Tábua de Esmeralda escrita por Paulie


Capítulo 1
Tábua de Esmeralda


Notas iniciais do capítulo

O modo como Druig pergunta especificamente como Makkari conseguiu arranjar a Tábua de Esmeralda me fez pensar: e se ele perguntou isso porque ele próprio tinha um dedo nesse feitio? Pois bem.



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Tábua de Esmeralda

Fazia séculos desde que Druig havia visto Makkari pela última vez. O pensamento de procurá-la era uma constante desde a separação, porém nunca havia levado a ideia à frente. Se ela, velocista que o era, poderia encontrar-lhe em menos de um minuto em qualquer lugar do mundo se assim o quisesse nunca havia vindo atrás dele - mesmo ele tendo ficado exatamente no mesmo lugar pelos últimos quase 500 anos, desde que sua aldeia se instalou ali -, o mais provável era que ela não quisesse vir.

E ele entendia porquê não. Ele sabia que Makkari não concordava com seu ponto de vista sobre interferência nos conflitos humanos, sabia que ela acreditava que deviam deixar os humanos resolverem seus próprios problemas, que isso os ajudaria a desenvolver, a evoluírem, a tornar-se melhores a longo prazo. Druig nunca teve a paciência para imaginar as coisas a longo prazo - e muito menos o otimismo para ver um futuro tão brilhante assim. 

Os primeiros anos foram solitários, sem todos por perto. Não sentia falta do ego de Ikaris, ou do que Sprite podia fazer quando estava mais entediada que o normal. Não sentia falta das regras e normas que o rodeavam a cada minuto, que o impediam de realmente usar o seu poder, que o impediam de fazer o que era capaz. Mas estaria mentindo se dissesse que não sentia falta de Phastos murmurando consigo mesmo ao criar um novo projeto, ou de Sersi sempre correndo de um lugar para o outro, atrasada em tudo que fazia. Ou de Makkari. 

No primeiro século, construiu com parcimônia a aldeia. Cada vez menos tinha de intervir em brigas e discussões, cada vez menos se via obrigado a estender seu controle mental sobre os moradores. Pouco a pouco, a aldeia cresceu e aprenderam a lidar com o novo ambiente. Pouco a pouco, se tornou uma casa para cada um daqueles humanos. 

Depois desses cem anos, o trabalho havia diminuído consideravelmente. Embora ainda tivessem de fazer pequenos reparos, melhorias e uma viagem relativamente longa a cada verão e inverno para o centro comercial mais próximo, Druig tinha a maior parte do dia apenas para si. Foi por volta dessa época que começou a espiralar em seus próprios pensamentos: como Makkari estaria? Onde ela estaria agora? Estaria correndo pelo mundo, cada dia em um lugar, uma nômade praticamente invisível? 

Às vezes, a saudade era tanta, que se pegava sinalizando para si mesmo algumas frases. Não queria estar enferrujado quando voltasse a se encontrar com ela, era o que dizia a si mesmo. 

Não durou muito seu período ocioso. Nas décadas finais do século XVII, alguns batedores espanhóis começaram a alcançar sua aldeia, procurando por riquezas e espaço para expandirem o domínio. Conseguiu controlar os primeiros para que se esquecessem do que tinham visto, para esquecerem da terra e deles. Mas quando começaram a vir em grupos maiores, um após o outro, ele precisava ter concentração e atenção constante para impedir que a guerra alcançasse seu homizio. 

Apenas após a proclamação da independência do Peru, já em 1821, ele conseguiu liderar pessoalmente um grupo para a transação comercial da estação. Foram até Lima, a grande cidade portuária na tentativa de se abastecerem para o inverno, comprarem tecidos e os suprimentos que haviam se esgotado desde a última compra. 

Foi uma caminhada longa: andaram por sete dias para chegarem ao seu destino. A cada vez que vinha a Lima, Druig sentia o quão a sociedade estava mudada, o que reforçava sua necessidade de proteger sua aldeia de todos os males. Porém, a cada vez que vinha, também conseguia identificar um novo progresso em que era quase como se pudesse ler a assinatura invisível de Phastos. Na primeira vez que viu um automóvel, gargalhou sozinho sem perceber. 

De modo geral, supervisionava os habitantes da aldeia com o fundo da mente, mas deixava-os fazer todas as compras enquanto andava pela cidade. Gostava de entrar em pequenos cômodos de comércio aleatórios, daqueles que eram tão pequenos que passavam despercebidos para qualquer visitante menos atento. 

