Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 7
Capítulo VII




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808312/chapter/7

Os raios solares escapavam tímidos por entre as nuvens e a única forma de se esquentar naquela manhã fria era estar sob o sol. Saul e Tibério podiam se considerar sortudos por poderem estar nessa posição. 

O sol também iluminava o pano marrom puído que cobria algumas garrafas de vinho na parte de trás da carroça. Para infortúnio de Tremonti, os negócios não iam nada bem, independente de em qual sentido fosse. A cada dia que passava mais vinhas morriam e agora o vinho começava a adquirir um gosto amargo. Não havia nada de errado com a produção, ela permanecia a mesma ao longo de todas aquelas décadas, quando quem ainda administrava o vinhedo era seu pai, contudo, tinha suas teorias de qual poderia ser a causa para tudo aquilo. E, ao observar a discrepância que o matagal que os cercava na estrada parecia ter com aquele ao redor de sua propriedade, talvez não estivesse errado.

O mal se aproximava a cada dia mais e a corda ao redor de seu pescoço tornava-se cada vez mais apertada, o que ainda possuía de energia mágica o permitia sentir isso. E nenhuma solução para conter a Mãe Terra se formava no horizonte.

― Sabe, Saul, eu ainda acho um tanto perigoso estarmos cercados por tantos mundanos. ― Tibério puxou conversa de repente, fazendo-o piscar algumas vezes para retornar a mente para onde estavam, pois até então somente guiava os cavalos de forma mecânica.

Para sua surpresa ― e desagrado ― o Sr. Salazarte decidira acompanhá-lo em sua ida à cidade, assim que o ouviu informar seus planos para a esposa. O melhor mesmo teria sido sair sem nem avisar e provavelmente o faria da próxima vez.

Na ida, tivera que aguentar as reclamações do homem sobre o sistema político do Submundo de Mempolis, onde, diferente de Tantris, não possuíam um Conselho para controle geral. 

A cidade era dividida por linhas invisíveis que delimitavam os territórios de cada um dos clãs: sul para os bruxos, leste para os lobisomens e oeste para os vampiros, onde o sol nasceria por último. Quanto às fadas, espalhavam-se pela cidade e que coubesse a elas cuidar da própria organização. Desde que não se metessem com os demais clãs, tudo estaria bem. E isso valia também para os outros três. Poderiam entrar no território de outro desde que houvesse uma razão para isso, porém, se quebrassem as regras estabelecidas em consenso pelos representantes maiores de cada clã, estariam sob o julgamento do clã dono daquele território.

Não gostavam de admitir, mas o lema mundano de “olho por olho e dente por dente” se aplicava a eles também.

― Meu pai conseguia ocultar sua longevidade antes de mim, se é isso que preocupa o senhor ― Saul retrucou, guiando os cavalos para uma curva.

Seu pai vivera somente até os trezentos anos, um tempo de vida razoável para um bruxo. Poderiam ir muito além daquilo, como o próprio Tibério, que deveria ter passado dos quatrocentos há um bom tempo. Quanto a ele mesmo... Perguntava-se se teria a mesma sorte. A julgar por alguns cabelos brancos que começaram a aparecer, cria que não. Ao menos conseguira arrancá-los antes que Betina percebesse, pois ela sempre reparava em tudo.

― Sabe que não é isso que quero dizer, meu jovem. ― O senhor o olhou de soslaio, como se houvesse um segredo entre eles. ― Mantemos distância dos mundanos para nossa própria segurança. Nossos antepassados europeus sabem do que eles são capazes de fazer com um de nós. ― Mexeu o maxilar, de uma forma que parecia saborear algo de gosto amargo. Ele lentamente engoliu a própria saliva. ― A histeria se tornou tão grande que os mundanos acabaram atacando aos seus na caça pelo nosso povo.

― Pelo que ouvi dizer, a situação tem se acalmado nos últimos anos. ― A principal forma de inteirar-se do que acontecia dentro e fora das colônias era pelo comércio. Um comerciante ouvia uma notícia de um, espalhava para outro e assim a informação percorria Mempolis. Dentro e fora do Submundo. 

― Você ouviu sobre o que aconteceu em Salém? Isso foi há menos de trinta anos. E meu neto ainda teve a coragem de se enveredar por aqueles lados! ― Tibério soltou um “hunf” que emanava censura. ― Leônidas realmente perdeu a mão na criação dos filhos, deixando tudo para a esposa. “Eu trabalho demais”... ― Mudou levemente o tom de voz, na tentativa de imitar o filho. ― Deixou as responsabilidades nas costas de Brigite, Betina, Bernardo e não resta mais ninguém. Ele irá fazer o que agora? Esperar que Matias consiga dar conta de tudo? Aquele lá andou se escondendo a vida inteira e duvido que consiga aguentar o tranco.

