Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 36
Capítulo XXXVI




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III. Aqueronte

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, a idade da insensatez, foi a época da crença, a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário [...]”

― Um Conto de Duas Cidades, Charles Dickens

Irina tentava segurar o ar e lentamente soltá-lo, mesmo que tivesse visto há uns bons minutos que aquilo era um método inútil. Suas unhas apertavam com força o estofado da carruagem dos Salazarte e tinha certeza que, assim que Matias desviasse os olhos das casas que iam ficando para trás através da janela, perguntaria se estava tudo bem. 

Podia dizer que as coisas não estavam bem há anos e que iam de mal a pior desde que ela e Estevão descobriram sobre a maldição de sua família. O único restinho de esperança que tinha fora amassado cruelmente pela Mãe Terra. 

De que lhe valia a dádiva da longevidade e sua energia mágica se seu sangue estava amaldiçoado e se seu irmão poderia morrer a qualquer instante? Por mais que tentasse tranquilizar Ezequiel, a sensação dele de que a morte estava se aproximando provava-se correta, considerando que ele tivera um acesso de febre ainda mais forte duas noites atrás e que o último preparado feito pelo Dr. Salazarte estava se mostrando cada vez menos efetivo. 

― Está tudo bem com você? ― Matias verbalizou a pergunta que ela sabia que viria a qualquer instante. 

Respirou profundamente para soltar o mais devagar que conseguia e assim demorar um pouco mais para responder. 

As coisas estavam ainda menos bem desde a última terça-feira, quando os dois se encontraram no parque para conversar e Matias soltou as declarações que quase tiraram a sanidade que estava lutando para manter. 

Há quase uma semana não apenas suas esperanças de cura para Ezequiel caíram por terra, como também seus sonhos de um dia se ver casada e como mãe de uma grande família. Exatamente como sua mãe deveria ter sido...

No entanto, naquelas circunstâncias, como poderia condenar um homem a sofrer junto dela o mesmo que sofria por Ezequiel durante todos aqueles anos? Mesmo se a criança seguisse o padrão e não vivesse mais do que alguns anos, a maldição seria passada para frente e se misturaria ao sangue de uma família que nada tinha a ver com os problemas causados por seu antepassado. Se dependesse dela, a maldição em seu sangue terminaria com ela e pronto. 

Exceto que... 

Exceto que as palavras de Matias tiraram-lhe completamente do eixo.

“Um homem que a ame de verdade estaria disposto a sofrer junto de você, independente de qualquer maldição que seu sangue carregue”. Um homem que a amasse de verdade... Que a amasse…

Ela encarou o bruxo sentado à sua frente.

― Estou bem ― ela afirmou, sabendo que, fosse qualquer um de seus irmãos no lugar dele, sua mentira seria captada assim que fosse dita. 

― Você parece inquieta ― ele comentou, ignorando completamente a janela, indicando que estavam começando a adentrar uma área com somente árvores para se ver. 

Mesmo que Matias não pudesse lê-la tão bem como seus irmãos, seria impossível deixar passar despercebido alguns detalhes. 

Já se sentia inquieta há um bom tempo quando estava na presença dele. Era como se aquele sonho que insistia em não lhe abandonar pudesse ser trazido à tona e... Era apenas um sonho, insistia em dizer para si mesma, um sonho fruto de sua mente, não era real. 

Mesmo não sendo real, a vontade de tocar-lhe a mão, de querer estar ao seu lado e conversar sobre qualquer coisa que fosse era real e mais real do que gostaria. 

― Sendo sincera, estou apreensiva. Foram várias tentativas no último mês e todas frustradas. ― Não estava mentindo daquela vez, afinal, realmente estava apreensiva por aquele motivo. Apenas não contaria tudo. 

― Ainda nos resta uma esperança. ― Matias tentou confortá-la e se aproximou, tomando-lhe as mãos entre as suas. ― O sonho de Ezequiel pode ser um elemento importante se descobrimos o que significa.

