A difícil arte de ser eu, Charlie escrita por Charlie


Capítulo 5
Na bad




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Abro os olhos num sobressalto, ainda acreditando estar sob o domínio da areia movediça. Uma onda de confusão, estresse e ansiedade me assolam enquanto olho em todas as direções buscando reconhecer o lugar onde estou: encontro apenas escuridão à minha volta e um suor frio por todo o meu corpo. Apalpo, então, a superfície sobre a qual estou deitado e aos poucos vou sentindo a textura dos lençóis, do edredom, do colchão...

Então estou acordado, é isso?

Ou ainda estou dormindo?

Meneio a cabeça conforme apalpo novamente a textura dos lençóis, do edredom, do colchão... Ok. Estou na minha cama, no meu quarto e não mais dentro daquela alameda ladeada por cedros escuros.

Será?

Foi tudo tão real...

Respiro fundo e tento controlar meus batimentos cardíacos e também minha respiração ao passo em que cruzo as mãos sobre o peito, assistindo as dimensões do meu quarto tomando forma sob a luz do sol que atravessa a janela. Dona Jane sempre me disse que sonhos são, em geral, histórias e imagens criadas por nossa mente, e que os pesadelos não são mais que sonhos angustiantes e que devemos encará-los com naturalidade, já que não passa de uma descarga de sentimentos negativos, uma lixeira na qual o cérebro despeja o peso emocional acumulado durante o dia.

Então tá.

Vire-me de lado — meus joelhos encostam-se a alguma coisa — e busco com um olhar perscrutador o relógio de mesa em formato de TV antiga, azul, retrô, que fica no canto esquerdo da mesinha de cabeceira, ao lado do organizador de metal, simples, mas bonito, que ganhei de presente do meu pai no meu último aniversário: são quatro e meia da tarde. Não acredito que cochilei todo esse tempo.

Ato contínuo, baixo os olhos na direção dos meus joelhos e me deparo com o note e a postagem no Secrets brota em minha mente, mas não de maneira satisfatória, não acompanhada da inebriante emoção que só a vitória pode proporcionar e daí volto a encarar o note e ele me encara de volta, uma espécie de inquisidor cobrando satisfações, me julgando. Isso é um absurdo! Imediatamente sou assaltado por uma reflexão profunda sobre os possíveis pós e contras da minha postagem, da minha doce vingança direcionada ao Ben. Mas tento resistir. Sim. Jogar para escanteio, para o limbo essa crise de consciência covarde e sem noção, pois não estou nem um pouco arrependido do que fiz, não mesmo. Entretanto, essa súbita sensação de integridade, esse pensamento invasivo, catastrófico, sem explicação, esse devaneio negativo é bem mais forte do que eu, e isso é uma merda.

Respiro devagar e profundamente.

Os pensamentos desagradáveis, indesejáveis e estressantes continuam a bombardear o meu cérebro e por incrível que possa parecer sinto um quê de vergonha, como se algo dentro de mim, uma parte de minha alma estivesse enferrujada.

Ok! Ok! Ok! Quem sabe a Elle tenha razão. E tudo isso é uma merda, uma merda e uma merda de novo e de novo.

Não posso acreditar que essa postagem no Secrets vai me infernizar a vida desse jeito. Fui humilhado, desprezado, maltratado e enganado, argumentações suficientes para submeter o Ben às mais diversas e inomináveis situações constrangedoras. Ponto. E essa postagenzinha, fala sério, não é nada diante do que esse canalha realmente merece.

Respiro devagar e profundamente.

Respiro devagar e profundamente.

É. Não foi a toa que o Ben assumiu a forma de uma serpente dentro do bololô que foi esse sonho completamente alucinado que invadiu meu subconsciente numa mistura do “Inferno de Dante” com Salvador Dali e pitadas de “Jogos Vorazes”.

“Arrependimento é um valioso gerador de mudança.”.

Me poupe dona Jane

Sinto a coluna vertebral e os músculos doerem e então retorno à posição anterior, de costas sobre a cama, mirando o teto com determinação implacável e contando até dez apressadamente para então num nanossegundo me levantar com meu note a tiracolo e me atirar sobre a cadeira em frente à escrivaninha, onde deposito o computador com um gesto um tanto violento, ligando-o seguida para, enfim, poder acessar a maldita página do Secrets...