Em uma das ruas secundárias, encontrou uma loja que era apenas uma porta de vidro, rodeada por quase nenhuma parede cor-de-rosa. “Antiqués”, dizia uma placa de madeira sobre a porta. Um sino ecoou quando ele entrou. 

— Já vou aí, senhor - um homem detrás do balcão disse a ele assim que o viu, retornando em seguida a conversa com um senhor de idade - Essa é uma miniatura idêntica às colunas do Templo de Ártemis, eu posso garantir ao senhor.

Havia muitas coisas empilhadas em prateleiras. A organização não parecia fazer sentido algum, ele pensou, quando viu um conjunto de xícaras de porcelana próximo de um vaso mortuário.

— E o senhor já foi na Grécia por um acaso? Pra me garantir com tanta certeza. 

— Meu filho passou os últimos dez anos indo atrás de relíquias históricas. Ele visitou todo o mundo procurando restos da história. Hoje mesmo ele está morando no Egito, está atrás daquela coisa de Esmeralda. Ele diz que, se encontrar, vai conseguir vender o segredo de fazer ouro a partir de qualquer coisa, até mesmo água! 

A audição de Druig foi como que atraída para a voz dele assim que ouviu Esmeralda. Já não ouvia a palavra há anos, mas todo o tempo que passou junto à Makkari o fez lembrar de como ela a queria. “A Tábua de Esmeralda que está procurando é um mito!”, podia ouvir a resposta daqueles homens, ainda na Babilônia. Mas ela insistia na busca. Será que já a havia encontrado, nesse tempo que estavam separados? 

O idoso deu um suspiro descrente, enquanto dava meia volta e saia do estabelecimento, batendo ruidosamente sua bengala no chão. Poucos segundos depois, o vendedor havia dado a volta no balcão e estava a seu lado.

— E o que o senhor está procurando hoje? 

— Não estava procurando nada. Mas agora me interessei naquela coisa de Esmeralda que seu filho achou.

— Quer dizer, ele não achou. Ele está procurando. Diz estar perto, mas ainda não encontrou.

— Seu filho te visita com frequência? 

— Não sei porquê o senhor está me perguntando isso - ele disse, com desconfiança no olhar. No próximo segundo, suas orbes eram tão douradas quanto o ouro que havia mencionado - Já faz sete anos da última vez que ele veio aqui. 

“Se você não contar pra ela, eu não conto”, ele recordava de cada sinal que ela havia feito. 

— Acho que é hora de mandar um telegrama pro seu filho, você não acha?

Druig e os moradores da vila ficaram mais uma semana em Lima. Todos os dias, ele retornava até a loja de antiguidades para ver se já havia o filho já havia respondido. Não sabia o que faria com essa informação. Iria ir atrás do artefato, atrás de Makkari, entregar a Tábua a ela? E então o quê? Estava sendo ridículo. A cada dia, ao ir dormir, se convencia que aquilo não fazia sentido, que partiriam no próximo dia pela manhã. E a cada dia, ao amanhecer, lá estava ele fazendo o sino ressoar mais uma vez. 

Na manhã do oitavo dia, um telegrama o aguardava. O rapaz não havia encontrado, mas havia encontrado vários objetos árabes em uma região, e acreditava que a Tábua não poderia estar muito longe. 

Seria uma dica válida? Seria uma pista verdadeira? Qual a chance de o rapaz estar apenas tentando animar o velho pai, estar mascarando o seu fracasso?

E o que ele poderia fazer com isso, de qualquer maneira? Nem ao menos sabia onde no mundo Makkari estava. Suspirou. Era insensatez, tentava argumentar consigo mesmo. Inutilmente, aceitou a realidade, já que no mesmo dia foi até o porto. 

Se aproximou de toda uma tripulação que arrumava um navio que desembarcaria em breve. Primeiro, deu descrições físicas de Makkari, um retrato falado, para que espalhassem e tentassem saber notícias dela. Depois, relatou algumas das histórias que poderiam estar relacionadas: pequenas tempestades de areia passageiras sem explicação; furtos impossíveis de grandes obras, alguém que era capaz de correr tão rápido quanto um trem. Ordenou que retornassem a ele assim que conseguissem encontrar alguém que se encaixasse em tudo que ele lhes disse. Qualquer notícia poderia ser deixada com o velho senhor do antiquário, instruiu a eles.

Voltava a Lima a cada dois meses, em busca de notícias. Sem os moradores da aldeia viajando junto a ele, conseguia fazer a viagem em menos tempo, impondo um ritmo acelerado a seus passos. No sexto mês, conseguiu para si um cavalo, o que economizou ainda mais tempo.

