Alma escrita por Taigo Leão


Capítulo 1
I




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Um rapaz estava dentro de seu cubículo revirando os pequenos armários, gavetas e qualquer tipo de mobília onde poderia caber um pequeno item esquecido. Não que as mobílias fossem muitas, mas havia se tornado uma tarefa exaustante.
Quando, sem êxito, se cansou de procurar, se pôs frente à única janela do cubículo, de onde observava vagamente o pouco movimento de pessoas pela rua.
O cubículo era pequeno, mas sua janela era o suficiente para que, através dela, a rua fosse enxergada em perfeitas condições. Também era o suficiente para que a luz do sol entrasse naquele pequeno lugar, que possuía um cheiro que remete claramente a algo velho.
Embora seu cubículo fosse o segundo daquele modesto edifício, a janela era o bastante para que, aqueles que estivessem passando pela calçada, os mais atentos, conseguissem notar aquela presença ali, imóvel, observando-os.
O homem estava inquieto. Algo se movia dentro dele, como se fosse o prenúncio de algo novo, mas essa inquietação lhe causava agonia, pois sua vida era monótona de forma que o homem vivia na esperança de que, a qualquer momento, algo animador e oportuno surgisse diante de si, como se fosse a oportunidade de sua vida. Ele pensava que a qualquer momento ela poderia surgir, mas também sabia que poderia morrer esperando por isso. Fantasiar dava cor a sua vida, embora não soubesse se as fantasias lhe faziam bem ou mal.
Essa agonia o esmagava, e, às vezes, parecia ser insensível.
O rapaz se sentia frustrado, pois ao menos gostaria de encontrar o item perdido.
Não pelo prazo, ele apenas gostaria de conseguir resolver uma única pendência em sua vida, seja ela qual for, e neste momento, essa parecia ser a mais apropriada, embora tenha se revelado uma tarefa cansativa e atordoante.
Disposto a refazer seus passos, o rapaz acreditava que poderia ter perdido nos últimos lugares que frequentou. Então, com passos apressados, saiu do cubículo e passou pela biblioteca, que ficava à esquina daquele quarteirão, bem próxima do modesto edifício onde morava, mas o rapaz não passava ali por algum motivo importante. Apenas passava, para que ela soubesse que ele estava por ali, como se devesse explicações ou como se fosse ser notado, e tão logo seguiu, até parar em um pequeno bar alguns quarteirões depois.
Ele entrou no bar olhando para todos à sua volta, desconfiado, mas, quando estes olhavam de volta, o rapaz desviava o olhar. Ele pediu uma aguardente para o atendente que estava atrás do balcão e deu uma olhada com calma por todo o local. Sem sucesso na busca, apenas saboreou amargamente um gole de aguardente e despejou o resto na pia por trás do balcão, deixando uma nota amassada como forma de pagamento e saindo dali da mesma forma que entrou, apressadamente.
O rapaz sentia uma inquietação a alguns dias, mas não sabia bem o que ela poderia significar. Ele a resumia a um prenúncio de algo, mas em certos momentos essa sensação era tão forte que ele temia o que poderia estar vindo. Além de tudo, o homem estava em um estado em que tudo lhe causava desconfiança e um certo medo: um barulho, uma carta, ou até mesmo uma pessoa. Tudo que fugisse de seus planos lhe tirava do sério, por isso vivia desconfiado, e também não era tão familiarizado com as relações humanas. Em suma, tentava ao máximo mantê-las nos momentos onde não há muita proximidade, dirigindo para os estranhos que interagiam com ele, nada além de respostas curtas e secas.
"Ultimamente tenho estado a sentir um desespero agoniante. Agora sinto que devo esperar por alguma coisa, como um milagre."
Ele continuou andando.
O rapaz procurava algo que não conseguia encontrar. Ele sabia que se realmente tivesse esquecido em um destes lugares, poderia significar o fim daquilo, pois os lugares que costumava frequentar não eram adequados para se esquecer um livro. Ele nem ao menos lia nesses lugares, apenas possuía um vício. Era tão aficionado pela leitura que sempre que podia, carregava um livro consigo. Ou ao bolso do sobretudo, ou debaixo do braço. Se não estivesse com um livro, sentia que havia esquecido algo e não conseguia parar de pensar nisso.
