Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 12
11. Tranças, tias e amor


Notas iniciais do capítulo

Oiê! O capítulo de hoje é um tantinho diferente, mas é importante pra história. espero que gostem ♥
vambora



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808091/chapter/12

Foi um dia facilmente resumido às suas... levemente esquisitas refeições.

Primeiro porque estava ali naquela simpática cozinha de tons terrosos, literalmente, o grupo mais estranho de indivíduos já reunidos por metro quadrado desde os debates presidenciais no Brasil de 2022 – com a diferença clara de que, infelizmente, aqui ficaremos sem o jeitinho sexy de Willian Bonner de nos desejar uma boa noite ou apartar alguma briga.

Segundo porque Loukás decidira, pela misericórdia divina, calar a boca. A primeiro momento – durante o dia – pelo motivo de que tinha perdido boa parte do ânimo ao ter sua tagarelice confrontada por Benjamin, e estava decidido a não piorar o que já não parecia estar tão bom.

O resultado dessa nova política de entrosamento foi um silêncio colossal servido numa bandeja de prata, com direito a bolinhos de olhares constrangidos, e torta de climão para a sobremesa. Tia Betty tentava puxar assuntos aleatórios que o jovem anjo respondia da maneira mais sucinta possível. Nem Emiko, com sua vasta coleção de histórias de viagens internacionais, conseguiu arrancar dele mais que um “que legal!” seguido de um sorriso educado e um menear de cabeça.

Diante de tal (falta de) reação, restou a ela apenas murchar um pouco e enfiar mais uma garfada de comida na boca. Por um momento tentou decidir com seus botões qual dos seus “que legal” era o mais frustrante: o que Benjamin a enviara por mensagem de texto no dia anterior, ou a versão live action dele.

— Bom... – dissera tia Betty em algum momento, com um suspiro discreto – pelo menos o porco está uma delícia!

E talvez tenha sido essa a única vez do almoço em que o corpo de Loukás baixou o próprio espírito de volta. Ele se retesou inteiro, ficando de repente tão pálido que nenhum dos três deixou de perceber.

— Tudo bem, querido? – Indagou a velha.

Ele olhava para o próprio prato, que até então estivera tendo tanto prazer em degustar. De repente pareceu que aquele pedaço macio de carne já pela metade se metamorfoseara num mini-focinho de porco, com direito a belos olhinhos pretos, narizinho arrebitado, e uma linda história de vida, que tinha acabado por terminar de forma trágica nos estômagos alheios.

 O anjo engoliu em seco. Precisou realinhar todos os chakras para responder.

— Eu... hum... não sabia que isso era carne.

— Oh – Emi tomara a palavra, surpresa – você é veterinário?

— Vegetariano – Benjamin soprou baixinho.

— É, vegetariano?

— Eu só... – Loukás encarava a comida – acho que prefiro não comer algo que esteja... vivo.

— Hum — murmurou o humano, meneando a cabeça – garanto que tudo aqui está bem morto.

Emiko lhe deu um chute na panturrilha que o fez sorrir com um tiquinho de maldade. Porém o almoço foi salvo graças a Elisabete e o oferecimento de um delicioso pedaço da sua famosa lasanha de queijo com brócolis – a preferida dos seus antigos aluninhos na escola particular onde tinha sido merendeira, até enfim conseguir a aposentadoria.

O segundo momento – durante a noite –, tinha sido quieto por um outro motivo que nada tinha a ver com incomodar. Na verdade, Loukás tinha esquecido parcialmente sua determinação ao silêncio durante a tarde, quando tia Betty ligou a tevê para assistir mais um capítulo das suas queridas novelas mexicanas, e ele ficou estupefato ao passar pela sala e ver aquele monte de pessoinhas presas naquela... estranha caixa preta de tela plana.

A mulher o observara curiosa por alguns minutos, esperando para ver o que aquele estranho rapazinho loiro queria trocando carícias com a sua televisão. Mal sabia ela que ele estava é procurando algum buraco para libertar as tais pessoinhas lá de dentro.

— Hum... – murmurou ela, quando aquilo já estava ficando estranho o suficiente – quer ver a novela comigo, querido?

Ele voltara aqueles olhos brilhantes para ela novamente.

— O que é uma novela?

