O adeus do Texugo á Serpente escrita por ixkalopsia, Indignado Secreto de Natal


Capítulo 1
O adeus do Texugo á Serpente


Notas iniciais do capítulo

História escrita para a minha amiga secreta do Indignado Secreto de Natal, Gabi (ezra). Espero que goste do presente! Boa leitura.



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Se um homem lançou um feitiço a outro homem e não se justificar, deve mergulhar no rio sagrado. Se ele se afogar, o acusador tomará posse de sua casa, mas se o rio declará-lo inocente, o acusador será morto e aquele que mergulhou deve tomar posse de sua casa. ❞

A citação no Código de Hamurabi, o primeiro código de leis da história, que vigorou no primeiro Império Babilônico, é o mais antigo indício do preconceito para com tudo aquilo considerado sobrenatural.

Por séculos, o conceito de “bruxaria” foi um constante sinônimo de artes do diabo e, portanto, considerado perigoso. Todos aqueles com aptidões mágicas foram praticamente  sempre forçados a viver em sigilo. Os poucos que se atreveram a aparecer perante os sem magia foram perseguidos até à morte. Durante o passar do tempo, os seres mágicos foram se tornando mitos, lendas e meros contos passados de geração em geração.

Em North Berwick, na Escócia, foi então estabelecido um dos maiores pontos de encontro entre bruxos e bruxas durante a idade média. Foi nessa localidade, numa pequena e aconchegante taberna denominada “O Texugo”, que se conheceram, pela primeira vez, quatro figuras cujos nomes iriam prevalecer eternamente na história.

O encontro teve lugar num dia chuvoso de inverno no ano de 978.

Mal o sol se tinha posto, e a taberna já estava cheia de clientes, todos a tentar fugir da chuva e do vento, ao ponto de nem sequer um niffler conseguir entrar ali tal era o tamanho da multidão. No balcão, um homem de barba emaranhada e rosto vermelho servia o vinho, sempre sorridente, apesar de mal conseguir ver a cara das pessoas devido ao fumo do tabaco e das velas. Uma fila interminável de feiticeiros gritava para serem atendidos, e o coitado do senhor não conseguia dar conta de tudo sozinho. Infelizmente, já tinha perdido a esposa de vista após ela sair pela sala com diversas travessas de comida e bebida a flutuarem atrás de si.

— Helguinha, minha querida, vem aqui um instante! — Limpou a cara suada num pano e, com a ajuda da varinha, encheu mais de vinte copos de vinho, que logo desapareceram num piscar de olhos. — Helguinha!

— Pelas barbas sujas de Merlin mas qu… — Por detrás do velho senhor, surgiu da cozinha uma bruxa corpulenta e de cara igualmente corada. Trazia o cabelo castanho solto e o vestido amarelo simples era coberto por um avental, este já manchado do que o senhor suspeitava ser a cobertura da famosa tarte de abóbora da filha. — Nay, is’t assim não pode ser pai!

A mulher puxou do bolso do avental a varinha e apontou para a porta que dava acesso à despensa. A parede desapareceu num instante, tal como a porta e as prateleiras do interior. A bruxa fez flutuar toda a comida ali armazenada em direção à cozinha e transfigurou os barris de bebida, já vazios, em mesas redondas e cadeiras suficientes para sentar quase todos os que estavam de pé a tapar a entrada. 

— Oh, Helguinha, você e a sua mãe são a minha salvação! — O velho encheu um copo de vinho para si.

— Eu sei pai, eu sei. Descanse um pouquinho que eu vou ajudar a mamãe. — Da cozinha, veio a flutuar uma tarte de abóbora inteira, que pousou no balcão em frente ao senhor.

Helga passeou sorridente pelas mesas, cumprimentando alguns rostos conhecidos como o experiente curandeiro da aldeia, Finnian Abbott, acompanhado da mulher, a senhora Agnes. Falou por breves momentos com a vizinha, a caridosa Mabel Weasley. Até mesmo falou ao isolado Armand Malfoy, sempre austero e com um ar de quem preferia estar em qualquer outro lugar. Com certeza estaria, se não fosse pela bonita senhora à sua frente.