Para o rapaz a leitura sempre é válida de ser praticada, mas lugares barulhentos não são adequados para tal.
O prazo para devolver o livro estava acabando. Ele não queria pagar outra multa. Não pelo valor, mas sim porque não queria zangar Alexsandra novamente. A tempos ele havia deixado de seguir à risca as "leis" da biblioteca, mas da última vez em que passou do prazo para entregar um livro, foi orientado que, na próxima, não poderia mais deixar o local com qualquer livro, revista, ou até mesmo com uma única página ou pedaço de papel, como um castigo. No início levou o sermão em tom de brincadeira, mas não gostaria de arriscar, então continuou buscando, passando por mais duas tavernas, sem êxito algum. Ele associou a ansiedade que sentia à entrega do livro, e se lamentou por não conseguir encontrá-lo. Ele não sabia onde havia deixado, apenas sabia que não estava em seu cubículo.
Por alguma razão que não conseguia explicar, o homem sentia uma vontade inquietante de encontrá-lo.
Na próxima taverna que entrou, sentou-se em uma mesa suja aos fundos para descansar um pouco. Ali, agarrado às partes de seu sobretudo, observava vigorosamente todo o lugar, com a respiração ofegante. Ele havia caminhado muito, e para nada. Pensava que havia esquecido em uma dessas tavernas, mas não encontrou em nenhuma. A busca foi em vão.
Embora essa fosse a tarde de uma segunda-feira qualquer, havia movimento de pessoas naquela taverna, assim como nas outras que ele havia passado.
Em alguns lugares da cidade, como este, esse tipo de situação é comum. As tavernas sempre estão cheias de homens frustrados, enquanto os prédios comerciais estão cheios de homens vazios.
Um homem de aparência estranha, meio gordo e com o cabelo desgrenhado, se sentou à mesa, junto do rapaz. Ele carregava um livro de capa vermelha nas mãos.
— Você está aqui novamente. Veja, meu rapaz, meu nome é Ivan. Eu estou aqui todos os dias, vítima do álcool. E não pude deixar de notar que você também quase sempre está aqui, mas me chamou a atenção por um único motivo. Tu não bebe como a mim, mas passa tanto tempo aqui como qualquer bêbado deste bairro. Tua presença chamou minha atenção algumas vezes, pois sempre está em um lugar como este, lendo um livro como esse que carrego em mãos. Se lhe parece familiar, há um motivo para isso. É porque, meu caro, tu se esqueceu dele na última vez em que esteve aqui, de forma que eu não pude deixar de notar, então para responder minhas indagações, peguei-o e tentei ler um pouco, pois em minha visão, este livro é para ti como o álcool é para mim. Eu precisava conhecê-lo.
O rapaz ficou extremamente irritado, mas, também, aliviado. Ele havia reencontrado o livro, mas não imaginava que havia sido roubado por alguém.
— Então tu roubou meu livro, me deixando em um grande estado de inquietação e desassossego. Eu me recordo, apenas não aceitava o fato de tê-lo esquecido. Voltei para buscá-lo, mas ele não estava mais aqui. Em casa também não o encontrei. Pensei até mesmo que estava ficando louco, mas na realidade, fui enganado. Conheço bem o bairro em que vivo, mas não sabia que existiam ladrões de livros.
— Eu não lhe roubei! Na verdade... Roubei... Mas estou lhe devolvendo! Roubei apenas para provar desta fonte! Roubei porque tu, meu caro, me parece um homem culto, de uma forma que me agradaria muito também ser. Eu precisava ler, isso é verdade. Então o peguei emprestado, antes que algum outro bêbado pudesse colocar as mãos nele. Sabe-se lá o que fariam com este exemplar. Talvez você nunca mais o veria.
— Isso não importa. Apenas me devolva. Se quiser um exemplar, vá até a biblioteca.
— Tu vives pela região, eu presumo.
— Sim. Moro aqui perto. Agora preciso ir, por favor, devolva meu livro.
