, Laura parecia estar tentando ler sua alma. Ou, em termos mais simpáticos, talvez descobrir sozinha de onde ele era. — Acho que você deve ter me visto na sua timeline. Eu… 

— Mas é claro! O menino do piano! Puxa, agora faz todo o sentido! ‘Cê manda muito, cara! Cadê o seu cachorro? Eu posso fazer carinho nele? Eu tenho uma gata, ele vai rosnar se sentir o cheiro dela? Como é que ‘cê fez pra trazer o piano pra cá?

Caramba, para alguém que parecia ser tímida, Laura se soltava muito fácil se lhe dessem só um pouquinho de liberdade. Foi impossível não abrir um sorriso com aquele pensamento. 

— Antes ou depois do café? — ele brincou, trocando o peso dos pés. 

— Bom, eu… Posso trazer o café aqui? Eu, hum… Mudei pra cá hoje, não vou saber onde estão as xícaras. 

— Sem problemas… eu acho. E, não, o Tobias não morde e nem rosna. Na verdade, ele é bem dado. Se tu falar com voz de bebê com ele, já ganhou toda a confiança. 

Laura abriu um sorriso enorme. A fileira de dentes brancos em contraste com a pele escura fez com que Carlos duvidasse de sua própria higiene. Se tivesse de apostar, diria que aquele era um dos sorrisos mais bonitos que Carlos já tinha visto na vida.

— E tem outro jeito de falar com cachorros?

Carlos retribuiu o sorriso, abrindo a porta por completo para que Laura pudesse entrar. Ela deu meia-volta para recuperar a cafeteira, e Carlos pode ver que ela falava a verdade. O apartamento dela só mostrava a mobília básica. Talvez esse fosse o motivo de tanto barulho – toda pessoa barulheira sabe que o melhor modo de abafar é entupindo o ambiente de móveis. Depois de muito cheirá-la, Tobias aprovou a presença da estranha no apartamento, agarrando-se aos joelhos dela com a língua para fora. Laura acariciou a cabeça dele, não resistindo a ajoelhar-se pouco depois. Ninguém resistia aos abraços de Tobias. Carlos o adotou a partir de um abraço, por exemplo.

— Oi, bonitão! Ouvi dizer que você é famoso!

— Tenho certeza que os vídeos só viralizaram por causa dele — Carlos concordou, indo até a cozinha para pegar a toalha e as xícaras. Para complementar, ele resgatou um pacote de pães de queijo do congelador e colocou-os para assar no forninho. — Eu nem fiz nada demais. 

— Ah, é fofo ele encostadinho olhando pra você com aquela carinha de pidão, mas não seja modesto… Eu amo os vídeos, ‘cê é muito talentoso! 

Carlos ficou encabulado, mas conseguiu sorrir com o elogio. 

— Agradecido, moça. Enfim… O que era aquela barulheira toda?

— Ah! Era uma máquina de escrever… ‘tava tão ruim assim…?

— Imagine um monte de tiros numa sala vazia. 

— Ah… 

Ele riu, convidando-a a sentar-se na outra cadeira. Laura acomodou-se com elegância, servindo o café. O cheiro estava maravilhoso, ele devia admitir. Uma das desvantagens de trabalhar em home office era esquecer-se de parar para comer. Carlos estava humilhantemente faminto.

Compreendendo que era hora de uma refeição, Tobias deitou-se aos pés da mesa, atento a qualquer farelo que fugisse do controle dos dois. 

— Eu não adocei — Laura avisou, e Carlos tratou de também trazer açúcar para a mesa. — Também tenho uma pergunta, se não se importar. 

— Hum… Claro. 

— O que é que ‘cê ‘tava fazendo? Me seguindo com o piano? 

Carlos riu de nervoso, sentando-se junto a ela. Notou que a quantidade que Laura colocava no açúcar era mínima. Ele, por outro lado, sempre afogava o café com pelo menos duas colheres de açúcar. Enquanto girava a colher na xícara – plic, plic, plic —, Carlos tentou explicar de uma maneira não tão patética:

— Eu ‘tava ouvindo e… tentando tirar uma base para uma nova música. Uma original. Eu… eu ‘tava era sem ideias.

— Você compõe? — os olhos dela brilharam, mesmo que o sorriso tenha se escondido atrás da xícara. — Massa. 

— Tentando, mas não ‘tá saindo muito bem — ele admitiu, sentindo um pouco do peso nos ombros se suavizando. Laura era praticamente uma desconhecida, mas Carlos não conversava com ninguém além do chefe. A presença dela era mais acolhedora. Um convite sutil para se abrir. Então, por que não? — Eu não entendo muito de composição, para ser honesto. Mas me ofereceram uma grana boa, eu tinha que tentar antes de recusar… 

— Você… hum… já recebeu alguma parte do dinheiro, por acaso?