Como sempre, ele tentava puxá-la para cima em sua aura de otimismo. E, como estava acontecendo desde a última vez em que se encontraram, Irina estremeceu com o toque. Daquela vez não foi ela a quebrar o contato.

― Peço perdão, se estou passando um pouco dos limites. ― Salazarte voltou a encostar-se contra o assento no seu lado da carruagem, franzindo o cenho.

― Não, eu não... ― Irina balançou a cabeça, negando mais para si mesma do que para ele. Em uma imitação quase perfeita de Ezequiel, foi a vez dela de vacilar pelas palavras. Mesmo que pouco costumasse fazer isso, pois quase nunca se manifestava se não estivesse certa do que dizer. ― Eu não me importo. Eu... ― Ela engoliu em seco, vendo o bruxo à sua frente parecendo não compreender o que estava querendo expressar. ― Eu aprecio o seu gesto. Sei que está tentando ser gentil.

Ele assentiu lentamente, ainda parecendo reticente.

― Pela sua reação das últimas vezes, temia que estivesse passando dos limites.

Naquele instante, Irina travou, não sabendo como se expressar. 

Na verdade, ela sabia, sim, somente não tinha coragem de dizê-lo em voz alta. Se sua intenção fosse tentar mantê-lo afastado de qualquer interação romântica, dizer o que estava pensando faria tudo ir por água abaixo.

E desde quando ele estava sendo romântico? Como bem dissera, ele estava sendo gentil e poderia muito bem ser apenas isso. Ela é quem estava confundindo a realidade com seus sonhos e sentimentos. 

Contudo, se fosse parar para considerar todos os pontos relevantes no que sentia em relação a Matias, recordando-se dos relatos que ouvira de sua amiga Natália quando se apaixonara, havia uma conclusão a se tirar de tudo aquilo.

Tudo começara com Matias e a irmã tentando ajudar Ezequiel e ela estava levando as coisas para o lado errado. Um erro crasso.

Irina apertou os dedos outra vez no estofado. Não, ela não era uma romântica sonhadora como Ezequiel e paixão nenhuma passaria à frente da razão. E ela definitivamente não envolveria aquele pobre homem ainda mais em seus problemas.

― Eu aprecio o seu gesto, apenas não estou acostumada a isso ― disse da forma mais sucinta que conseguiu. Matias olhou para o chão do veículo.

― Nesse caso, sei que estou tomando mais liberdades do que deveria, peço que me perdoe. O Submundo já está falando sobre nós e não gostaria que tivessem mais motivos para isso.

A Srta. Gutiérrez riu, assustando seu acompanhante na carruagem.

― Minha mãe é a maior responsável por isso, Matias. O maior desejo dela é ver Isaac no Conselho e uma união entre nós dois seria apenas lucro em seu plano. ― No mesmo instante, viu-o torcer os lábios para um lado. ― Mas eu garanto que não estou...

― Você nunca se envolveria nisso ― Matias a interrompeu, soando um tanto ríspido. ― Conheço sua índole o suficiente para saber que você não faria parte de um esquema como esse.

― Obrigada.

O silêncio caiu sobre os dois e Irina deixou, somente assistindo Salazarte voltar a encarar as árvores que não acabavam pela janela e batucar os dedos na lateral da carruagem.

― Eu sinto muito que você tenha que passar por isso ― ela começou, por algum motivo não conseguindo ficar calada. ― Foi culpa minha pelo que aconteceu naquela noite.

― Não se culpe.

― Mas nada disso estaria acontecendo se eu não tivesse o envolvido nisso. ― Antes que ele pudesse rebater com o argumento de que se envolvera naquilo por vontade própria, coisa que ela já esperava naquele repeteco interminável, passou na frente dele para falar. ― Você já tem os seus próprios problemas e agora eu lhe acrescento mais esse. E sequer posso lhe retribuir tudo o que você tem feito por mim...