Talvez a minha postagem não tenha sido lida...

Ops! Ledo engano:

 

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Menos mal, concluo, dando de ombros e sem hesitar.

“Charlie, meu amigo, você agiu por impulso. Se vingar de alguém nada mais é do que se igualar a outra pessoa. Você abriu um precedente para que o Ben de réu assuma o papel de vítima nessa história.”.

Merda. Merda. Merda.

Mesmo a contragosto, deleto minha missiva covarde, insultuosa, ainda que acreditando já ser um pouco tarde demais para isso.

Eu te odeio Elle!

Viro-me de supetão para a cama. Com o olhar transbordando ansiedade, busco o meu celular, demorando um pouco para encontrá-lo em meio aos lençóis desalinhados, ao meu caos emocional, mas, por fim, consigo visualizá-lo descansando entre o travesseiro e a cabeceira. Pisco uma, duas, três vezes ao mesmo tempo em que deixo escapar um longo e forte suspiro, um queixume de apreensão, não de alívio, enquanto sigo mirando o telefone;

Quantas ligações perdidas ou mensagens inflamadas deixadas pelo Ben eu irei encontrar?

Nessas horas constato, um pouco aliviado, que não é de todo ruim essa minha mania de manter o telefone no vibracall.

Apoio-me à escrivaninha e me levanto com certa dificuldade. Meus braços e pernas parecem pesar toneladas e uma voz grita em algum lugar na minha cabeça que eu serei merecedor de toda a ira que o meu ex irá depositar sobre a minha alma.

Que seja!

Endireito a postura e caminho, pé ante pé, na direção do aparelho, parando a poucos centímetros de distância aonde ele jaz abandonado. Sem alternativa, fecho os olhos, estico o braço com uma hesitação pra lá de afetada e o trago para bem próximo do rosto enquanto pondero milhares de coisas antes de voltar a abrir os olhos. Graças ao Criador não há nenhuma ligação perdida, nenhum contato do Ben ou quem quer que seja, o que me enche de esperanças. Provavelmente os 1.245 acessos à minha mensagem não foram vistos por pessoas conhecidas ou conhecidas do Ben...

Definitivamente — sim Elle, você está certa — essa minha vingancinha não conseguiu me tirar da bad. Ao contrário, só está me deixando, por incrível que possa parecer, mais agitado, mais estranho, pior ainda, mais infeliz.

Balanço a cabeça, inconformado, jogando o celular de volta sobre a cama.

Preciso de ar!

Corro os olhos até a janela que fica no extremo oposto à entrada do meu quarto e então me dirijo para ela, passando por cima de caixas e sacos pretos espalhados pelo chão, e estaco à sua frente, mantendo a sobriedade de alguns centímetros de distância à medida que levanto o braço direito até alcançar a parte de cima de sua estrutura de madeira para começar a empurrá-la, para dentro, devagar, respeitando o seu mecanismo, até abri-la, parcialmente, fazendo-a tombar sobre sua parte inferior. De imediato meus ouvidos são invadidos por uma mistura de sons, me dando a impressão de que estou na calçada, beirando a rua, e não a quarenta e cinco metros acima do solo. Recuo, então, dois passos, o suficiente para continuar a me sentir seguro. Mesmo morando no décimo andar de um prédio desde que nasci não consigo me acostumar com a altura. Sempre que ouso me aproximar demais da beirada de uma sacada, de uma janela, sinto um mal-estar, uma sensação absurda — e insana— de como seria despencar, como seria a queda livre do meu corpo até atingir o chão.

Recuo mais um passo e com as costas eretas coloco os braços para trás, sobrepondo as mãos à minha bunda e projeto meu tórax e meu pescoço para frente, mas num movimento praticamente imperceptível, apenas o necessário para que eu possa ver, de soslaio, o vai e vem do mundo lá embaixo que não para de se locomover.

Agora faltam menos de 48 horas para deixar toda minha vida para trás. Faltam menos de 48 horas para tomar um avião rumo a um lugar completamente desconhecido, para encontrar pessoas que, apesar dos laços sanguíneos, são tão estranhas como qualquer individuo com que eu possa esbarrar enquanto ando pela rua... É engraçado o mundo continuar a girar do mesmo modo apesar da nossa dor... Preciso me agarrar à esperança, idiota, talvez, de que mesmo diante da decisão incontestável de dona Jane, algo possa acontecer para reter, impedir minha viagem para aquele fim de mundo. Desesperadamente eu preciso acreditar nisso. É o que me resta.