Elisabete o encarara atônita. Começou então a explicar tintim por tintim do que se tratava o conceito de “novela”, passando desde bombas como Os Mutantes, até clássicos como Mulheres de Areia – com direito a gostosas risadas relembrando seu personagem favorito, o Tonho da Lua. Não demorou muito e logo estavam os dois passando o resto da tarde no sofá, fofocando horrores sobre o quão triste era a vida da Maria do Bairro, com a velha o contextualizando a cada fala dos personagens, e ambos reagindo dramaticamente a cada close bombástico da vilã Soraya Montenegro.

— Se você já acha essa daí terrível – dissera betinha, toda cúmplice – espera só até eu te mostrar a Paola Bracho.

O jantar quieto da noite, portanto, não tinha mais nada a ver com um tentar não incomodar. Ele se dera apenas porque Loukás estava mantendo a boca ocupada demais mandando ver em seu singelo pratinho do tamanho de uma miniatura do monte Everest. E nem a reviravolta mais mirabolante da novela, ou a vilã mais fabulosamente malvada, o interessaria mais que isso.

Benjamin e Emiko o observavam, chocados. Tia Betty, no entanto, não podia estar mais lisonjeada.

— E que tal o aipim, jovenzinho? – Incentivava ela toda manhosa, porque elogios nunca eram demais, não é?

— Uma delícia, dona tia! – Respondeu o anjo, sorridente. Parecia prestes a proclamar mais um de seus quilométricos comentários, mas aquele brilho súbito de empolgação sumiu rapidamente do seu rosto, e ele conseguiu controlar a língua – muito obrigado pela comida. É muito gentil.

Subiu os olhos para o humano do outro lado da mesa, só para se certificar que estava mesmo sendo inspecionado ainda – e logo os desviou novamente para o prato ao concluir que sim, estava sim. Nem teria sido preciso verificar, na verdade, porque ele podia sentir. Claro como o sol do meio-dia, alto como Paris gritando no seu ouvido, palpável como brasa quente abrindo um buraco bem no meio da sua testa, ele podia sentir o olhar sutil de Benjamin pousar constantemente sobre si, desde que haviam conversado mais cedo na cozinha. E era algo que por algum motivo lhe fazia gelar o sangue.

De repente parecia que não sabia mais como segurar o talher, ou mastigar, ou até piscar os olhos de forma natural. Ele se deu conta de que aquela tal habilidade de dominar um ambiente deveria ser mesmo de família: Elisabete ao seu modo expansivo, e o sobrinho sendo seu total oposto.

— Ah, mas que cabeça! – A velhinha bateu na própria testa de repente, atraindo a atenção de todos ao redor – Esqueci de fazer a oração para agradecer o jantar.

— Nós não fazemos oração pra jantar – Benjamin ergueu uma sobrancelha.

— Shh, cala a boca, menino – ela fez um gesto bravo em sua direção, para logo em seguida abrir um sorriso todo meigo para Loukás – não quero que o nosso amigo aqui pense que não somos cristãos.

— Ué, mas nós não so...

— Calaboca!

— Ah, tudo bem – o anjo deu de ombros – eu também não sou.

— Não?

— Não!

— E por que essa roupa de crente aí?

Emi riu baixinho, disfarçando ao dar delicadas batidinhas com um guardanapo sobre os lábios. Loukás, por sua vez, arqueou as sobrancelhas.

— Crente?! – indagou.

— É, evangélico, né? Isso ou pai de santo.

— Até parece – Benjamin zombou discretamente, em meio a uma garfada.

Levou então outro chute de Emiko por baixo da mesa, que era para ficar esperto.

— Quando te recebemos aqui, a primeira vez, você estava com uma roupa toda branca igualzinha a essa – prosseguiu Elisabete – isso é por causa de religião, ou o quê?

Aaah, pitombas flamejantes, Paris!, pensou Loukás, enrijecendo a mandíbula num sorriso carregado pela força do ódio. Isso que dava sair por aí vestido como se fosse pôr a mão na cabeça de alguém para expulsar o coisa ruim – coisa que não aconteceria se estivesse, por exemplo, usando aquele lindo conjuntinho verde limão cheio de balangandans que fariam ele ser a pessoa em quem estariam colocando a mão na cabeça, para início de conversa.

Para evitar muitas perguntas, com uma pontinha de pânico e tentando contar a mentira menos mentirosa possível, o loiro recorreu à clássica apelação – disse que sim, era por causa de religião. Se vestia assim porque era... hum... uma espécie de monge, é, é isso. Um monge de terras distantes, vindo de um longo período de retiro para meditação, no qual fora abençoado com uma extensa sabedoria ligada a... bom... ao amor.

fanfic estava tão boa que já tinha até trilha sonora em sua imaginação. Era bem épica, só para constar.