— Bom… Sim e não. O piano faz parte da parceria paga, porque falei que não tinha um em casa. Mas dinheiro, dinheiro, não. Graças a Deus. Tenho a impressão de que já teria gastado com tranqueira se tivesse recebido algum dinheiro. Não que eu não faça isso normalmente, mas… 

Laura gargalhou, sacudindo os ombros. Era quase como se ela risse com o corpo inteiro. Carlos sorriu e tomou um gole do café, pronto para erguer sua bandeira de paz.

— Enfim, eu… Me desculpe pelo susto, também. Não foi minha intenção. 

— Acho que a gente pode instaurar uma trégua dizendo que foi um susto duplo — Laura abrandou o sorriso, tomando outro gole do café. — Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

Carlos ergueu uma sobrancelha. Quem diria que um dia monótono como aquele poderia acabar daquele jeito?

— Poderia continuar escrevendo. Ajudaria, talvez. Só se não se assustar quando eu começar a tocar o piano no mesmo compasso 

— Vou tentar me lembrar desses termos. Mas a gente vai ter que revezar o café. Tá meio caro pra ficar bancando sozinha, sabe?

Carlos achou graça, mas aquiesceu tentando manter a seriedade em nome do acordo..

Daí, pelo resto da noite, enquanto dividiam pães de queijo, ele contou à Laura sua história: aprovado na USP, Carlos deixou Minas Gerais para estudar Ciências Contábeis, determinado a melhorar a vida da mãe que o tinha criado sozinho. O piano foi uma casualidade, fruto do convívio com os amigos. O dormitório que dividia o aluguel tinha todo o tipo de pessoas, porém Carlos era o mais tímido de todos. Era muito difícil fazer amigos, mas seu maior aliado ali era Mateus, que estudava Artes Cênicas e fazia alguns bicos dando aulas de teclado. Extrovertido como era, logo Mateus convencia todos a tentarem uma aula teste. Carlos foi o único que não apenas conseguiu aprender com os métodos dele, mas equiparar-se na habilidade. Logo, no tempo livre e quando o amigo não estava em casa, Carlos arriscava-se no teclado. E, um dia, quando voltavam para casa um pouco altos, deixou de lado a timidez e tentou tocar o piano em público. E então veio o primeiro vídeo.

Mateus é quem deveria ser considerado o @aquelemeninodopiano, porque era verdadeiramente talentoso com o instrumento. Carlos era apenas um bom copista. 

Fosse como fosse, foi o começo de uma carreira. Com sorte, por tempo suficiente para economizar algum dinheiro. Ciências Contábeis dava dinheiro, mas não trazia felicidade para ele. Sua persona na internet era o que mais se aproximava da felicidade, apesar de ela ser incompleta. 

Também escutou Laura falar um pouco sobre quem era: plantonista, recém-chegada, filha de pais divorciados e aspirante a contista. Mãe de uma gata carente e orgulhosa. Passaria pelo menos duas semanas organizando o novo apartamento, porém garantiu que incomodaria Carlos o mínimo possível. Laura tinha o papo fácil e, por mais que ele tivesse uma dificuldade absurda em conversar com as pessoas, parecia que ele a conhecia há anos. Nesses termos, Carlos sentia-se até ansioso em ser incomodado.

Talvez os dois pudessem ser uma boa dupla, afinal de contas.

☆ 

— Não me olhe com essa cara, Vendetta. Não é um crime cheirar a cachorros. 

A gata balançou o rabo de maneira bem esnobe, indicando que discordava. Ainda assim, quando Laura acariciou seu ponto fraco – logo abaixo, no queixo –, Vendetta não resistiu a estender o pescoço para que a humana pudesse acariciá-la melhor.

— Cachorros são bobos, e você está acima de qualquer um. Sabe disso, não sabe? Além disso, eu estou fazendo um favor para o humano dele. Não tem nada a ver com o cachorro.

Laura deitou-se na cama. Já tinha completado duas semanas de sua nova casa. Laura ainda estava adaptando a rotina, mas não foi nada difícil adicionar à ela o passatempo de escutar o piano através da parede. Principalmente nos dias de trabalho mais estressantes, a música era um bálsamo para sua alma. 

Carlos tinha alguma coisa que a fazia sentir-se em casa. Era quase como se não tivesse saído da casa da avó. Dona Irene ligava todos os dias, mas não era a mesma coisa. Laura detestava admitir, mas demoraria muito até pegar todo o jeito da solidão. Voltar para casa e não encontrar comida fresquinha, café antes do trabalho e as piadas de seu Pedro para animá-la ao som de sertanejo antigo estava fazendo muita falta. 