O homem pegou o livro das mãos do bêbado e se levantou.
—...Ao menos valeu a pena? Digo, a leitura. Valeu a pena ter roubado meu livro?
O homem bêbado baixou a cabeça, envergonhado.
— Já fazem três dias... Não consigo ler muito bem, então pedi à minha filha que me ajudasse a entender todas essas palavras, já que, para mim, são muito complicadas. Minha infelicidade foi a falta de tempo, já que ela estava muito ocupada, preferindo passar seu tempo ocioso com seus próprios afazeres da escola, ao invés de ajudar este bêbado tolo.
O rapaz cerrou os punhos enquanto disse que entendia a situação do bêbado. Para ele havia uma certa função social na literatura. Através dela, qualquer ser pode aprender mais. Tanto para edificar a si próprio, quanto para uma conversa. Através da literatura podemos nos enturmar, informar e fantasiar de forma mais precisa e ampla, mas alguns fatores nos impedem de adquirir esse tipo de conhecimento. Porém, se uma pessoa sente a vontade de adquirir esse conhecimento, ela não deve ser privada disso.
— Veja... Eu não precisei aprender a ler para ser alguém na vida. Comecei a trabalhar muito cedo, de forma que tive que abandonar a escola. Isso não foi de todo mal, o que sou hoje, e a família que tenho, apenas tenho porque... Trabalhei duro.
— Você pode contratar um professor particular para lhe ensinar a ler, não há mal algum nisso. Nunca é tarde para se aprender alguma coisa.
O bêbado balançou a cabeça e nada mais disse. O rapaz logo saiu dali apressadamente, antes que o bêbado pudico alimentasse ainda mais o diálogo.
O rapaz gostava da solidão, mas estranhamente, às vezes, sentia sede de convívio. Por isso lia nas tavernas, para pelo menos estar a respirar em um novo ambiente, se colocando em situações que lhe pudessem vir a ser desconfortáveis. Manter uma conversa tão longa com algum desconhecido não era de seu agrado. Ao menos havia recuperado o livro.
Com passos largos ele voltou para o edifício no qual vivia, onde se enfiou no pequeno e modesto cubículo.
Quase sempre ele desejava ser um fantasma, mas em alguns dias sua própria mente lhe sabotava, sentindo uma necessidade de interagir com outros humanos, deixando a vida de fantasma para trás. Após voltar com o livro em mãos, ele amaldiçoou o dia em que desejou ter contato humano, pois se não tivesse saído de casa, não teria perdido o livro.
Ele arrumou toda a bagunça que havia feito no quarto, aliviado por ter recuperado o livro.
Abruptamente lhe veio algo à mente. O rapaz se recordou de que dia era esse: em poucos dias deveria pagar o aluguel.
O homem pegou sua carteira e jogou tudo que havia dentro dela em cima de sua cama.
Todas as suas economias se limitavam a algumas notas e moedas de ouro, totalizando valor suficiente para pagar o aluguel e se alimentar, racionando bem os mantimentos, mas não iria sobrar mais nada.
Em sua visão, não seria tão miserável se possuísse mais dinheiro. A pobreza o cansava; era como um crime, algo insolente. O dinheiro era o martírio, porém, talvez essa fosse apenas sua imaginação, pois às vezes também se imaginava pobre de alma, por isso lia tanto, para tentar curar-se.
— Veja só, idiota, a situação em que se encontra! Logo terás que recorrer a mais uma de suas humilhações, a fim de conseguir mais dinheiro para sobreviver no próximo mês. Até quando continuará nesta vida miserável?!
O questionamento veio para si de supetão, de uma forma amarga que até mesmo assustou o rapaz, mas não havia mais ninguém ali. Era apenas sua própria mente que conversava consigo.
Não havia muito o que fazer agora. Às vezes se sentia tão cansado que não podia lutar para melhorar ao menos um pouco sua própria vida. Ao contrário disso, vencido pelo cansaço, ele se conformava com sua situação.
Com medo de ser importunado por mais alguns fantasmas, o rapaz pegou o livro e saiu do cubículo, rumo a biblioteca.


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