Alma escrita por Taigo Leão


Capítulo 4
IV




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Dois dias depois, tudo voltou a como era antes. Ao menos aparentemente.
Ethan chegava antes de Alexsandra à porta da biblioteca, e, quando sentiam a necessidade, começavam o dia com um cumprimento ríspido.
O restante dos dias eram monótonos e acanhados, sem nenhuma frase além do necessário entre os dois. Ethan estava pensativo, e não conseguia deixar de pensar no dinheiro que havia gasto naquela taverna. Além dos remédios que comprou no início do mês, já havia gasto mais do que devia: e ainda não tinha nem ao menos pago o aluguel.
Mas não estaria em apuros, pois Alexsandra cumpriu com um acordo do qual o rapaz até mesmo havia se esquecido:
— Confesso não saber bem tudo que faz em sua vida, mas talvez eu tenha me precipitado e acabado por atrapalhar os seus afazeres, já que na última semana dedicou boa parte de seu tempo a essa livraria e a mim. Como consequência de tudo que tem feito, pegue isso.
O envelope que Alexsandra entregou continha um monte de dinheiro dentro dele.
—...Tem certeza disso?
— Eu estou no comando neste lugar. Tu foi um funcionário, e funcionários costumam receber. Agora pode ir, sei que não quer estar aqui.
— Se não se importa, ficarei mais um pouco.
Alexsandra assentiu com a cabeça e voltou aos afazeres. Embora a livraria não fosse tão grande, sempre havia livros fora de seus respectivos lugares para serem arrumados.
Ethan esboçou um tímido sorriso. Não havia feito isso pelo dinheiro, e sim para ajudá-la, já que sabia como o trabalho exigia muito para apenas uma pessoa, mas o dinheiro havia vindo em boa hora.
— O velho não costuma lhe pagar, não é verdade?
Ethan procurou a origem da voz, mas não encontrou. Também ouviu a mesma voz por mais um ou dois comentários, mas a ignorou da mesma forma que antes, ainda mais por ela fazer comentários tão maldosos sobre Alexsandra que até mesmo enraiveceu o rapaz. Quanto à ela, ele se absteve de dizer uma única palavra que não fosse extremamente necessária. Ao final do dia não quis nem mesmo levá-la até sua casa, alegando estar muito cansado, mesmo sem ser questionado sobre uma razão para não acompanhá-la, mas, contrariando sua decisão, poucos minutos depois de ter entrado, ouviu batidas em sua porta. Era Alexsandra.
— Me deixe entrar.
Estava zangado e cansado, mas mesmo nessas condições se encontrava incapaz de recusar um pedido dela, o homem obedeceu, em silêncio.
O cubículo de Ethan não era muito grande e nem estava em ótimas condições. Era um lugar razoável para se viver, mas não passava disso. Possuía uma pequena cama com um colchão furado, e uma pequena cadeira de madeira. Também havia um pequeno guarda-roupa de duas portas, um pequeno baú e uma escrivaninha, onde haviam alguns livros e outras coisas. Em um outro espaço ao fundo, havia a pequena cozinha, mas essa era tão pequena que não caberia duas pessoas ali dentro. Nela havia uma pequena pia, um fogão enferrujado e uma pequena geladeira, que possuía quase metade do espaço de uma normal.
— Está vendo? Este é nosso acordo de paz: Quero jantar com você.
Envergonhado, Ethan relutou.
— Bom... Se for assim, então vamos comer em algum lugar longe daqui.
— Longe?
— Sim. Quero dizer, longe desse cubículo. Em alguns dias não quero trocar esse lugar por nada, mas em outros, quanto mais longe fico, melhor me sinto.
Alexsandra estranhou, mas aceitou a condição. Ela sabia como o rapaz conseguia ser curioso, e, de certa forma, peculiar, em suas falas e gestos, mas isso não o impedia de ser uma boa pessoa.
Os dois foram até um restaurante pouco chique que havia pelo bairro. Ethan estava meio relutante em relação ao valor dos pratos. O homem que os atendeu foi extremamente cuidadoso e hospitaleiro quando viu Alexsandra passar pela porta, e com toda etiqueta, lhes apresentou o local, guiando-os até uma boa mesa, e até mesmo puxou a cadeira para ambos se sentarem. Para completar a hospitalidade, até mesmo serviu as taças de vinho, sem nem se perguntar se eles gostariam daquilo ou não, o que deixou Ethan um pouco incomodado.