— Boa noite para si, meu caro, o que lhe posso trazer? — Questionou a um feiticeiro que se sentava sozinho numa mesa na parte mais lúgubre da taberna. Não era um sujeito que reconhecia de outras paragens. Muito provavelmente seria um homem que ali parou só de passagem, como tantos outros que procuravam melhores lugares. As suas vestes eram de tecido bom e tinha alguns adornos, como um medalhão de serpente ao pescoço e um anel com aspecto pesado na mão esquerda. Helga pensou que o cavalheiro se parecia com um comerciante rico.

— Um whisky de fogo e uma sopa de ervilhas. — O sujeito falou com os olhos pousados num pergaminho à sua frente.

— Boa escolha! Os Hufflepuff possuem a melhor receita de sopa de ervilha da Grã-Bretanha! Vai querer mais alguma coisa, senhor…? — Olhou o desconhecido com curiosidade.

O feiticeiro desviou o olhar das letras para a bela senhora de amarelo.

— Slytherin. Salazar Slytherin.

Numa mesa ao lado, uma outra senhora chorava com a cara escondida pelas mãos. 

— Oh, Rowena, não é preciso você ficar assim! Aquele homem não te merecia! — Helena tentava confortar a irmã mais nova, que chorava copiosamente desde aquela manhã, em que fora abandonada pelo noivo por outra mulher, isto a meros meses do casamento de sonho que planejava há anos.

— Mas… mas eu não entendo! Me diga, Helena, o que é que ela tem que eu não tenho? — O longo cabelo ébano escorria pelas costas e ia se fixando à cara salgada de lágrimas.

— Um cérebro não é com certeza. Você é muito mais bonita e infinitas vezes mais inteligente do que aquela oferecida.

Helena suspirou quando a irmã voltou ao seu pranto. Na mesa do lado, um senhor tinha acabado de se sentar com o misterioso homem do colar de serpente. Ele olhava a cena com certo pesar e não resistiu em esticar o pescoço para sussurrar para a mais velha:

— A senhora está bem? — Apontou para Rowena, que agora tinha a cara colada ao tampo da mesa e os seus soluços eram preocupantes.

— Um coração partido é difícil ser reparado, senhor.

Com a mão que não afagava as costas de Rowena, pediu por mais cervejas quando os outros copos vazios desapareceram da mesa com um menear de varinha da bruxa sorridente que por ali passou.

— Oh, que tristeza. Já não existem cavalheiros como aqueles do meu tempo. — O senhor  parecia ser um homem forte, cujo cabelo castanho era quase tão comprido como a barba que caia por cima de belas vestes vermelhas. Na cabeça, trazia um chapéu pontudo que se mexia como uma folha ao vento cada vez que o senhor fazia um breve movimento.

— Prefiro acreditar que eles existam e que apenas estejam escondidos. — Se apercebeu de que a irmã parecia ter adormecido sobre as longas mangas do vestido azul. E ficou aliviada por não a ouvir chorar mais.

— Precisa de ajuda para levar a senhora até casa? 

— É muito gentil da sua parte, mas não vai ser necessário. Irei aguardar um pouco para que esta horrível chuva passe, e Rowena acorde, para irmos até ao ponto de aparatação mais próximo. Mas agradeço imenso senhor… Desculpe, não perguntei o seu nome sequer!

— Godric Gryffindor ao seu dispor, senhora. — Tirou-lhe o chapéu em saudação. 

— Muito gosto. O meu nome é Helena, e essa é a minha irmã mais nova, Rowena Raven…

A apresentação foi interrompida pelo abrir busco da porta de entrada, por onde apareceram dois jovens feiticeiros, que não deveriam ter mais de quinze anos. Tinham as roupas ensopadas em água e expressões aterrorizadas nos rostos. Um deles tinha um corte fundo numa mão trêmula, que mal conseguia segurar a varinha.

— É a escola, estão a atacar a escola! Ajuda!

Não foi preciso mais para quase todos os presentes naquela taberna se levantarem em fúria, brandindo as próprias varinhas antes de, um a um, irem sumindo pela porta de entrada, não mais se importando com a chuva. A multidão desceu o vale até uma construção de pedra, que servia como uma espécie de escola local para jovens bruxas e feiticeiros, construída há menos de cinco anos quando a necessidade surgiu.