Tibério terminou com outro resmungo e Saul respirou fundo. Conseguia compreender perfeitamente porque nenhum dos outros filhos do homem quis abrigá-lo em suas casas, fosse em Constantia ou em uma das colônias para qual se mudaram. Nem Leônidas aguentava o próprio pai e somente Betina seria capaz de tolerá-lo. Ela parecia não ter boca para reclamar de nada, então é claro que seria a única capaz de aturá-lo.

Quanto a ele, teria que controlar a vontade de atirar Tibério no rio que cortava o fundo da propriedade. Devia aquilo não apenas por respeito à família de Betina, mas ao próprio sogro. Devia muito a Leônidas e teria que controlar o próprio temperamento por isso.

― Infelizmente não posso fazer nada para não termos tantos mundanos ao nosso redor ― Saul retomou o tópico anterior, preferindo não se meter nos assuntos da família Salazarte. ― A fazenda precisa de muitos trabalhadores e não posso fazer uma entrevista com um por um para descobrir se são mundanos ou não. Contratá-los e demiti-los com frequência também está fora de cogitação, apenas atrairia mais suspeitas, como o senhor deve imaginar.

Tibério somente mexeu os lábios de um lado para o outro, soando contrariado. As preocupações do homem tinham um fundo de razão, principalmente ao considerar que ele, os pais e os irmãos vieram fugidos da Espanha devido à perseguição da época. 

Mas aquilo fora há um bom tempo e a vida nas colônias era diferente. Ao menos no sul.

― O que não significa que você precise dar um feitiço nosso na mão de mundanos. Ou era nosso mesmo? ― Saul olhou-o de canto de olho, percebendo um sorrisinho de canto nos lábios do bruxo mais velho. ― Aquele cheiro de açúcar queimado é um tanto característico das fadas, pelo que eu saiba…

Tremonti bateu as rédeas contra os lombos dos dois cavalos, forçando-os a irem mais rápido. Salazarte viu-se obrigado a se segurar na lateral da carroça, que começava a chacoalhar ainda mais com os solavancos da estrada.

― Não há risco dos mundanos questionarem o que estavam aplicando nas vinhas. Eles acreditam ser algo com uma função semelhante a um adubo e isso basta.

― Pois é, meu jovem, você pode frear as perguntas de seus trabalhadores a você, mas será que pode impedi-los de fazer o mesmo entre si­? E as pessoas falam, isso eu te garanto. E como falam! ― A frase final saiu junto de um balançar de cabeça, como se ele próprio tivesse experimentado aquilo na pele.

Saul somente se focou na estrada, querendo voltar para a fazenda o mais rápido possível e encerrar aquela conversa logo. Da próxima vez, iria para a cidade sem avisar ninguém.

 

 

A lua crescente ainda continuava no céu e o vento parecia penetrar pelas roupas e gelar até a espinha. Saul ajoelhou-se na grama que começava a ficar molhada de orvalho. Amanheceria dali a pouco mais de uma hora e os trabalhadores começariam a aparecer em alguns minutos. Tinha pouco tempo.

Pegou uma caixinha de fósforos do bolso e riscou um, levando a chama para as flores com formas de estrelas, cada uma apontada para um dos pontos cardeais. Olhou para o horizonte. Estava voltado para o norte e faziam exatos sete dias desde que o preparado fora espalhado pelas videiras, além de ser no horário oposto àquele. Ele e Leonardo ― que o assistia de braços cruzados a alguma distância ― correram para espalhar o segundo preparado ao longo dos limites da fazenda em tempo. Agora, o último passo era declamar em voz alta as palavras que a fada lhe ensinara:

Sy tetãme, sy pyharepyte, pecha yvy jerua phytvõte.

As folhas continuaram queimando e Saul não sentiu nada além de frio. Repetiu as palavras mais duas vezes e nada aconteceu. Não era como se algo físico fosse de fato se manifestar caso aquele ritual desse certo, porém ele sentiria dentro de si. E o que ainda possuía de energia mágica continuava a sentir o mal apertando-lhe a garganta cada vez mais.

Praguejando, levantou-se e começou a pisotear o que sobrou das folhas, apagando junto o fogo.

― Não funcionou? ― Leonardo questionou, aproximando-se com cautela do patrão.

Saul soltou uma respiração ruidosa, fazendo as narinas se expandirem e uma pequena fumaça dançar pelo ar.

― Sinto muito por fazê-lo ficar acordado até essa hora por nada ― pediu para o outro, deixando para si mesmo todos os xingamentos possíveis contra a fada. Viu-o menear a cabeça em um sinal de que estava tudo bem. ― Tire o dia livre, se quiser, mas vá direto para casa dessa vez.

― Melhor não, patrão. Débora vai desconfiar se eu não vier trabalhar. ― Ele parou ao lado do bruxo, observando a escuridão à distância e onde estava a cabana que dividia com a esposa.

― Tem absoluta certeza de que ela não dará por sua falta?