O rapaz pediu um prato simples, enquanto Alexsandra optou pela sugestão da casa.
Durante o jantar nenhum dos dois disse uma única palavra. Enquanto Ethan, a todo instante, tentava evitar olhar diretamente para Alexsandra, ele sabia que ela lhe encarava, e a moça até mesmo achava graça em ver as tentativas do rapaz em disfarçar o indisfarçavel.
— Não pedirei uma explicação. Não se preocupe com isso. Se quiser beber, então beba, mas saiba que se algo lhe acontecer, eu ficaria... Bem, eu poderia ficar decepcionada.
— Confessa que sentiria minha falta?
— Sentiria falta apenas de suas bobagens, pois não conheço nenhum ser mais estúpido do que tu!
— Outra vez vem a fazer pouco de mim. O que quer que eu faça?
— Tu diz que eu faço pouco de ti, mas você mesmo faz isso consigo! Eu apenas lhe trato, não da forma que me convém, mas da forma que você se espelha para mim. O tratamento que recebe é um reflexo da forma com que você tem vivido. Mudando de assunto, preciso lhe agradecer pela ajuda que tem me dado. Espero que o dinheiro lhe ajude.
— Não quero que tenha pena de mim. Não quero que ninguém tenha pena de mim. Sei que sou inválido. Sei bem de minhas fraquezas, mas, aos poucos, tento melhorar. Esse dinheiro que recebo, de minha precoce aposentadoria, não é nada se não alguns trocados que me permitem sobreviver. Viver, não, e sim sobreviver. Com o dinheiro contado, posso apenas pagar minhas contas e os meus remédios. Diferente dos outros homens, não posso me dar ao luxo de comprar uma vestimenta nova que seja de um valor alto. Eu não sou um desleixado, apenas preciso pensar bem onde gastarei cada moeda que tenho, pois é me certo que essa, por menor que seja, fará falta no final, já que embora seja pouco, o aluguel significa boa parte do que recebo. Por isso guardo dinheiro suficiente para pagá-lo. Não posso de forma alguma atrasá-lo, mesmo que para isso me falte para o resto. Isso seria uma péssima atitude perante a benevolência do velho Reiss, que me cobra um aluguel menor do que o devido, já que sabe de minha condição. Por esse motivo não posso, de forma alguma, lhe chatear com qualquer coisa. Não posso dar motivos para ser despejado, pois esse seria o meu fim.
— Eu entendo bem a sua situação, Ethan. Não lhe menosprezo por isso e você não é indiferente para mim. Você é assim como eu, na realidade, vejo coisas boas em você que não vejo nem em mim mesma.
— Gostaria de ser capaz de ver essas coisas, já que ninguém olha para mim mais do que eu mesmo.
— A diferença é que você foca apenas no que te desagrada.
— Se o desagradável é mais aparente e gritante do que o agradável...
—... Então algo deve ser feito para mudar isso. – Alexsandra interrompeu, terminando a frase do rapaz.
Ethan deu de ombros e terminou sua refeição.
— Reiss voltará essa semana, imagino eu.
— Então não seremos mais apenas nós dois.
— Não fique triste, Ethan. Você ainda pode me ver a todo momento. Eu sempre estou naquele lugar.
— Mas eu não estarei tanto assim.
— Você prega como Reiss é benevolente em lhe aceitar, mas sinto que você o evita a todo custo.
— Não o evito. Não propositalmente. Eu tento evitar ao máximo todos os que podem me aborrecer de alguma forma.
— E quem seriam estes? Há uma lista?
— Ora, qualquer pessoa pode me aborrecer, independente de ser próxima ou não. Só de ter contato com alguém, essa pessoa já está apta para me aborrecer de alguma forma.
— ...Ele acredita em você.
— Como?
— É verdade. Talvez você seja como um filho para ele. Por isso ele permite que você more ali pagando o que paga. Não diga que lhe contei, mas antes de sua viagem, ele me disse para cuidar de você.