Desde que se entendia como gente, Laura tentava não dar trabalho a ninguém. A mãe já tinha estresse suficiente lidando com o divórcio difícil e observar o homem que amou formando uma família nova e abandonando a antiga como se nunca tivesse existido. Laura nunca o via, e a mãe entrava na lista de visitas ocasionais. Foi como se o pai tivesse rompido a conexão primária entre as duas: ambas arranjavam desculpas para não se verem. Cada uma desmoronando em seu mundo particular, foi com uma espécie de acordo silencioso que Irene Dourado adquiriu a guarda da neta.

Todos a quem Laura havia mais amado haviam a trocado tão facilmente quanto uma peça de roupa. Não era assim tão surpreendente que ela não conseguisse se abrir ao ponto de ter amizades.

Talvez a hora de tentar mais uma vez tivesse chegado, enfim. Por mais que soubesse que não tinha nada demais a oferecer para alguém tão admirável. Laura Dourado era completamente entediante.

Notando a maré de pensamentos de sua humana, Vendetta deitou-se em cima de suas costas e pôs-se a ronronar intensamente. Laura não pode deixar de sorrir. Amava-a demais.

— Pelo menos você eu sei que não vai me trocar por ninguém, Detta. ‘Cê detesta gente nova. 

Vendetta bocejou, quase se estivesse corrigindo a fala dela.

— Tá, gente com cachorro, não faz tanta diferença assim. 

Então, a gata voltou a dormir, indisposta a uma discussão que andaria em círculos. Laura teria ficado ali sem problemas, porém pouco depois a campainha ressoou pelas paredes quase-todas-mobiliadas do apartamento. Que situação.

— Oi! — ela gritou, torcendo para o vazio cooperar daquela vez. — A porta ‘tá aberta! 

Após algum tempo de hesitação, Carlos adentrou o apartamento. Era a primeira vez que o fazia, e até parecia um gato desconfiado de tudo onde pisava. Laura só conseguia vê-lo de escanteio pelo espelho do armário,mas ainda assim a cena era engraçada de acompanhar.

— Entendi — ele riu ao ver o estado em que ela se encontrava. — Emergências felinas.

— É, foi mal… Aonde ‘cê foi? Tá bonito! 

As bochechas dele ficaram vermelhas. Ele sempre reagia daquela forma quando recebia algum elogio. Era bem meigo. Laura sentia falta de homens meigos, convivendo com tantos brutamontes no trabalho.

— Dia de ir na rua — Carlos explicou, ajeitando a gravata como se vestir um terno tivesse se tornado incômodo só agora. Ele era bastante bonito, com cabelos castanhos ondulados e os olhos amendoados. Apesar de simples, a roupagem chique o dava um ar sofisticado. Sem contar o sotaque mineirinho. Podia escutá-lo falando por horas. — É pra fazer bonito pros chefes. Mas coça. 

Laura gargalhou, provocando a insatisfação da gata. Isso e a presença de Carlos fizeram com que ela saísse das costas dela bufando e caminhasse para fora do quarto. Ele sentou-se na ponta da cama, esperando que ela se recompusesse. 

— Como é que foi pegar metrô de terno? — ela sorriu, se espreguiçando.

— Ah, de boa. Você tinha que ver os estudantes de Direito, eles iam de terno assistir às aulas.

— Mentira! Eu achei que era só meme! 

— Nú! Dava vergonha alheia, uma marmota daquela! Tu tinha que ver!

— Mano do céu… 

Ambos trocaram uma gargalhada, e Laura riu até a barriga doer. Carlos sorriu para ela depois de suspirar, deitando-se no outro lado da cama. Tirou os sapatos com os próprios pés e espreguiçou os braços, fazendo com que exalasse uma combinação interessante de talco dos sapatos e colônia. Laura jamais o tinha visto tão confortável. Ou era um sinal de que ela era uma boa pessoa ou que ele estava no ápice do desespero. 

— E como vai a música? — ela indagou, casualmente. — Alguma novidade?

— Ah… Sei não se sai, viu, Laura.

— Como não? Eu digitei um mundo de coisa, menino!

Ele deu de ombros, um movimento que fez a cama ondular. Laura virou o corpo para ele, apoiando-se na cama com o cotovelo. Usando um tom gentil, ela tentou mais uma vez: 

— Qual é o problema? O que é que ‘tá te incomodando?

— Difícil dizer — Carlos mordeu o lábio, pensativo. — Mas acho que eu não sou bom mesmo compondo… Já passou muito tempo e não peguei as manhas, sabe?

Carlos também apoiou-se num dos cotovelos, fixando os olhos nos dela. 

— O que eu faço geralmente é mimetizar uma música… agora, uma nova sinfonia… me parece algo além dos meus limites. Partitura, tempo, os termos, é… tudo muita coisa. Não está dando certo mimetizar composições, isso é frustrante… 

Laura assentiu, respirando fundo. 