― Absoluta, não. Mas ela sempre teve sono pesado, não costuma acordar muito durante a noite. Mesmo agora. ― Saul encarou o homem com a sombra de um sorriso compassivo. ― Pode me chamar outra vez se precisar de ajuda com essas coisas. Isso não é nada comparado com o que o senhor fez por mim.

― É melhor voltar logo para sua casa ― Saul mudou de assunto com extrema rapidez. Realmente não sabia como lidar com aquela gratidão. Ele não merecia, sentia que não. ― Não demorará muito para os demais subirem.

Leonardo assentiu e fez uma despedida muda para o patrão, prosseguindo em linha reta e logo se misturando com as sombras dos vinhedos. Tremonti olhou para o céu e fechou os olhos, tentando usar toda a energia que ainda tinha para tatear a magia que cercava a fazenda e que infelizmente estava conectada a ele. Nenhuma mudança.

Olhou para a mistura de cinzas com o que foram as folhas estreladas e pisoteou-as mais uma vez, para misturá-las à grama e apagar qualquer vestígio.

Ele marchou com passos pesados de volta para o casarão no centro da propriedade. O lugar era feito de sombras e um silêncio onde todos dormiam. Abriu uma greta na porta da cozinha e entrou por ela, fazendo questão de passar os dois trincos em seguida, para ocultar provas de que saíra na madrugada.

Atravessou os cômodos cuidadosamente para se desviar dos móveis, vendo vez ou outra sombras longilíneas que eles projetavam nos pontos em que uma fraca luz entrava pelas janelas. Passou pelo hall e subiu as escadas, chegando ao corredor dos quartos. Foi até a terceira porta visível e abriu, vendo o quarto de Betina e a esposa adormecida sobre a cama de casal. Poucas vezes ele cruzava a porta que separava o dormitório dele do dela, deixando-a livre para aproveitar o espaço sobre o colchão. Ainda bem, pois ela se mexia muito durante a noite.

Contudo, nem mesmo aquele pensamento tirou o franzir da sua testa, um movimento que deixava mostrar algumas rugas. Era novo demais para aquilo e não demoraria muito para alguém perceber. Principalmente Tibério, que parecia caçar qualquer motivo para ter o que falar sobre o marido da neta. 

Saul tinha apenas cinquenta e oito anos, deveria aparentar ter em torno dos vinte e tantos, como Betina.

Tremonti fechou a porta e saiu do quarto, antes que uma nova leva de pensamentos acusatórios viessem. Ele ouvira vez ou outra Tibério comentar como ela parecia doente naquele lugar. Sabia que o homem não estava errado. Os únicos imunes àquilo pareciam ser os mundanos, porque eles, com energia mágica... Tinha certeza que não demoraria muito para que Salazarte começasse a sentir o mesmo ou também ficasse doente.

Se martirizava por ter condenado Betina àquele lugar junto dele. Fora egoísta outra vez e ali estava o resultado. Leônidas devia tê-lo parado. Provavelmente o faria, se tivesse vindo até a fazenda e sentido o mal que envolvia o lugar. Em Tantris, ele não podia mensurar exatamente com o que estavam lidando.

Tremonti passou reto pela porta do próprio quarto, ao lado do dormitório da esposa, e caminhou mais alguns passos, considerando se entrava ou não. Decidiu que não custava nada dar uma olhada na filha antes de dormir. A babá, que dormia numa cama de solteiro na parede oposta à do berço, não o questionaria por vê-lo tão cedo ali. Era perto do amanhecer e deveria estar de pé em breve mesmo.

Aproximou-se do móvel onde Anástacia dormia, ajoelhando-se e observando-a entre as grades do berço. Os cabelinhos eram pretos como os de Betina e o nariz era como o dele, mas tirando aquele detalhe, ela tinha as feições da mãe. Melhor assim. O melhor mesmo era se ela não tivesse nada dele.

Dividia-se entre pensar que a Mãe Terra estava mesmo disposta a condená-lo de todas as formas, permitindo que tivesse uma filha tão cedo. Alguns casais de bruxos demoravam mais de cem anos para ter o primeiro filho, tendo que lutar contra a baixa fertilidade. Bem, a magia sempre cobrava algo em troca, não?

Agora, no caso dele, tudo parecia conspirar em sentido contrário.

Mas a quem queria condenar, se fora sua escolha se casar? Tudo que estava acontecendo em sua vida era fruto de suas próprias escolhas. No entanto, ao olhar o rostinho da filha, não conseguia se condenar por aquela.

Colocou uma mão sobre a grade do berço, na intenção de passar os dedos em um carinho delicado naquele rostinho. Ao encostar sua pele contra a pele do bebê, sua testa se franziu novamente ao sentir o contraste de temperaturas.

Arregalou os olhos, tentando não se desesperar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E acharam que teríamos apenas três pov's por aqui, né? Saul terá alguns pov's intercalados com o da Betina, mas não esperem tanta frequência assim.