— E que tipo de religião é essa? – Perguntou Elisabete, interessada – vocês são discípulos de Buda, ou algo assim?

— Ah, eu já conheci lindas templos budistas em Índia – contribuiu Emiko.

— Hum... não... – o anjo sorria, sem graça. Já tinha cumprido sua cota de mentiras sem gaguejar, era hora de dar uma maneirada na coisa – sou discípulo de... Afrodite.

— Afrodite?

— A deusa grega? – Emi se inclinou um pouco na direção dele – que incrível! Eu não sabia que deuses gregas ainda tinham seguidores.

— Ah, nem todos – ele deu um golinho no suco – sabe, quando grandes civilizações morrem, seus deuses morrem junto. Não existe religião sem fé, e nem fé sem povo... poucos deuses sobraram do panteão grego, só os mais ligados às bases da humanidade mesmo, e Afrodite é um deles.

— Fascinante...!

Um sorriso de admiração iluminou todo o seu rosto arredondado, fazendo com que ela apoiasse o queixo delicadamente nas costas das mãos, sustentadas pelos cotovelos sobre o tampo da mesa. Loukás abriu um sorriso tímido e voltou a olhar para o próprio prato, não sem antes trocar mais um breve e acidental olhar com Benjamin.

— E como ficou a sua família? – prosseguiu Elisabete, como uma boa odiadora de fofocas que era.

— Hum?

— A sua família. Com o seu isolamento – explicou – que eu saiba monges vivem isolados às vezes, não é? Foi difícil ficar longe da família?

— Hahah! Um pouco, sim – ele sorriu, empolgado, porque era uma história engraçada aquela – na verdade foi mais chato pra mim do que pra eles, porque por Eros, eles pareciam que não me suportavam mais! Era toda hora um “cala a boca, Loukás”, “vai lá pro canto, Loukás”, “não fique fazendo essas dancinhas e nem se divirta muito, Loukás” – meneou a cabeça, rindo, e voltou a atenção para o próprio prato – enfim. Me deixaram pra lá e nunca mais apareceram. Coisa de irmão.

Ele fez então uma dancinha espontânea de felicidade na cadeira enquanto comia a próxima garfada, alheio aos olhares abismados do trio de humanos ali presente – e demorou ainda um bom par de segundos para notar o silêncio pesado que engolira a cozinha de repente. Quando ele enfim parou, com as bochechas redondas de comida, encarou os humanos com ingênua curiosidade.

— Ei, o que foi?

Os três mortais se entreolharam por um breve segundo. E então desviaram os olhos, desconcertados, voltando a comer.

Porém aquela conversa sobre família, mesmo que breve e meio deprimente, surtiu algum tipo de efeito em Benjamin. Ele terminou o jantar, olhando vez ou outra de soslaio para a tia do seu lado na mesa. Não pôde deixar de pensar que enquanto aquele irritante rapazinho pecava com os seus por falar demais, ele cometia erro semelhante ao justamente... falar de menos.

Suspirou. Não parecia estar sendo tão justo de repente.

Mais tarde, enquanto Loukás se revirava insone na cama e Emiko dormia pacificamente no quarto do lado oposto do corredor, Benjamin cruzou o pequeno apartamento pé ante pé.

Estava já tudo escuro – apenas a luz alaranjada daquele poste do outro lado da rua fazia iluminar um pouco a sala pela varanda, alcançando também parte do corredor. Coisa pouca, suficiente apenas para proteger os dedinhos dos pés do perigo das pernas dos móveis camuflados na escuridão.

O rapaz ouvira alguém cantarolando baixinho, e por isso saíra do quarto.

Ele alcançou a porta da varanda, ainda em silêncio. Foi onde viu a dona daquela voz, toda distraída na cadeira cinza de ferro fundido, fumando distraidamente sob a luz distante do poste, e auxiliada ainda por um velho candeeiro aceso sobre a mesa.

— Fumando, dona Betty? – Começou Benjamin, erguendo uma sobrancelha de modo implicante. E aí sorriu ao ver a tia dar um pulo na cadeira – te assustei?

Tia Betty se voltou para ele com uma mão levada ao peito. Soltou uma baforada de fumaça e amassou as cinzas no cinzeiro, no improviso mesmo.

— Ave Maria, menino – disse então, por um momento assumindo o velho sotaque cantado da família – já é preto, ainda fica aí entocado no escuro!

E se desmontou numa singela gargalhada misturada com tosse, que o rapaz acabou retribuindo de forma bem mais contida.