― Estar com você já é o suficiente. ― Ele a interrompeu de súbito e, no mesmo instante, a face de Matias corou de uma maneira um tanto preocupante. Irina entreabriu os lábios e ele pareceu ter se dado conta do que havia acabado de falar. ― Eu quis dizer que... ― Ele limpou a garganta, enquanto se remexia um pouco no assento. ― Eu quis dizer que estar em sua companhia me faz bem e isso é suficiente. ― Fixou os olhos nos dela e Irina sentiu o seu próprio rosto começar a esquentar, contudo, não teve um pingo de vontade de olhar para qualquer outra coisa que fosse. ― É um alívio, no meio de tantos problemas, pensar que poderei vê-la outra vez.

Irina cravou as unhas contra o estofado, sentindo que tinha perdido o eixo de vez. 

E a carruagem parou.

Ainda com as bochechas diminuindo do tom de rosa, Salazarte abriu a porta e desceu, em seguida estendendo a mão para ajudá-la a sair. Palma tocou contra outra palma e Irina agradeceu que conseguia se equilibrar ao tocar o chão. Ainda era senhora de si, mesmo que qualquer palavra tivesse abandonado-a naquele momento. 

Olhando ao redor, notou que estavam quase encurralados por tantas árvores.

― Vamos seguir em direção ao rio ― Matias orientou. ― Sei que algumas fadas costumam viver mais próximas à água.

― Tem certeza que conseguiremos fazer um acordo? ― Irina questionou, seguindo-o no terreno inclinado para baixo. Segurava as saias para tentar não sujar a bainha de terra, porém o mais importante era não escorregar na descida para não tomar um tombo.

― Sei que essas fadas em específico têm uma promessa de retribuição a meu avô, em um dos pleitos em que o voto dele serviu de peso favorável para as fadas ― ele começou explicando, guiando o caminho. ― Pelas fadas serem o último clã a se juntar ao Conselho, seu voto é tomado como peso menor por Altos Membros de alguns clãs e suas causas deixadas para depois, em comparação com os outros.

― Se as fadas têm mesmo alguma dívida com seu avô, pergunto-me por que não o apoiaram quando todos estavam a favor de sua retirada do Conselho ― ela comentou, deslizando sem querer na descida.

― Precisa de ajuda? ― Matias inquiriu, virando-se para ela. Irina parou, prestes a negar. ― É melhor tomarmos cuidado para descer. ― Por fim, estendeu a mão, que, considerando o caminho que iriam tomar, achou mais sensato aceitar. E empurrar para trás qualquer pensamento que não fosse o que deveriam buscar. ― A confusão no Conselho chegou a vir a público? ― ele retomou o assunto anterior, voltando a liderar a descida.

― Para nossa surpresa, essa foi uma das poucas reuniões abertas ao público. Isaac compareceu e apenas ouvi-o comentar que já tinha passado tempo o suficiente para alguém como seu avô se retirar. ― Observando o movimento dos ombros de Salazarte, teve certeza que ele riu. Um ruído de água corrente ia aumentando conforme avançavam. ― Considerando o que conheço de relações políticas de fora do Conselho, seu avô era apenas mais um entre uma dezena.

― Jogo político, talvez seja a única explicação para o que aconteceu. ― De repente, ele foi parando de caminhar. ― Acredito que estamos chegando.

Irina olhou ao redor, continuando a enxergar somente árvores. Considerando que estavam entrando em domínio de fadas, esperava encontrar ao menos um ponto brilhante em algum lugar.

― Venho cobrar a retribuição a Tibério Salazarte ― Matias ergueu a voz para o nada. ― Como seu neto, reclamo a sua parte na dívida que têm com a família Salazarte.

Irina continuou olhando para os lados, procurando por uma movimentação que fosse. Em um piscar de olhos, uma dúzia de pontos brilhantes se acumulou à borda de uma árvore, vindo sabe-se lá de onde. Continuaram assim, enquanto o tempo passava e aguardavam por uma resposta. 

As fadas confabulavam entre si?