Avistaram primeiro as chamas, que já tomavam conta de toda a construção. À volta, uma multidão de pessoas sem magia brandia tochas acesas e alguns dos homens até mesmo apontavam facas e espadas a um aterrorizado grupo de crianças, que se tentavam proteger umas às outras com os poucos feitiços que conheciam.

— Assassinos! Monstros! — Quem gritava era o senhor Gryffindor, que corria mais depressa que todos os outros, com os olhos a queimar em fúria perante a injustiça que presenciava. — Covardes, todos vocês, a atacar crianças! Petrificus Totalus!

Todos os homens que rodeavam o grupo de crianças caíram como corpos congelados de uma única vez. A senhora que antes chorava pelo seu amor perdido agora corria em direção às crianças aterrorizadas, mais desperta que nunca.

— Há alguém ferido? — Perguntou com urgência e uma menina estendeu o braço onde se podia ver o osso à mostra em uma lesão extensa. 

Enfurecida, Rowena puxou da varinha e pegou com delicadeza no braço da criança, curando-o em segundos com um feitiço da própria autoria. Havia mais feridos, em especial jovens feiticeiros mais velhos que adquiriram algumas queimaduras ao tentar retirar os mais novos do interior da escola. Quando se certificou de que todos estavam curados, viu ao seu lado uma senhora de amarelo.

— Vamos sair dessa chuva crianças, venham todos para dentro comer e beber algo quentinho! — Helga levou todas as crianças para dentro do estabelecimento enquanto a multidão de bruxas e feiticeiros castigava os homens e mulheres que provocaram tal crueldade.

O homem do medalhão de serpente somente observava toda aquela situação com uma expressão de puro nojo perante a ousadia daqueles meros humanos em atacar a comunidade mágica. Deixou de olhar aquela cena quando a cativante senhora sorridente voltou, trazendo consigo o grupo de crianças com ares assustados. Entrou ainda uma outra senhora, de cabelos longos e vestido cor do mar, que ainda questionava se estavam mesmo todos bem depois do horror que tiveram de viver.

Horas depois, já a noite ia longa quando a última criança saiu acompanhada de um familiar, de volta para a segurança do respectivo lar. Pouco depois, Godric Gryffindor entrou de rompante no espaço. Este estaria quase vazio se não fosse pelo velho senhor, agora adormecido com a cabeça em cima do balcão manchado, da esposa, que estava sentada num barril de cerveja, com os cabelos acinzentados a voar em diversas direções, da senhora Helga Hufflepuff, que se distraía no preparo de bebidas quentes para todos e na arrumação da confusão deixada para trás com a ajuda das duas irmãs Ravenclaw,  as senhoras Rowena e Helena e, surpreendentemente, do misterioso senhor Salazar, sentado na mesma mesa de antes com um ar pensativo.

— Covardes… — Murmurava quase febril o senhor Godric. — Esses sem magia não possuem qualquer respeito ou honra! Onde já se viu, atacar crianças inocentes!

— É  a vida que levamos, meu caro senhor. Sempre a fugir, sempre a nos escondermos pela nossa mera existência ser considerada ameaça para os seres não mágicos. Nem as nossas crianças conseguem escapar da perseguição… — Falou Helena com lágrimas nos olhos claros. 

— Pensava que a escola estava protegida. — Falou a velha senhora Hufflepuff com ar derrotado.

— Infelizmente, todas essas proteções não foram suficientes, e a escola também não tinha espaço e nem recursos que bastem  para acolher todas as crianças que querem aprender magia de forma segura. — Disse a senhora Helga ao distribuir por todos os ocupantes copos de cerveja amanteigada, chocolate quente e chá de menta.

— Mas devia existir! Um local onde as nossas crianças pudessem estar a salvo de quem as persegue, um espaço protegido e longe da vista de todos. Uma escola de magia e um refúgio para todos que precisam dele. — Rowena aquecia as mãos geladas no copo de chá e os rastros das lágrimas eram visíveis nas bochechas pálidas.

Ao seu lado, o senhor Godric concordou.

— Devíamos construir essa escola. — Salazar Slytherin assustou todos os presentes quando falou abruptamente. Tinha estado tão calado antes que ninguém sequer se lembrava de que o homem ainda ali estava depois do ocorrido.