— Que é isso – disse ele, erguendo as mãos inocentemente – Eu só queria te pegar em flagrante.

— Flagrante?

— É, fumando escondido! Que feio, hein? Não disse que tinha parado?

— Ah, sim – ela bateu as mãos, limpando o resto das cinzas dos dedos – quando eu quero parar eu paro.

— Hum!

— É sério! – Reagiu, meio na defensiva – Hoje eu só fumo quando estou muito estressada. Sabe. Ajuda a relaxar às vezes.

Benjamin hesitou, perdendo aquele ar zombeteiro. Sentia-se culpado por adivinhar quase que instantaneamente ser a causa daquele estresse todo da tia.

Esta, igualmente sensível às nuances do sobrinho, logo notou que algo o incomodava. Inclinou um pouco o rosto, abriu um sorrisinho acolhedor e enfim perguntou suavemente:

— Quer conversar?

Ao que o jovem respondeu meio sem jeito:

— Hum... na verdade...

Hesitou mais uma vez, dando uma coçadinha na nuca. E bastou isso para a tia entender, dando uns tapinhas na própria perna para o convidar a se aproximar.

Ele assim o fez, finalmente entrando no pequeno espaço da varanda e se sentando desleixadamente aos pés dela, entre os joelhos ossudos, como costumava fazer quando criança. Cruzou as pernas e se deixou suspirar baixinho, vendo com o canto dos olhos a velhinha empurrar o cinzeiro um pouco mais para longe sobre a mesinha de ferro.

— Quer que a tia faça trança? – Perguntou ela, já enfiando os dedos naquele emaranhado capilar. Fez uma careta – não, não tem que querer nada não, eu vou fazer porque isso aqui não existe.

— Estive com preguiça de cuidar esses dias.

— Estou vendo!

— E usei a durag do jeito errado, então amassou tudo.

— Fala daquela faixa de bandido que eu já disse mil vezes pra parar de usar?

— Que bandido o quê... – ele revirou os olhos – poxa, é estilo. Me deixa maneiro.

— As pessoas te olham feio quando você sai com esse seu “estilo” na cabeça, Benjamin. – Ela disse. E pelo tom, falou sério daquela vez – quando eu era nova, diziam que era coisa de gangue. Não quero que pensem que tu tá metido com gangue nessa cidade.

— Não é coisa de gangue, tia. É coisa de preto.

Tia Betty se calou, meio sem jeito. Pegou três mechas já meio desembaraçadas e começou a trançar.

— E as pessoas já me olham feio de qualquer jeito – prosseguiu o rapaz, dando de ombros. – hoje, quando entrei no hospital. Toda semana quando vou pro teatro ensaiar. Todo concerto da orquestra que participo, e toda loja que eu entro. Não é a minha roupa ou o meu estilo que eles estranham. Sou eu.

— Eu sei...

— Então só me deixa ser eu.

Diante dessa frase, Elisabete não tinha mais o que contra argumentar. Soltou os cabelos do sobrinho e o segurou firme pelos ombros, forçando sua jovem coluna para baixo a fim de encostar a própria bochecha contra a dele.

— Tudo o que eu quero, meu bem – murmurou ela, doce – é que você volte a ser você.

Benjamin desviou os olhos para as próprias mãos ao sentir um beijinho estalar com cadência em sua bochecha, seguido de um resmungo para se endireitar. Ele segurava um cartão. Um que já lhe tinha sido tão familiar por um tempo.

— Sobre isso... – começou ele, hesitando novamente. Tia Betty se empenhava na terceira trança, puxando seu couro cabeludo com a delicadeza de um mamute raivoso. – Eu meio que decidi... sabe... procurar ajuda.

Esperou uma resposta que não veio, então decidiu prosseguir:

— Eu sei que tenho sido... difícil... esses dias – e parou. Palavras, Benjamin, palavras! Por que era tão difícil encontrar as certas? – Eu tenho estado confuso e... esquisito. E também tenho me sentido esquisito. Eu não entendo o que é. Talvez esteja apaixonado. Talvez esteja ansioso. Ou talvez só tenha pego alguma infecção alimentar e esteja, sei lá, com lombrigas, mas... – suspiro. Céus, ele era horrível nisso. – enfim. – nova tentativa – Sou adulto agora e quero resolver minhas paradas, então... eu só queria me desculpar. Sabe. Por ter agido como um baita crianção. Por ter te deixado cuidar sozinha da casa esses dias todos. Eu não queria ter sido tão... tão fraco como eu fui.