— ...Por isso estamos aqui agora.
— Não. Estamos aqui para fazer as pazes. Você já é grande, não sou sua mãe. Estou lhe vendo todos os dias na biblioteca e aprecio sua companhia. É óbvio que ficaria de olho em você, pois é o que tenho feito nos últimos meses.
— O que é isso? Quer agradecimentos?
— Não...– Alexsandra pensou, então abaixou a cabeça um pouco e olhou para os lados, de forma sorrateira. Ela então se aproximou de Ethan e, com uma mão na lateral da boca, disse baixo, como se contasse um segredo. – Tem algo que podemos fazer. Mas antes de tudo: confias em mim?
— Sabe bem que sim. Com toda a minha vida.
— Pois bem... Vamos sair daqui sem pagar.
— Mas... Como? Alexs...
— Shhh, quieto, idiota. Não disse uma vez que faria qualquer coisa por mim? Pois bem, escute o que vamos fazer: Vamos levantar e caminhar sem levantar suspeitas até a saída. De lá estaremos livres. Viu os homens da recepção? Não há um forte entre eles. Se aguentar correr, então não entraremos em confusão. Não planejo voltar aqui novamente, então não faz mal algum ter esse tipo de adrenalina hoje..
— Alexsandra! Que absurdo está dizendo? Vamos pagar e ir embora! Se não tem dinheiro, deixe que pago a tua parte.
— Seu idiota! Posso pagar. Se está com medo é só dizer, assim também saberei que tudo que me disse é da boca para fora, e não faria nada por mim. Não passas de um homem comum.
Ethan cerrou os punhos e se levantou, pronto para pôr em ação o plano maléfico da mulher. Quando se levantou, olhou para ela severamente. Séria, a mulher concordou com a cabeça e se levantou, indo atrás dele. Ethan se sentiu extremamente nervoso enquanto caminhava até a saída. Ele pensou que Alexsandra estava ficando louca, mas faria de tudo para mostrar que sempre estaria com ela, mesmo que fosse preso. Esse seria um pequeno preço a se pagar por uma vida ao seu lado. Quanto mais se aproximava da porta, mais rápido caminhava, ao mesmo tempo em que tentava fazer isso sutilmente, assim caminhando de forma estranha e desengonçada. E seu coração batia mais forte.
"Espero que ela esteja logo atrás de mim.", Foi o que ele pensou.
Assim que colocou os pés na rua, para sua surpresa, Alexsandra não estava com ele. Pelo contrário, ela estava no balcão ao lado da recepção, cercada por três funcionários do local.
— Oh! Eles devem tê-la capturado!
Enquanto se indagava, Ethan viu um dos homens, o mais alto, olhar para fora, em sua direção, e sem se preocupar em ser sorrateiro, Ethan se jogou para o lado, saindo da visão da porta de vidro.
— O que estou fazendo...? Eles virão atrás de mim. Serei preso! Mas... Eu não estou fazendo isso por Alexsandra? Como posso ser covarde ao ponto de deixá-la para trás?! Se ela será presa, eu serei junto dela! Na verdade, entrarei lá e colocarei um ponto final nisso, pagando nossas contas.
Ethan respirou fundo e se acalmou um pouco, pois ainda tremia de nervoso, e entrou novamente naquele lugar. Apenas dois homens cercavam Alexsandra agora, mas quando Ethan chamou a atenção, eles abriram a roda.
— Querido! – Alexsandra brandou.– Está melhor? Eu estava elogiando estes cavalheiros por nos servirem tão bem!
— Alexsandra? – Ethan não estava entendendo.
— O que foi, meu amor? Ainda está se sentindo mal? Eu disse para eles que você teve um mal súbito, por isso saiu para pegar um ar. Veja, este homem foi até mesmo pegar um copo de água para você.
O homem mais alto, que havia visto Ethan do lado de fora, estava de volta, carregando um copo de água e uma cadeira em mãos.
— Senhor, por favor, sente-se e beba a água. Está se sentindo bem?
Ethan olhava assustado para todos, mas quando viu o sorriso maquiável no rosto de Alexsandra, pensou ter entendido o que havia acontecido. Ele havia caído em mais uma brincadeira da mulher.