— Talvez devesse tentar outra estratégia… 

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer que você está indo muito como os outros fazem. Como é que o Carlos faria?

Ele ergueu uma sobrancelha, mas o sorriso no canto de seus lábios fazia-se presente. Laura tinha aprendido a amar as expressões sutis de Carlos. Ele era sempre tão sério… 

— As pessoas gostam da sua espontaneidade — ela explicou. — De como você aparece aleatoriamente nos lugares, passeando com o cachorro, parando para tocar piano numa estação qualquer. As pessoas ficam torcendo para encontrá-lo por aí. Para os seus pedidos de música serem atendidos. Porque essa é a sua graça, Carlos… você é um cara normal. E as pessoas te vê assim… 

— Eu deveria levar isso como elogio?

Laura abriu um sorriso, dando a si mesma a liberdade de pousar uma mão sobre o braço dele. Carlos olhou-a com um ar curioso. 

— Claro que sim. Hoje em dia, quantas pessoas normais e reais você conhece na internet? De verdade? Quantas pessoas famosas fazem todo um cronograma para exporem seus momentos “sem filtro” que são milimetricamente calculados? Isso dá a elas um ar de que são tão normais quanto nós, que são gente como a gente. Mas o que a gente gosta de ver mesmo são pessoas normais agindo como pessoas normais, sem pretensões.

Já bastante inflamada por seu discurso, Laura umedeceu os lábios. 

— E é isso que você faz, Carlos — baixando o tom de voz, Laura concluiu: — Por isso você recebeu o convite para a parceria. Porque enxergaram em você o que tanto se esforçam para fazer. Todo mundo ama o seu jeitinho. Devia compor do mesmo jeito que aprendeu o piano… devia tentar seguir sua intuição. Eu acredito que tu consegue. Nem pelo dinheiro, mas acho que vai dar um resultado maravilhoso, porque vai ter um pouquinho de você nele. 

Os olhos dele brilharam. Laura não resistiu a sorrir com a reação dele. 

— Gentileza sua… você é ótima com as palavras, Laura.

— Tô só sendo sincera! Eu me importo contigo, uai! 

Carlos voltou a deitar-se, ocupando o lado da cama em que ela não dormia. Ocorreu a ela o pensamento de que talvez o lugar estivesse reservado para ele o tempo todo. Laura deu de ombros, tentando conter a vermelhidão do rosto.

— E desde quando tu fala uai, uai?

— Muito convívio contigo! 

Ele abriu um sorriso, algo entre o tranquilo e o ansioso. E então comentou:

— Você quer saber? Vou fazer aquela música e dedicar ela pra ti. Devia escrever mais.

O coração dela se aqueceu.

Um convívio nada desagradável, diga-se de passagem.

No final daquele dia, Laura colocou a máquina de escrever para trabalhar.

☆ 

Carlos escutou-a escrever por mais duas semanas. Aguardando. Tentando. 

Quando Laura estava de folga no trabalho, não eram raras as vezes que eles compartilhavam refeições. Para economizar nas despesas, é claro. Carlos ajudava-a na mudança, Laura agradecia com uma macarronada e ele ajudava comprando a mistura. Ou o café. Ou a sobremesa. Até mesmo Vendetta e Tobias estavam acostumados à presença um do outro.

Carlos terminou a batida da música num dia em que ela estava de plantão. Dodi Jeff aprovou-a apenas uma hora depois. Disse que combinava com uma música romântica. Ele daria um jeito de adaptar as batidas de seu som e, quando pensasse em algo, o chamaria para o estúdio. Carlos só sabia sorrir. Nem mesmo a perspectiva de um videoclipe o aterrorizava.

Um dia antes, Laura havia dado para ele um rascunho de uma história que pretendia escrever. Era sobre um casal de idosos que encontrava o amor após pensarem que era tarde demais. Carlos tinha prometido que seria seu primeiro leitor. E ele detestava ler.

Ele escutou Laura girar as chaves do apartamento ao chegar do serviço. Carlos aguardou quinze minutos e mandou uma mensagem perguntando se ela queria pedir uma pizza. A resposta foi um animado sim acompanhado de um emoticon de túmulo com rosas. 

Por mais que tivesse abandonado de vez a teoria musical, ele se recordava de um termo. 

Protofonia. A introdução a uma sinfonia. 

Podia estar sendo pretensioso, porém ela merecia saber que era sua inspiração. Dizem que musas atendem quando são chamadas, então quais eram as chances de Carlos ter pedido pela vinda dela em meio a seus silêncios?

Laura Dourado era o prelúdio de sua sinfonia, no momento em que apenas ouvia notas esparsas. Era hora de compor novidades, por isso Carlos fechou a porta atrás de si ao entrar no apartamento dela. 


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Notas finais do capítulo

https://youtu.be/D7NOGOc7KLw



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