— Oh, senhor Salazar, a ideia é bastante apelativa mas… acha mesmo que conseguiríamos construir e manter tal construção? A salvo dos sem magia e ainda prometer um lar seguro e uma educação favorável às crianças do mundo mágico? — Inquiriu Helga, com os olhos cansados, querendo regressar a casa o mais depressa possível. 

Slytherin começou a caminhar pelo local.

— Eu sou Salazar Slytherin, e venho de uma família inteiramente de sangue mágico. Esse é o meu amigo, Godric Gryffindor, o melhor duelista já antes visto na Grã-Bretanha. Senhora Rowena Ravenclaw, ouvi muito sobre si e de como é a mais brilhante bruxa de que se tem conhecimento, de mente afiada e infinita sabedoria. — Por fim, levou o olhar para a mulher de amarelo, que lhe sorria com leveza e um pouco de vergonha por ter todos aqueles olhares penetrantes sobre a sua pessoa. — Senhora Helga Hufflepuff, cujo sorriso e boa disposição escondem uma bruxa excepcional, que é creditada com a autoria de diversos encantamentos de desaparecimento e camuflagem. Digam, se não formos nós a criar esta escola, quem será?

E então, daquele encontro, surgiu uma ideia e uma profunda amizade entre as duas bruxas e os dois feiticeiros. Anos se passaram até que, nas terras altas escocesas, começasse a construção de um enorme castelo a que chamaram de Hogwarts. 

Com o passar do tempo, a escola foi se tornando numa estrutura magnífica, com altas torres com vista para as belas terras da Escócia, rodeada de um brilhante lago e de uma misteriosa floresta. Hogwarts foi visualizada para ser escola, casa e até fortaleza, isto após Godric muito insistir em adicionar várias passagens e salas secretas que deveriam ser usadas em caso de ataque. Salazar concordou de imediato com a ideia e ajudou o velho amigo a planear os melhores pontos estratégicos para a construção das mesmas. 

Durante o processo de construção, a maior questão era precisamente a constante segurança do castelo e dos alunos. Esse problema levou Godric a insistir nos mais absurdos métodos. Até mesmo chegou a pensar num dragão como guardião dos terrenos de Hogwarts. Claro que a ideia foi descartada logo de seguida, após serem precisos apagar demasiados fogos. No entanto, esse acontecimento levou os fundadores a criar o lema da escola: “Draco Dormiens Nunquam Titillandus”, “Nunca faça cócegas em um dragão adormecido”. Acabou por ser Rowena a responsável por todos os feitiços de proteção usados em volta do castelo, tornando o espaço em nada mais que uma velha construção aos olhos dos sem magia que, sempre que chegassem demasiado perto, seriam acometidos por uma vontade súbita de ir a qualquer outro lado.

Já Helga tinha como maior preocupação o bem estar dos alunos que iriam não só frequentar a escola, mas também a chamar de casa por sete anos das suas vidas. Portanto, tomou como responsabilidade a contratação de elfos domésticos para assumirem empregos nas grandes cozinhas de Hogwarts. Durante semanas, Helga instruiu as criaturas em como preparar as suas receitas, que assegurou que sempre iriam trazer o conforto de casa a quem as provasse. 

— E não se podem esquecer de que a massa tem de cozer por… — A sua fala foi interrompida pela figura que entrou pela passagem do quadro da taça de frutas. O feiticeiro ficou parado no canto da sala e esperou que Helga terminasse de dar as instruções aos ansiosos elfos. — Oh, Slytherin, que surpresa! Nunca esperei o ver andar todo o caminho até às cozinhas. Há algo errado? 

Apesar de estarem todos bastante otimistas com a abertura da escola, o medo estava também sempre presente, lado a lado com a expectativa. Um mero incidente seria o bastante para atrasar todos os seus planos futuros.