Sinto meu coração afundar e então movo a cabeça lentamente conforme fecho o espaço aberto da janela, não demorando a retornar à posição ereta, recolhendo as mãos das costas para logo em seguida iniciar um movimento de rotação, vagaroso o bastante para que possa passear, com os olhos estreitados, sobre cada canto desse meu refúgio, começando com a minha cama, indo para o criado mudo, a televisão de tela plana, a estante de madeira onde estavam meus Blu-rays e videogames antes de serem encaixotados, o armário de roupas, os posters de alguns filmes famosos dos anos 80 milimetricamente dispostos sobre a parede de cimento queimado... Cada um desses meus objetos tem uma história, cada um deles sempre foi tratado com o devido cuidado, e agora, daqui uns dias, serão jogados dentro de um caminhão para cruzar quilômetros e quilômetros de estrada até chegar, lá em Nárnia, sabe-se Deus como...

Uma sensação de desespero quase incontrolável trespassa o meu coração. Minhas pernas, como se fossem dois gravetos, quase não sustentam o peso do meu corpo e então caminho de volta na direção da escrivaninha, passando novamente por cima das caixas e dos sacos pretos, me deixando cair, por fim, esparramado sobre a cadeira, onde fecho os olhos e com o polegar e o indicador da mão esquerda, começo a massagear as têmporas, fazendo pequenos círculos sobre a pele por alguns minutos no intuito de esvaziar por completo a minha mente, neutralizá-la, pois já não quero mais digladiar com o meu cérebro.

Óbvio que não consigo e muito contrariado abro os olhos e me volto para a mesa e num gesto abrupto empurro o notebook um pouco para o lado e tamborilo os dedos das duas mãos sobre a superfície de madeira, ao mesmo tempo em que sinto uma raiva absurda invadir minhas entranhas, percorrer cada canto do meu corpo até alcançar os meus pulmões, me fazendo perder o controle da respiração por alguns instantes.

Arfando, observo minuciosamente a escrivaninha, como se buscando algo sem saber ao certo o que pode ser, até que a sugestão descabida de dona Jane, sobre aceitar o convite de amizade que Tori enviou pelo facebook, volta a invadir a minha mente como um trem expresso desgovernado.

Quebrar o gelo?

Construir uma relação?

Minha prima está ansiosa por este contato?

Pois eu quero que ela morra.

De soslaio miro o meu note e depois de alguns segundos de hesitação o trago de volta à minha frente, e numa sequência de gestos ininterruptos, abro a página do meu facebook, buscando, de imediato, no canto superior direito da tela, o convite pendente de Bia, mas acabo me surpreendendo com um messenger que ela enviou. Tenho certeza absoluta que desde a última vez que acessei o face essa mensagem não estava aí.

Meneando a cabeça de leve enquanto recupero o ritmo da minha respiração, recosto na cadeira e cruzo os braços, estreitando os olhos sem deixar de afrontar a tela iluminada. O que será que a Narizinho escreveu? No mínimo está implorando para que aceite sua amizade. Qual a parte do meu silêncio e do meu desdém ela não conseguiu compreender?

Descruzo os braços e me inclino para frente, puxando todo o ar que consigo reter, quase arrebentando os meus pulmões e então acesso a página, a famigerada página da minha prima, tomando o cuidado, claro, de manter intocados, ignorados por completo sua inconveniente solicitação de amizade e o seu messenger. Me deparo com sua foto de perfil, claro. A mesma foto de perfil que havia visto antes, quanto tentei conhecer essa prima distante, alguns dias depois da notícia de que eu iria parar no quinto dos infernos. Contudo, Tori me parece, agora, completamente diferente, o que é um absurdo. Talvez eu esteja, ainda, sob a influência maligna de algum resquício daquele maldito pesadelo...

Semicerro os olhos e então passo a examinar meticulosamente cada traço da imagem de Tori: olhos bondosos, inteligentes, uma pele perfeita e um sorriso encantador atravessando todo o seu rosto...

 

UMA PELE TODA TRABALHADA NO PHOTOSHOP E UM SORRISO FORÇADO, ISSO SIM,

constato sem me preocupar com o meu tom mordaz.