Subitamente, um ponto brilhante se afastou dos demais e aproximou-se dos dois bruxos. À frente deles, uma figura alta e com uma túnica do que parecia ser algodão tomou forma.

― Não há nada para pedir a nós, cria de Salazarte. ― Ele cruzou os braços, postando-se de forma ameaçadora para Matias, e uma boa cabeça e meia mais alta do que ele.

― Sei que seu povo tem uma dívida não paga com meu avô. O líder de seu clã jurou que estenderia sua mão caso qualquer um dos Salazarte precisasse de sua ajuda ― Salazarte rebateu e Irina saiu de trás dele, ainda segurando sua mão.

― Seu avô cuspiu no acordo feito com nosso ex-líder ao nos entregar injustiça após um gesto que não deveria ser mais do que sua obrigação.

Matias calou-se, pego de surpresa.

― Eu peço por um acordo com as fadas ― Irina tentou intervir.

― Se eu lhe pagasse com o que sua família merece, bruxo, nesse momento você estaria afogado debaixo d’água. ― O cavalheiro fada a ignorou, continuando a falar como se apenas ele e Matias estivessem ali. ― Uma vida por outra vida, não é esse lema de nossa Mãe que vocês fazem questão de clamar como justiça? Pois que seja feita justiça e uma vida dos Salazarte seja dada em troca da vida inocente que seu avô sentenciou à morte injustamente.

― Matias não tem culpa pelas ações de seu avô ― Irina o interrompeu, soltando da mão de Salazarte e tentando se impor entre ele e o cavalheiro. Mesmo que o bruxo tentasse voltar a colocá-la atrás de si. ― Se clamam por justiça, que justiça haveria em pagar uma vida inocente com outra vida inocente? O culpado é Tibério Salazarte e é ele quem deve ser cobrado por seus erros.

Do meio do punhado de pontos brilhantes ao redor deles, e que aumentava cada vez mais, uma única fada se aproximou, mudando para sua outra forma ao lado de seu companheiro de clã. Pelos traços e formas, poderia ser uma criança, se não soubessem que era quase impossível identificar a idade de uma fada somente pela aparência.

― Qual a benção de sua casa, bruxa?

Matias e Irina se entreolharam, tentando compreender o motivo daquela pergunta. 

A benção representada nos brasões das famílias era uma superstição que tinha ficado para trás há muito tempo. Dos últimos duzentos anos até ali, eram somente um símbolo para as grandes famílias bruxas.

― Asas. Mesmo que meus pés não sejam capazes de continuar, a Mãe ainda me sustentará ― ela recitou a frase passada entre os Gutiérrez como mera formalidade, esquecida em um canto como seus brasões.

― São eles, Nelin. A Luz não mentiu quando disse que eles viriam. ― Ignorando seu companheiro de clã, dirigiu-se para os dois bruxos. ― Me acompanhem, por favor.

A fada começou a caminhar não mais em direção ao rio, agora seguindo mais para a direita do que para baixo e eles acompanharam. Nelin foi atrás.

― Você não pode acreditar que a cria de um traidor seria capaz de...

― Eu não faço suposições, Nelin ― a fada o cortou com rispidez. Matias puxou Irina pela mão, tentando mantê-la próxima a ele. Seus sentidos ainda estavam alertas, temendo pelo ódio que o cavalheiro fada dirigia para o bruxo ao seu lado toda vez que ele ousava olhar para trás. ― Não questionamos a Mãe e também não questionamos a Luz. Se ela está intervindo, é para nosso bem.

― Perdoem-me a intromissão, mas já sabiam que viríamos até vocês? ― Matias questionou.

― A Luz nos informou que a Garça viria até nós acompanhada de suas Asas. Conhecemos sua família e sabíamos que a Garça seria um Salazarte ― a fada explicou e o outro resmungou. ― Não reclame, Nelin, dê a eles um voto de confiança.

Nelin soltou um último resmungo e passou a caminhar ao lado deles completamente calado. Irina e Matias se entreolharam, recordando-se do sonho de Ezequiel.