— Não, não houve qualquer incidente. Godric está a documentar todas as salas do castelo e Rowena ainda está a preparar as aulas. Já está quase tudo pronto para a abertura de Hogwarts este setembro. — Salazar, sempre solene, andava ao mesmo passo calmo de Helga. Notou que ela usava o cabelo castanho num simples, mas elegante, penteado que combinou na perfeição com o vestido amarelo forte, este adornado com padrões de folhas e outros elementos da natureza e um bordado simples cobria as mangas longas. — E penso que já nos conhecemos há tempo suficiente, senhora Helga, para poder me tratar pelo meu primeiro nome.

A senhora Hufflepuff não conseguiu evitar o tom rosado que lhe cobriu a face quente. Desde que os quatro começaram a passar mais tempo juntos, por conta do planejamento de Hogwarts, que Helga conhecia Salazar Slytherin como sendo um homem misterioso, bastante quieto e, tinha de admitir, possuidor de um certo ar aterrorizador que lhe causava um leve arrepio sempre que ele estava por perto. 

Ela possuía uma forte recordação do dia em que tinham ido juntos investigar o que intitularam de Floresta Proibida, quando tomou o maior susto da vida. Já era quase noite e, sendo sincera, Helga já nem se lembrava do caminho de volta para a segurança dos terrenos da escola. E então, quando pensou que ambos estavam completamente perdidos naquela imensidão de rochas e raízes, ouviu Salazar sussurrar de uma forma estranha que lhe causou preocupação. 

— Senhor Slytherin, está tudo bem consigo…? — Mas o feiticeiro apenas levou uma mão aos lábios e pediu por silêncio.  

Ouviram o vento soprar as folhas e o barulho de alguma criatura a andar por perto. No entanto, o que chamou a atenção de Helga foi o som de algo a rastejar à sua volta. A coitada da bruxa paralisou quando olhou com horror para, não apenas uma, mas várias cobras a rastejar à volta do par, como numa dança exótica, hipnotizadas pelo seu mestre. Claro que ela não teve outra alternativa senão gritar alto antes de agarrar com toda a sua força as mangas das vestes de Salazar, que parecia completamente à vontade no meio de todos aqueles répteis.

— Não se preocupe, senhora Helga. Elas não lhe farão mal enquanto eu estiver ao seu lado, pois todas elas obedecerão aos meus comandos.

Helga, realmente, pode observar que todas as cobras apenas andavam em círculos à sua volta, mas que nenhuma parecia que iria atacar. Um pouco mais tranquila, soltou as vestes de homem, envergonhada pela sua atitude. 

— Eu não entendo, mas como é que fez elas…

— Porque eu sou um ofidioglota, senhora Helga, possuo a habilidade de falar a língua das cobras. — Explicou com paciência e olhou para a bruxa, que agora observava com fascinação os animais a rastejar pelo chão da floresta.

— Então… é por essa razão que escolheu a serpente como seu símbolo?

— Precisamente, tal como a Helga escolheu o texugo, o símbolo da sua família. Godric escolheu o leão, pois essa é a forma que possui enquanto Animagus, e Rowena escolheu a águia, que simboliza a inteligência e a sabedoria. Sabe, todos que pertencem à família Slytherin possuem esta habilidade, é algo que nos está no sangue. Por esse motivo, sempre tomei a serpente como a minha marca.

Após aquele estranho momento, Helga olhou com um misto de medo e incredulidade quando Salazar voltou a falar com as cobras em sussurros que ela nunca iria conseguir entender. E então ele comandou as cobras para que lhes mostrassem a saída da floresta. Desde então, Helga sempre possuía um enrolar das sensações de fascínio, medo e curiosidade quando estava na companhia daquele solene feiticeiro que, apesar da sua aura pesada tornar o ar escasso em cada sala em que esteja, sempre seria alguém para quem ela olharia com certa admiração.

No presente momento, o par tinha saído da cozinha e caminhavam pelos corredores vazios em silêncio. Helga tinha curiosidade em saber porque razão havia Salazar trilhado todo o percurso até às cozinhas, local que ele achava indigno do seu estatuto. Contudo, as suas dúvidas cessaram quando entraram no salão principal. Este estava vazio, tirando a grande mesa com quatro cadeiras extremamente decoradas na extremidade oposta. Apenas restavam colocar as mesas dos alunos e também aquele espaço estaria terminado para receber os jovens.

— Peço que aguarde aqui um momento, por favor. — E então Slytherin desapareceu por uma das pequenas portas posicionadas atrás da grande mesa central.