Terminou aquilo que já julgava como um baita de um discurso com um morder de lábios meio nervoso. Contar o que estava acontecendo não era um problema. Deixar que os outros soubessem o que ele sentia também não era um problema. O que era um problema, ou o que ele achava que era, pelo menos, era a ponte entre essas duas coisas: era o se colocar em palavras. Algo tão difícil quando parece que tudo que a gente é ou sente não é capaz de caber nem na mais complicada de todas elas.

Tia Betty, por sorte, era boa em decifrar o labirinto confuso que eram os desabafos do seu sobrinho. Deitou novamente o corpo sobre os ombros dele e dessa vez o envolveu num grande abraço de urso – no caso um urso anão com alguns problemas de artrite, mas ainda assim – deixando o rapaz respirar aliviado com aquele gesto de acolhimento.

— Ô, meu bem – disse Elisabete, o balançando de leve – Eu sei que quando a gente vira adulto começa a pensar que as nossas “paradas” são só coisa nossa, que já estamos crescidos, e precisamos resolver tudo. Mas sabe uma coisa? Ser adulto... é só ter mais anos nas costas. Não somos super-heróis pra dar conta de tudo sozinhos.

— É só que... eu não queria te preocupar.

— Aah, impossível! Eu prometi à sua mãe que cuidaria do bebezinho dela, e é isso que venho fazendo, da melhor forma que consigo – Hesitou. Sua voz assumira um leve embargo ao continuar – Eu me preocupo, mas é porque te amo. Tu sabe disso, não é? Que eu te amo?

O jovem sorriu de leve. Inclinou um pouco a cabeça e deixou um beijo suave no antebraço dela.

— Sei – respondeu – eu também te amo, tia.

— Então para com esse papo careta de “fraco”, garoto, que eu te dou uns cascudos!

— Hahah! Parei, parei! – ele riu, em tom de rendição; e aí soltou um pequeno suspiro. Segurou o tal cartãozinho com mais força e enfim o ergueu para que a tia pudesse ver melhor, à luz do candeeiro ainda aceso – só pra tu saber... eu vou, tá? Naquele psiquiatra que o doutor recomendou.

— Ah! – ela deu tapinhas animados em seus ombros – pelo menos alguma coisa que preste aquele paspalho fez!

— O paspalho — provocou, com um sorriso – também mandou um abraço pra você na consulta de hoje.

— Ai, credo, dispenso.

— Pff... – Benjamin meneou a cabeça, rindo – eita que fumante rancorosa, hein?

Foi de propósito, e ele conseguiu – tia Betty o deu um belo tapa na cabeça, acabando por rir junto ao sobrinho quando este não se aguentou mais.

Ela voltou a se ocupar com as tranças, entrelaçando com cuidado cada mecha querida daqueles cabelos, embebida pelo silêncio da noite, pelo barulho dos carros lá embaixo, e pela luz amarela do candeeiro. Candeeiro, este, que era herança de seu pai. Assim como a musiquinha que ela começou a cantarolar baixinho, que era herança de uma mãe, embora não fosse a dela própria – era a música que ela lembrava de ouvir, por tantas noites seguidas, a irmã mais nova cantar para a barriga onde terminava de gestar Benjamin. Às vezes no quintal da casa deles no interior; outras várias vezes já acamada no hospital, de onde partiu.

“Gosto muito de te ver, leãozinho, caminhando sob o sol...”

O garoto fechou os olhos, se deixando relaxar sob as mãos da tia em sua cabeça. E de repente era como se fosse criança de novo, parando cansado aos pés dela lá na cidade onde morava, para descansar depois de jogar bola a tarde toda e voltar com o cabelo bagunçado implorando por um milagre.

“Tua pele, tua luz, tua juba...”

Suspiro. Loukás, que tinha também levantado apenas para procurar alguém para conversar e assim, quem sabe, não morrer de tédio, se recolheu de volta para as sombras da sala, bem de fininho, torcendo para não tropeçar e estragar o momento que se desenrolava lá fora.

Ele nunca tinha vivido algo do tipo, mas sua natureza de filho de Eros o fazia capaz de identificar logo de cara o amor que vinha dali. Não o romântico, que era o que ele mais sabia perceber... mas, ainda assim, amor. Um tipo dele.

Então... era assim que devia ser ter uma família...?

Meneou a cabeça. Não importava. Não era problema seu.

Tia Betty estava já nas últimas tranças quando ele resolveu voltar quietinho para o próprio quarto. Iria morrer de tédio sozinho mesmo – como sempre tinha sido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Errar é Divino" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.