― Como a Luz os informou de que viríamos? Através de sonhos? ― Irina perguntou, sentindo a ansiedade crescer por finalmente enxergar uma luz em suposições que não tinham levado a lugar nenhum.

― A Luz tenta se comunicar com vocês através de sonhos. Nós, fadas, temos outras formas de manter contato com Ela.

― Se vocês, bruxos, não fossem tão ambiciosos para preferirem se envolver com a Sombra, talvez fosse permitido que se comunicassem com Ela de uma forma que não os matasse ― Nelin interrompeu a companheira de clã, soando ácido.

― Nelin, por favor.

― Que faça as honras de os acompanhá-los, Nygella. ― Junto de sua última provocação, o cavalheiro mudou para sua forma diminuta, passando a acompanhá-los de longe como um ponto brilhante.

― Peço que relevem sua atitude. Nelin perdeu uma pessoa muito querida pelas escolhas de seu avô, Salazarte.

Com a ausência da figura que os ameaçava, Matias e Irina sentiram-se um pouco mais à vontade para caminhar ao lado da fada. Mesmo que Matias insistisse em não aliviar o aperto em Irina.

― Peço perdão em nome de minha família e me ponho à disposição se houver algo que eu possa fazer para amenizar a perda ― Salazarte se interpôs de maneira diplomática.

― Se cumprir com os planos que a Luz tem para vocês, sua dívida estará paga.

― E o que a Luz planeja para nós dois? ― a Srta. Gutiérrez se manifestou.

― A Luz nunca revela seus propósitos de forma clara. Cabe a vocês interpretá-los ou esperar para que seu destino se cumpra.

― E por acaso a Mãe permitiria que outra dos Grandes manipulasse seus filhos se eles não forem até Elas de livre e espontânea vontade? ― Irina adicionou, tentando conter sua própria acidez.

Àquela altura, pouca se importava se suas opiniões sobre a Mãe Terra pudessem soar como blasfêmias a alguns ouvidos ou não, o único fato era que estava farta de se ver de mãos atadas por causa Dela.

― Vocês sabem que a Luz é a mais velha e sábia das irmãs. Ela é aquela que tudo pode ver nas águas do destino.

― E a Terra e a Noite são egoístas o suficiente para brigarem com a Luz para que seus filhos sigam suas regras, e não o destino ― a bruxa continuou a tentar rebater os argumentos da fada. ― Diferente dos mundanos, nós temos um pouco de autonomia para decidirmos nosso destino.

― Isso é o que vocês preferem acreditar, na ilusão de que estão completamente livres. ― A fada dirigiu um sorrisinho desdenhoso para ela. ― A verdade é que a Terra e a Noite sabem que não têm força o suficiente contra a irmã mais velha. O destino sempre exercerá alguma influência sobre todos nós.

Enquanto seguiam para o leste, o barulho de água continuava cada vez mais alto aos seus ouvidos. Mesmo sem perceberem, também iam descendo um pouco em direção ao rio.

― E qual seria o nosso destino? ― Matias finalmente se manifestou, depois de assistir a interação entre as duas completamente calado. ― A Garça com suas Asas.

― Isso não cabe a mim revelar. Mas a Luz acha que é a hora de você descobrir algumas verdades, bruxa. ― O trio deixou a cobertura de árvores para trás, finalmente vendo o rio correndo livremente à frente. Mesmo assim, continuaram na marcha para leste. ― A Sombra teve suas liberdades com seus antepassados e é a hora de um de vocês saber a verdade.

― Os sonhos de meu irmão... Isso é obra Dela?

Irina sentia que, para seus ouvidos, seu coração batia tão alto quanto o ruído provocado pela água corrente quando a fada virou seus olhos negros como carvão para ela. Não havia mais desdém ou divertimento nenhum.

― Nós, fadas, podemos ouvi-la de outra forma, mas a vocês, bruxos, resta apenas os sonhos. É uma magia antiga e poderosa demais para que possam suportar.