 

Essa garota deve ser uma falsiane, como eu já havia previsto. Assim que soube que eu estava sendo deportado, não pensou duas vezes e tratou de revirar o meu facebook pra saber tudo a meu respeito. Deve se comportar naquele fim de mundo como a mais meiga das jovens, dando a impressão de ser uma criança desamparada, de expressão tímida, doce, deferente aos idosos e com opiniões flexíveis, aplicando essa receita perfeita em cima daqueles matutos para se tornar amada por todos.

Já estou até vendo essa pessoa desfilando comigo de um lado para o outro, me apresentando para os seus conterrâneos como um troféu, me usando como um estandarte, o primo da cidade grande, para transformá-la em alguém visível, resgatando-a do seu mundinho preto e branco. Uma insossa, isso que ela é, murmuro entre os dentes, com desprezo, fixando um olhar impassível sobre a foto à minha frente, como se com esse gesto pudesse fazer Tori desaparecer do planeta.

Assim como acredito que existem almas gêmeas, ou pessoas que gostamos do nada, sem grandes esforços, eu também levo fé na antipatia imediata que sentimos por alguém, sem maiores explicações... Não conheço essa prima distante, mas apenas essa sua fotinha ridícula com esse seu ar pedante por trás desse sorrisinho cretino já me fez ver que não seremos nem sequer colegas. E me conheço muito bem para saber que não vou mudar de opinião. Ela pode enganar a minha mãe, afinal, é de dona Jane a ideia de se mudar para Nárnia, então nada mais natural que esteja desesperada por reconquistar os laços que deixou pra trás, mas eu não vou me deixar dobrar. Não mesmo. Não conheço essa tal Tori e nem tampouco minha tia, mãe dela, ou até mesmo minha avó ou qualquer outro ser humano que o destino quis que se tornasse meu parente consanguíneo. Serei um legítimo estranho no ninho e vou permanecer assim até o ano que vem, quando completar dezoito anos e ganhar minha liberdade civil de ir e vir.

A imagem de Tori agora parece me fitar, um tanto desafiadora, arrogante, presunçosa e até mesmo intimidadora. Decido, sem pestanejar, que vou continuar não querendo saber nada sobre essa prima. Não vou lhe dar esse cartaz.

Com um movimento beirando o irascível, saio da página inicial do facebook dessa poser e desligo o note com mais raiva ainda e o fecho com tanta força a ponto de fazer tremer as estruturas da escrivaninha. Shakespeare é quem estava certo quando disse que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, mas vazia de significado. Nessas últimas semanas minha existência está se transformando cada vez mais e mais num verdadeiro inferno, e o que eu estou fazendo para que isso mude? Nada! Pareço uma barata tonta mergulhada num mar de irritação e impotência, apostando numa passividade milagrosa. Chega de ficar chafurdando nesse oceano de sentimentalismo barato. Vou sair, vou ver o sol, ver gente e aproveitar ao máximo minhas últimas horas na civilização.

É isso!

Com agilidade similar ao Mercúrio, dos X-Men, salto da cadeira em direção à minha cama, onde me inclino rapidamente para apanhar o celular, e tropeçando nos meus próprios pés, consigo chegar até a porta, abrindo-a de supetão, projetando-me para o corredor sem olhar para trás, como se minha permanência sobre o planeta dependesse dessa sequência de gestos desvairados. Já do lado de fora, um tanto resfolegante, após recuperar o equilíbrio do meu próprio corpo, fico parado de costas para a entrada do quarto e demoro alguns segundos antes fechar com extrema satisfação a porta atrás de mim enquanto enfio o telefone no bolso da bermuda.

Quem sabe no futuro eu vou achar engraçado tudo isso que está acontecendo comigo nesses últimos dias, reflito, dando de ombros e arqueando uma das sobrancelhas à medida que passeio os olhos pelos nichos, espelhos, quadros simples e efeitos luminosos que decoram o estreito — e extravagante — corredor do nosso quase ex-apartamento. Aliás, não me surpreende que seja o único cômodo ainda intacto diante do caos de caixas, caixotes, móveis, malas e tantos outros cacarecos. Não posso sequer imaginar a fúria de titãs que os pobres coitados responsáveis pela nossa mudança encontrarão pela frente quando dona Jane os vir invadindo esse espaço. Minha mãe trata esse corredor e cada um dos seus objetos como se pertencessem ao o museu do Cairo com sua coleção de antiguidades faraônicas. Tenho certeza que esses profissionais vão preferir mil vezes ter enfrentado as lendárias maldições que envolvem a tumba de Tutancâmon.