— Estou me sentindo bem, obrigado. Vamos... Querida.
— Se estás melhor, podemos ir. Já acertei a conta, fique tranquilo. Até breve, senhores. Quem sabe um dia voltaremos.
Alexsandra pegou no braço de Ethan e os dois saíram dali. Assim que estavam a dois estabelecimentos de distância, Alexsandra se desabou a rir.
— Oh, seu idiota! Precisava ter visto a sua cara! Hahaha, não há nada melhor do que isso.
— Sua... Sua idiota! O que foi isso? Me explique, vamos!
— Eu apenas lhe enganei, seu tolo! Para acertar a conta, precisamos voltar naquele balcão. Enquanto tu saiu correndo, com os olhos arregalados, fui até lá e paguei a conta. Saiba que se fossemos mesmo sair sem pagar, você seria pego antes de sair daquele lugar. Você estava suando! E como estava desengolçado!
— Sua... Sua idiota! Como lhe odeio!
— Pare com esse mal humor, Ethan. Foi apenas uma brincadeira, querido.
Ethan ficou em silêncio. Os dois caminharam até uma praça.
— No que está pensando? Não está realmente chateado comigo, está?
— Não consigo ficar realmente chateado com você, Alexsandra. Estou apenas pensando... Na vida.
— O que lhe aborrece?
— A vida. Digo... A única coisa neste mundo que me faz esquecer tudo é o próprio álcool, castigo dos infernos! Ele me faz esquecer de todo o resto, já que afasta-me das dores. Quando bebo, espero não estar vivo no dia seguinte, mas isso continua acontecendo; minha alma, cansada, continua persistindo. Por isso volto a beber, lamentando a vida. Fatalmente quando me encontro sozinho em meu cubículo – ou até mesmo em minha mente –, e encaro a mim mesmo, timidamente agradeço por minha salvação, já que, quando estou sóbrio, temo a morte mais do que tudo. Para além da morte, temo partir e não deixar nada para trás; temo morrer incompreendido, e ser acreditado dessa forma por aqueles que me conheceram ao menos por alguns instantes. Morrer dessa forma, para mim, é pior do que continuar vivendo.
— Você acha que não deixaria nada para trás?
— O que eu tenho para deixar?
Alexsandra se aproximou de Ethan, que soou frio. Ela então levou o dedo indicador e o do meio até sua cabeça, e com os dois esticados, encostou na lateral de sua cabeça.
— A mente. Memórias. Se você morresse hoje, eu me lembraria de você. Pode ter certeza de que contaria sobre a história de agora a pouco para seus conhecidos, e estes se alegrariam em saber esse tipo de coisa. Veja, Ethan, você pode pensar que não tem nada, mas você sempre deixará memórias para aqueles que são próximos de você.
Ethan abaixou o olhar.
— Se isso não lhe é o bastante, você precisa trabalhar pelo que você quer deixar. Você sempre pode fazer algo a mais, pois essa é a sua vida. Crie novas aptidões, continue escrevendo! Eu não sei o que você almeja, mas estou aqui te apoiando.
— Eu agradeço por isso.
— Agora eu preciso voltar. Estou muito cansada. Mas... Obrigada por hoje, Ethan.
Alexsandra o abraçou rapidamente, então saiu dali sem dizer mais nada. Ethan ficou parado, incrédulo. Ele sempre se sentia confuso perante todas as situações de sua vida. A única certeza que ele sempre possuía era em relação a Alexsandra.
Quando voltou ao cubículo, a guarita do vigia estava vazia.
Quando se aproximou das escadas, Ethan avistou luz vinda da primeira casa do local, além da porta e janelas abertas. Aquilo só poderia significar algo: O velho Reiss havia voltado.
Ethan avistou a silhueta do vigia ali dentro, o que explicava o motivo da guarita estar vazia, e sentia-se feliz e cansado o bastante para não encarar o Sr. Reiss agora. Sorrateiramente foi até seu cubículo, trancando a porta e se jogando na cama, adormecendo rapidamente, torcendo para não ser incomodado.


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Notas finais do capítulo

Espero que estejam gostando da obra :)
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