A fada que o escreva escrita por Creeper


Capítulo 8
Um banho sob o luar


Notas iniciais do capítulo

Ho ho ho! Um presente de Natal para vocês!
Estou postando esse capítulo de madrugada, então perdoem se tiver algum errinho.
Eu gosto dessa época do ano, mas sempre fico chateada porque não acontece nada de especial. Enfim, eu desejo a vocês uma ótima leitura e boas festas ♥!



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Fechei a porta e encostei-me nela, deixando que meu corpo escorregasse um pouco por causa do enjoo e da tontura. Estar naquela sala era como ganhar um peso invisível em meus ombros.

Dante não se intimidou, pelo contrário, caminhou por toda a sala, tocou o que estava ao seu alcance e vasculhou onde podia e não podia com um semblante concentrado e mãos ágeis.

— Não é de se surpreender que Yona tenha sido possuída. – ele olhou ao redor. – Esse lugar é uma atração para espíritos e demônios. Yona devia estar vulnerável quando veio aqui, por isso conseguiram entrar no corpo dela.

Cerrei os dentes e me encolhi em meu canto, torcendo para não estar vulnerável.

— Mas eu nunca vi os símbolos desse círculo. – contou. – Seja lá quem os criou, não pode viver em nossa sociedade.

— E o que faremos? – observei as chamas das velas oscilarem.

— Vamos seguir o caminho que fizeram. – pousou o dedo sobre um pedaço de pergaminho amarelado. – Do nosso jeito.

Intrigado, aproximei-me e avaliei o papel emoldurado por bordas chamuscadas e cheio de buracos em seu interior, entendendo que se tratava de um mapa de Enginóvia. Algumas cidades possuíam um “X” sobre seu desenho e outras estavam circuladas, como por exemplo, a de Pomar.

— Não me diga que isso são pontos… Pontos de onde estão fazendo isso. – olhei para o círculo no chão.

Dante observou o mapa por mais alguns segundos, ponderando. 

— São as cidades com maior aparição de demônios ultimamente. – ele guardou o mapa de volta no meio dos livros. – Precisamos ir para o nosso próximo destino. Vamos pular a cidade de Barradas e ir para Solene, não pensariam em nos procurar lá.

Eu estava prestes a dar todo o meu apoio quando um barulho ecoou pelo corredor de onde viemos. Não eram os ratos ou o vento uivando, era algo muito pior: o alçapão sendo fechado. Alguém havia entrado no túnel.

— Nos acharam. – cerrei os dentes e Dante arregalou os olhos. – Vamos pela passagem do balcão. – apontei para uma outra porta de madeira.

O exorcista concordou de maneira perturbada e fez menção de tomar a frente, todavia, nosso plano foi por água abaixo com o som de algo se arrastando sobre nossas cabeças e passos descendo a escada atrás da porta.

— Temos problemas. Dos dois lados. – avisei.

Batemos nossas costas uma na outra e cada um ocupou-se em encarar uma das portas, assumindo posturas de combate. Passei a mão pelo interior de meu sobretudo e acabei encontrando algo mais interessante do que o bastão.

— A gente vai morrer? – o suor escorreu por minha testa.

— Está preparado para isso? – ele colocou a mão em sua corrente.

— Nem um pouco. – franzi o cenho.

— Então não vamos. – Dante disse confiante.

É, não íamos.

A porta da passagem do balcão foi a primeira a se abrir, revelando o homem magrelo e banguela que segurava um pé de cabra. Seus olhos escuros faltaram saltar do rosto ao nos ver e ele teria rangido os dentes se tivesse todos.

Já a porta da passagem do casebre expôs o médico que segurava um punhal e carregava um ar de indiferença. Diferente de Enrico, ele não se surpreendeu conosco.

— Você fez o favor de descer aqui e me poupou o trabalho de te envenenar. – Dr. Becker apontou a lâmina na direção de Dante. – O que você realmente é? Um guarda? Um detetive? Deve ser dos bons para ter encontrado a passagem...

— Argh, esse lugar fede! – reclamei. Dante fitou-me por cima do ombro depois de ler o que Sybelle escreveu, completamente confuso. – Eu tamparia meu nariz se pudesse.

O exorcista ergueu as sobrancelhas por um instante e fez um aceno discreto com a cabeça.

— Doutor, o que eu faço com esse aqui? – Enrico afobou-se e apertou o pé de cabra em suas mãos.

— O coloque para dormir. – Dr. Becker ditou.