Nem minutos haviam se passado quando o feiticeiro voltou com uma caixa de madeira adornada em dourado. Apesar de ser de estatuto médio, não parecia pesada, e Helga ficou ainda mais curiosa para saber o que estava ali dentro.

— Senhor Salazar… — A sua trêmula fala foi prontamente interrompida.

— Feliz aniversário, senhora Helga Hufflepuff.

E então, com um toque da varinha de Slytherin, a caixa abriu como as pétalas de uma flor abrem ao sol. A bruxa contemplou um cálice dourado com duas asas detalhadas de cada lado e um texugo gravado na sua superfície. Helga pegou no cálice, encantada com aquele belo presente.

— Espero que faça bom uso dele em todos os maravilhosos jantares que teremos neste salão. — A cara da bruxa ficou vermelha quando Salazar pegou uma das suas mãos, onde depositou um beijo casto, como um perfeito cavalheiro.

— Oh, senhor Salazar, eu nem sei como lhe agradecer este belíssimo presente!

— Agradeça continuando a ser a bruxa incrível que é.

O desenrolar da história a partir daquele preciso momento poderia ter sido algo maravilhoso. Mas, como tudo na vida, os bons tempos chegam ao fim demasiado rápido. E, o precoce fim daquele breve conto, terminou com uma discussão.

Hogwarts foi inaugurada no primeiro de setembro do ano 990 e, poucos dias depois de receberem alunos de toda a Europa, pela primeira vez, os quatro fundadores entraram em desacordo. 

Semanas antes da abertura da escola, os quatro acordaram que os alunos seriam divididos por quatro casas, para onde seriam selecionados utilizando o chapéu, agora encantado, de Godric. As sementes da discórdia começaram a ser plantadas quando três dos fundadores começaram a insistir para que os alunos fossem selecionados para as respectivas casas dos seus nomes de acordo com um conjunto de características específicas que cada um queria nos seus pupilos.

— Ensinaremos os de nomes ilustres por grandes feitos! — Decretou Godric Gryffindor, que sempre prezou por coragem, determinação e ousadia.

— O espírito sem limites é o maior tesouro do homem! — Retrucou Rowena Ravenclaw, que ansiava ensinar crianças com espíritos inteligentes e criativos mais que tudo.

— Ensinaremos só os da mais pura ancestralidade! — Falou Salazar Slytherin, cujo preconceito para com todos os sem magia e seus descendentes se tornava mais visível a cada dia passado.

No meio da discórdia, Helga bateu a mão na mesa e falou entredentes.

— Ensinarei todos, e os tratarei com igualdade!

E, partilhando de uma tênue paz entre os quatro fundadores, Hogwarts foi inaugurada com um sucesso que não durou nem um único ano letivo antes que, numa noite de inverno, Salazar reunisse os seus colegas para anunciar que iria deixar Hogwarts.

— Meus caros colegas, penso que, com o passar dos anos, as nossas visões seguiram caminhos diferentes ou, talvez, nunca foram realmente as mesmas e deveríamos ter esclarecido os nossos ideais antes de seguirmos, juntos, com o projeto de fundar Hogwarts. Portanto, deixo agora a minha opinião clara como a água. Eu não irei tolerar alunos que possuam o sangue sujo daqueles imundos sem magia. Afinal, porque haveria eu ensinar os filhos daqueles que, por anos, perseguem e queimam a nossa espécie? Digo então que mantenho a minha crença e não irei admitir sangues de lama debaixo deste teto!

— Por Merlin, Salazar! O que você está dizendo? Crianças são crianças! E todas aquelas que possuem magia devem ser ensinadas, independente do sangue que carregam! — Ripostou Helga com mágoa, não crendo que o homem que antes fora tão gentil consigo pudesse falar tais atrocidades à sua frente.

— Concordo com a senhora Helga, meu velho amigo. Aliás, se continuar a manter essas ideias retrógradas, de que as crianças devam pagar pelos seus ancestrais, penso que não poderei continuar a lhe chamar de tal, por mais pesar que eu tenha. — Disse Godric, que tinha um ar cansado.