— O que o leva tanto à cidade? Você nunca deixou a vila com essa frequência antes - Enrique o abordou um dia, enquanto amarrava um pequeno suprimento para a viagem ao seu cavalo. 

Enrique era o filho de Julho, que era o filho de Manuel. Uma família que assumiu a posição de médicos da aldeia sem que lhe fosse pedido, apenas porque todos mostravam uma predisposição ao cuidado dos doentes. 

— Alguns assuntos inacabados, isso é tudo. 

— Com sua outra família? Avô Manuel sempre nos contava as histórias sobre sua família de heróis: a líder que curava, a gentil que fazia florescer, a astuta que corria o mundo em segundos. 

— Em parte.

— Sente falta deles? 

— Às vezes. - ele não conseguia responder qualquer coisa mais elaborada que isso. 

A aldeia era sua casa, mas preferia ficar um pouco afastado. Adorava aquele lugar e aquelas pessoas, mas sabia que todas elas morreriam e ele ainda estaria assim. Não conseguia se forçar a fazer amizades com prazo de validade determinado, não conseguia se forçar a se apegar mais que o inevitável. Estava presente nas festas de nascimento e nas festas de casamento, estava presente para prestar as condolências no momento da morte. No restante do tempo, ficava sozinho o quanto conseguisse.

— Druig, nós conseguimos nos manter. Você não precisa estar aqui o tempo todo, se não quiser. Sabe disso, certo? Estamos nessa terra há trezentos anos, esta é a nossa casa. 

— Também é a minha - disse, montando em seu cavalo - Não demorarei em Lima. 

Foi apenas após um ano e quatro meses que ouviu notícia de algum dos marujos. No auge da revolução que estava acontecendo na França, corria entre os nobres o burburinho de nunca deixar nem uma fresta da janela aberta. Não por causa dos estudantes, não por causa das prostitutas, não. Mas por causa dela : a dama de fumaça. Ela nunca havia machucado alguém, muitos duvidavam inclusive de sua existência. Mas por onde ela passava, diziam, suas heranças de família desapareciam. Os Durand mostravam para quem quisesse ver: onde antes estava uma legítima espada que seu antepassado havia usado em uma Cruzada, ali, bem do lado de um exemplar do Torá, agora não tinha nada se não lembrança. Lembrança dos artefatos, lembrança do borrão vermelho que passou por eles. 

Era isso, Druig pensou. Não havia outra explicação senão Makkari. Ela nunca conseguiu mesmo ficar longe de artefatos misteriosos.

Voltou para a aldeia. Havia conseguido a informação que queria, sabia que Makkari estava na França. Não podia deixar sua aldeia, não podia deixar aquele povo. Não queria deixar aquele povo. Mais uma vez, o fato de que ela nunca havia vindo atrás dele, de que ela nunca havia tentado encontrá-lo ou tentar qualquer tipo de comunicação foram decisivos. 

Não poderia apenas deixar aquela informação perdida consigo mesmo, ele não conseguiria fazer nada de bom com ela. Decidiu então dar a ela aquilo, a informação. Na próxima ida à aldeia, encontrou um outro marujo que partia, dessa vez com destino em Dunquerque. 

— Preciso que você dê um recado. A Tábua de Esmeralda, o segredo da pedra filosofal, está em Alexandria. 

— Pra quem devo dar esse recado? 

— Para toda a França. 

Ele sabia que ela captaria as vibrações de uma notícia importante no ar. Makkari sempre conseguiu distinguir mais do que ninguém as vibrações que mais interessavam a ela. 

Esperava que fosse o suficiente. Esperava que ela conseguisse. Porque era tudo que tinha para dar nesse momento. Se embrenhou novamente por entre as árvores da Floresta Amazônica.

Desde essa viagem, delegou aos moradores da vila os contatos comerciais e viagens a Lima. Mantinha a ligação ativa, pronto para contornar qualquer problema que surgisse com qualquer um deles, mas não saia da aldeia. Também não recebiam visitantes, eram praticamente autossuficientes, buscando o que não conseguiam produzir nessas viagens. 

Achou que passaria o resto da sua vida ali. Achou que nunca mais sairia do território da aldeia. Até que os Eternos vieram lhe procurar. Ajak estava morta, ninguém falou nada sobre Makkari ou Phastos. Estariam eles mortos também? Preferia não pensar nisso.

E como podia recusar acompanhá-los? Como ele, que sempre defendeu interferir e ajudar os humanos naquele processo, que sempre defendeu interferir nas mortes desnecessárias e evitáveis, poderia virar as costas para todo aquele sofrimento? 