― Por que meu irmão? ― Irina continuou a insistir.

― Apenas a Luz e a Terra sabem o porquê escolhem alguns bruxos específicos para receberem visões do destino. Eu acredito que, como vocês dois, Elas devem ter algum propósito para eles. ― Chegaram em um ponto onde o rio tomava dois caminhos. Em um, provavelmente continuava rumo ao oceano; no outro, as águas iam se tornando um pouco menos furiosas. Seguiram por ali. ― Quanto às suas perguntas, acredito que a Luz tenha algumas respostas para elas. É lá, estamos quase chegando.

A fada apontou com a cabeça para um grande paredão de pedras. Dessa vez, nenhum dos bruxos precisou fazer muito esforço para ver que havia uma entrada ali. Desceram juntos, com ela abrindo um pouco de distância para tomar ainda mais a dianteira.

A grama ia escasseando conforme se aproximavam da entrada da caverna, a água fluindo calmamente para lá. Caminhando com cuidado por uma das laterais estreitas, os bruxos continuaram a seguir a fada, vendo que o interior não deveria ter mais do que alguns metros. A água do rio terminava em uma lagoa límpida no centro, que lançava uma luz prateada para o teto rochoso.

― Entre e vá até o fundo, Ela falará com você. ― A fada virou a cabeça para trás, dirigindo-se para a bruxa.

Irina deixou sua mão escorregar da de Matias, pouco conseguindo compreender do que ele tentava lhe alertar. Olhou fixamente para a água prateada e foi até ela.

― Mergulhe e não tenha medo ― Nygella adicionou. ― Ela não deixará nada acontecer com você.

Salazarte se aproximou em poucas passadas, porém, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Irina já havia colocado os pés para dentro da água. Parado à borda, ele assistiu em silêncio ela seguir até o centro, a água submergindo-a cada vez mais. Quando parte de seu rosto começou a ficar debaixo d’água, prendeu a respiração e não parou até que seu corpo estivesse totalmente encoberto.

Parou, segurando a respiração por bons segundos e sentindo seus pulmões começarem a arder, nunca fora boa naquilo. Do meio das águas onde nada conseguia enxergar de fato, sentiu-se ser puxada e forçada a olhar para o teto, não vendo mais o teto pedregoso.

Ódio. O peito dela queimava com ódio e havia sangue em suas mãos. Sangue demais. O corpo pequeno jazia sem vida aos seus pés e não se arrependia.

― Ela irá se afogar.

Ela chorava, suas mãos ainda sujas do sangue do pequeno corpo sem vida. Dor. Dor que parecia quebrar-lhe por dentro. Sentiu a mão dele sobre seu ombro.

Não há perigo, confie.

“Nossas famílias se parecem mais do que aparentam.”

― Ela está lá embaixo há mais de um minuto inteiro.

“Ela irá pagar. Uma vida...”

A imagem se apagou diante de seus olhos e, no instante seguinte, sentiu braços ao redor de sua cintura puxando-a para cima. Ao voltar para a superfície, arfou em busca de ar. Não tossiu, pois não havia engolido nem um pouco de água.

Percebeu que estava sendo puxada para trás e, ao virar a cabeça, viu Matias nadando para levar os dois de volta para a margem.

― Estou bem ― ela tentou articular para tranquilizá-lo. Mesmo que ainda estivesse se sentindo atordoada demais para tentar processar o que estava acontecendo.

Os bruxos saíram de dentro do lago e sentaram-se sobre as rochas da borda. Irina encarava as águas prateadas, como se de lá pudesse sair mais alguma coisa.

― O que aconteceu? ― Matias questionou e ela pôde ouvir a voz dele com perfeita nitidez próxima ao seu ouvido.

As águas voltaram a ficar completamente imóveis.

A fada se aproximou dos dois e Irina passou os olhos de um para o outro, vendo o rosto de Salazarte próximo demais do seu. E pouco conseguiu processar.

― Eu não tenho a mínima ideia. 


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