— O meu voto está com Gryffindor e Hufflepuff, Salazar. Não irei recusar nenhuma criança que queira aprender magia. Isso sim, vai contra tudo aquilo que acredito, o negar de qualquer conhecimento. — Finalizou Rowena com ar decidido. 

— Então… parece que chegamos ao final, meus caros colegas. — Salazar Slytherin levantou-se de onde antes estava sentado. — Não consigo, e nunca irei, mudar as minhas crenças. Por isso, decidi ir embora, mesmo contra a minha vontade, dando as costas a tudo aquilo que vos ajudei a construir. E digo mais, se não fosse por mim, nunca teriam seguido em frente com a escola sozinhos. A minha memória nunca irá desaparecer de Hogwarts, uma vez que, algures neste castelo, construí o meu próprio templo, uma câmara secreta que marca a minha influência neste lugar, e garanto que nenhum de vocês a irá encontrar e, muito menos, destruir.

Nenhum dos fundadores proferiu outra palavra. Apenas olharam o velho conhecido sair pelos corredores escuros, cada um com expressões diferentes nas faces exaustas. Contudo, Helga não conseguiu ficar sentada, ainda recordada da gentileza que Salazar havia tido consigo outrora, como quando a protegeu na floresta e lhe ofereceu a taça dourada que ainda guardava com carinho. Com esses momentos a lhe passar pela memória, Helga segurou as saias e correu pelos infinitos corredores até alcançar os grandes portões que marcavam a entrada de Hogwarts. Avistou Salazar quase na saída e correu ainda mais depressa, antes que o feiticeiro conseguisse chegar longe o suficiente para aparatar.

— Salazar! Por favor, espere, Salazar! — Claro que ele escutou a bruxa sem dificuldade, uma vez que era tarde e todos os alunos e restantes professores já estariam a dormir, seguros e aconchegados dentro do enorme castelo.

— O que faz aqui, Helga? Devia estar no castelo. — A cara dele portava uma expressão fria de indiferença. Ele trajava lindas vestes verdes adornadas em prata, sempre com o medalhão de serpente ao pescoço.

— Como você também deveria estar, se não fossem essas suas… essas suas ideias distorcidas. — Respirava com sofreguidão. Culpou a corrida desde o castelo mas, por dentro, sentia que o coração lhe esmagava os pulmões. Estava cada vez mais difícil respirar e os seus olhos claros ameaçavam chorar a qualquer instante, tal era o sentimento de perda que já sentia.

— Para si, e para os outros fundadores, podem ser distorcidas, mas nenhum de vocês vê o que eu vejo. Eu acredito nas minhas crenças e sei que os sangues de lama são a desgraça do nosso patrimônio, da nossa herança mágica. Não irei voltar atrás nos meus pensamentos. Por ninguém, Helga. — E então, Salazar virou as costas à bonita bruxa de amarelo, achando estranho ver as lágrimas naquele rosto que era sempre sorridente, feliz.

— Nunca pensei lhe dizer adeus, senhor Salazar. E muito menos desta horrível maneira. — A senhora perdeu a luta com as lágrimas, que agora escorriam livres pelas bochechas frias.

— É esse o seu problema, Helga Hufflepuff, acredita sempre no melhor das pessoas, em finais felizes. Por vezes, eles simplesmente não existem.

Então, Salazar avançou alguns passos e encostou as mãos frias na face gelada da bruxa. Sem aviso, tocou os seus lábios nos dela com leveza. Helga pensou que aquele momento deveria ser errado, que deveria se afastar daquele feiticeiro. Mas o que fez não foi afastar o homem de quem ainda possuía a memória da sua gentileza. Apenas fechou os olhos e aproveitou aquele breve instante, como se pudesse durar pela eternidade.

Quando ele se afastou, Helga jurou que a noite parecia mais fria, e que a chuva que tinha começado a cair eram as lágrimas que não conseguia mais chorar.

— Adeus, Helga. Até qualquer dia.

— Adeus, Salazar.

Ela não desviou o olhar quando ele desaparatou para longe de si. Fechou os olhos e o pensamento que teve foi de que aquele parecia o fim de uma história que nem conseguiu ter um início, somente uma despedida.

O adeus do texugo à serpente.


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Notas finais do capítulo

Feliz natal e bom ano novo! :)



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