Estavam em um avião para o Oriente Médio. Makkari não estava morta, afinal, estava no Domo. Depois de quinhentos anos, frente a possível destruição de tudo que eles conheciam, se reencontrariam.

O grande cômodo que era o laboratório de Phastos estava empilhado com artefatos. Um sarcógrafo, um trono, estátuas, milhares de livros e obras de arte. E Makkari estava lá, sentada no centro da sala, lendo um livro. 

Sentia falta dela, mas naquele momento, é como se estivesse sufocando. Como se nos últimos quinhentos anos tivesse conseguido criar um compartimento para Makkari no fundo de sua mente: sempre presente, mas de certa forma limitado. Era como se agora, que ela estava ali diante dele, a membrana tivesse se rompido e expandido para ocupar cada parte do seu corpo. 

Kingo havia tomado posse da atenção de Makkari - e pelas últimas horas ao lado dele, Druig percebia que os anos haviam apenas acentuado sua personalidade e seu falatório. Andava por meio daquelas antiguidades: então, ele estava certo. Ela continuava com a sua tendência a ter a mão um pouco leve demais. Aquilo era uma escultura em uma placa de ouro puro? Como ela havia transportado isso até aqui? 

E então viu, na mão de Ikaris: um objeto retangular, quase como um caderno, tão verde quanto possível. Realmente seria a Tábua de Esmeralda? Será que ela já tinha conseguido naquela época, que seus sussurros haviam ajudado ou que nunca haviam a alcançado?

Se aproximou dela, com a Tábua na mão. 

— Então, como conseguiu arranjar essa Tábua de Esmeralda, minha bela, bela Makkari?

Makkari sorriu, pegando a Tábua. Se ela estava sorrindo, talvez nada tivesse mudado. 

— Sentiu minha falta? - ele perguntou, também sinalizando, não conseguindo fingir que não havia ele próprio sentido tanta a falta dela.

Foi apenas à noite, quando apenas Phastos ainda estava de pé, terminando o projeto, que ele conseguiu conversar com ela novamente. Andou pelos corredores que sempre ecoavam da Domo, até onde antigamente era o quarto dela. Será que ainda dormia lá? Bateu na porta, e aguardou. 

Ela abriu a porta com um sorriso, e antes de mais nada, jogou seus braços ao redor do pescoço dele. Abraçou sua cintura, puxando-a para perto de si. 

“Senti sua falta”, sinalizou, abrindo passagem para que ele entrasse no quarto.

— Ficou sozinha na Domo todos esses anos?

“Claro que não! Saía para buscar as obras, tinha de procurar por coisas que ninguém sabia onde estava. Eles perdem tudo em uma questão de centena de anos, sabia?”

— E quando conseguiu a Tábua de Esmeralda? Achei que era um mito. 

“Quando você mandou aqueles marujos para me contar do paradeiro dela”, sinalizou, com um sorriso de lado, enquanto observava o rosto dele. 

— Como sabe que fui eu? 

“Ah, por favor, Druig. Eu te conheço.” 

— Não, sério - ele riu - Como sabia?

“Eu te visitei, na aldeia, várias vezes. Você sempre estava lá, em sua cabana. Até que em um ano que fui, os moradores comentavam sobre como você saia sempre agora. Meses depois coincidentemente um sussurro sobre a Tábua. Só não entendo por que não veio me contar, não veio me ajudar a procurar.”

— Nunca soube das suas visitas. Achei que, depois que fui embora, você não concordasse comigo, e não queria me ver. Então, apenas torci para que você conseguisse recuperar a Tábua, sei o quanto sempre quis isso. Por que nunca me contou das visitas?

“Você estava feliz”, ela deu de ombros. 

— Ficaria ainda mais contigo.

Ele se levantou. 

— Temos um Celestial para adormecer, e então teremos tempo para conversar. Bons sonhos, minha bela, bela Makkari. 

“Obrigada pela Tábua. E por se preocupar comigo mesmo estando longe”. 

Ela se levantou e o abraçou mais uma vez, colando as testas deles. Tudo ficaria bem. 


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Notas finais do capítulo

Sinto que poderia escrever infinitamente sobre eles dois. Mas também sinto que não preciso escrever muito, ou grandes cenas, ou grandes beijos, grandes demonstrações. Porque eles são assim, e conquistaram o coração de muita gente apenas com migalhas.
De qualquer forma, sinto que ainda não acabei de escrever sobre eles. Tenho mais alguns rascunhos aqui que talvez vejam a luz do dia, ou talvez guarde apenas para mim. Ainda não sei.

Espero que tenham gostado.

Beijinhos e talvez até a próxima!



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