Endireitando os ombros, caminho, em linha reta, na direção da sala, como um soldado sob as ordens incontestáveis de seu superior, e encontro dona Jane sentada sobre um lençol aberto, também bege, como o seu jaleco, só que num tom mais escuro, que está estendido de uma ponta a outra do sofá, cobrindo-o totalmente. Ela parece estar tão envolvida, concentrada colocando objetos em caixas e depois etiquetando cada uma delas para fazê-las se juntar às que já estão espalhadas no seu entorno, que sequer reparou a minha presença.

Desde que anunciou a DÉSPOTA decisão de migrarmos para sua cidade natal, percebi o quão estranhamente motivada minha mãe vem agindo ao organizar tudo o que diz respeito a essa mudança. Não consegui até agora identificar qualquer sinal de incômodo ao vê-la dando uma geral nos armários, separando roupas e objetos pessoais e até mesmo alguns aparelhos elétricos tanto pequenos ou de médio porte, colocando meticulosamente tudo nas caixas enviadas com antecedência pela empresa de transporte, que a muito custo resolveu atender, em caráter de exceção, a esse seu pedido.

Como dona Jane está conseguindo processar tão bem essa situação? Eu até posso entender que lá, em Tão, tão distante, estejam suas raízes, o seu passado, mas e a história que ela criou aqui, nesses quase vinte anos de Rio de Janeiro? O trabalho no seu PRÓPRIO consultório, que ela sempre se orgulhou de manter, chegando mesmo, em algumas ocasiões, deixar a mim e ao meu pai de lado ao trazer para casa pastas, laudos médicos, manuscritos, folhas soltas, com o argumento de que precisava analisar o problema grave de algum paciente?

Chega a soar controversa essa reação de euforia que está vivenciando, afinal, dona Jane sempre relatou a vida que levava na sua cidade natal de forma superficial, utilizando-se sempre de expressões lacônicas, dando a impressão de que não se sentia à vontade em falar sobre o assunto, buscando encerrá-lo prematuramente, sem vacilar.

Se algum dia eu tivesse sequer ousado nutrir o desejo de tentar criar laços com qualquer parente que viveu ou ainda vive naquele lugar, naturalmente teria me sentindo desmotivado. Só tive contato com esse lado da família uma única vez, aos cinco anos de idade, quando dona Jane me levou para o enterro do seu pai, e até onde consigo lembrar, saímos do cemitério antes mesmo do caixão receber a primeira pá de terra. E agora, diante de uma adversidade, decide retornar para o mesmo lugar de onde fez questão em se manter distante? E pior, me levando como cúmplice, querendo que eu entenda e faça parte desse imbróglio? E como se já não bastasse isso tudo, quer que eu me torne amigo de infância da minha prima? Ah, tá. Realmente o bardo inglês sabia das coisas quando sugeriu existir mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens pode imaginar.

— Vou dar uma volta — comunico à dona Jane enquanto continuo testemunhando a sucessão de gestos que ela pratica, colocando, tirando e escolhendo a caixa adequada onde cada coisa deverá ser guardada... Fico cansado só de olhar.

— Não demore querido. Não se esqueça da sua festa de despedida hoje à noite — ela reivindica num quase murmúrio, sem levantar a cabeça, e graças ao Criador, aleluia!, sem demonstrar qualquer resquício de aborrecimento sobre a conversa que tivemos hoje, no final da manhã...

Como minha mãe consegue ficar tão egoisticamente alheia à minha dor? Às vezes sinto como se fôssemos dois continentes de experiências e sentimentos incapazes de se comunicar...

Respondo, por fim, que logo estarei de volta e me dirijo à porta a passos largos ao mesmo tempo em que retiro de supetão o celular do bolso da bermuda e posto na página do meu face a hashtag #partiuposto4 acompanhada de uma selfie em que tento sorrir naturalmente. Quero ver a praia. Talvez o mar me ajude a expurgar boa parte dessa confusão mental, desse suplício... E Botafogo, definitivamente, não é o lugar adequado pra essa empreitada.


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