Na verdade, eles quem iriam dormir. Puxei para fora de meu bolso três pequenas esferas de vidro e dessa vez não havia água benta dentro delas, mas sim uma fumaça branca misturada ao Pó das Mil Noites: o elemento que fazia qualquer um ter plenas horas de sono.

Joguei duas delas no chão com toda a força, partindo-as em centenas de cacos e a terceira foi parar diretamente no rosto do doutor. Assim como eu, Dante foi rápido em cobrir seu nariz com a mão enluvada. Sem tempo a perder, usei meu bastão para empurrar Enrico e alcançar a porta.

Subi as escadas o mais rápido que pude, levando em consideração que usava uma única mão para segurar os degraus. Eles grunhiram e praguejaram contra nós, entretanto, suas vozes cessaram e pude ouvir seus corpos atingindo o chão.

Ofeguei ao chegar ao primeiro andar do consultório e puxei Dante de maneira desajeitada, fazendo com que ambos caíssemos no chão empoeirado. O rapaz empurrou o balcão para cobrir novamente a passagem e agarrou-me pela manga do sobretudo, arrastando-me para fora daquele lugar.

Corremos pelas ruas de pedra sentindo o vento levando nossos cabelos para trás e o ar faltando em nossos pulmões. Ignorando totalmente os olhares interrogativos dos cidadãos, paramos de correr apenas quando conseguimos carona em uma carroça de feno que nos levaria até o campo mais próximo. 

Deitado na maciez rústica e com a certeza de ter dezenas de fiapos de palha em minhas madeixas, me permiti fechar os olhos e dar adeus a horrível cidade de Pomar, rezando para que quando o efeito do Pó das Mil Noites passasse, já estivéssemos longe o bastante.

***

A carroça parou em uma bifurcação na estrada de terra após um percurso de uma hora cheio de balanços e solavancos. O céu laranja era tomado por um tom arroxeado, o que indicava que a noite logo cairia sobre nós.

— Desculpem, só posso trazê-los até aqui. – o senhor arrumou o chapéu gasto que protegia seus cabelos cinzentos. – Minha esposa não gosta que eu dê carona para desconhecidos. – riu sem jeito.

— Aqui está ótimo, agradecemos a ajuda. – Dante saltou da carroça e fez uma breve reverência, repeti seu movimento um tanto mais desengonçado por causa do enjoo da viagem. 

— Tomem cuidado, eu soube que tem criaturas estranhas à solta. – ele encolheu os ombros e apertou as rédeas do jumento. – Agora preciso ir. Boa sorte. 

A carroça seguiu por um dos caminhos da bifurcação enquanto o senhor nos mandava um singelo aceno. De soslaio, observei Dante juntar as mãos e fechar os olhos por alguns segundos.

— O que está fazendo? 

— Uma prece. – abriu os olhos. – Ele é uma boa pessoa, espero que chegue em casa logo.

Um sorriso de canto se desenhou em meus lábios. No final das contas, Dante também era uma boa pessoa. Apoiei a maleta no chão, coloquei as mãos na cintura e avaliei as opções da estrada: uma levava para Barradas e outra para Gengibra. 

— Podemos chegar a Solene passando por Gengibra, não? – apontei.

— Seria mais rápido usar o atalho da floresta. Apesar de mais perigoso. – Dante indicou os arbustos e as enormes árvores que se erguiam à nossa esquerda.

Segurei o queixo e varri os pés com os olhos, pensando em qual dos caminhos eu tinha maiores chances de continuar vivo por mais tempo. Respirei fundo e exclamei:

— Vamos pela floresta, pelo menos dá para se esconder melhor.

Dando adeus a estrada de terra e olhando uma última vez para trás a fim de ter certeza de que não fomos seguidos, passamos pelos arbustos e adentramos a floresta. Entreguei um de meus colares luminosos para Dante, por mais que ele dissesse que seus olhos já estavam acostumados com a escuridão.

Parei para prestar atenção nos sons da floresta: os grilos cricrilavam, as folhas chiavam ao serem balançadas pelo vento e ao longe era possível ouvir o coaxar dos sapos.

— Ei, quando eu consegui escutar os murmúrios… – olhei para o chão. – Você falou algo sobre uma sétima maldição. O que é isso?

— Ah, aquilo… – Dante afastou um cipó na altura de sua cabeça. – Durante nosso treinamento, recebemos as sete maldições do exorcismo. São elas que nos ajudam em nossos trabalhos.

— E quais são as outras seis? – indaguei curioso. 

Confesso que tinha um pouco de medo dos exorcistas quando estudava na guilda. Eles ficavam em um andar diferente da turma dos exploradores, porém, quando acontecia de cruzar com alguns deles, sempre recebia olhares ameaçadores ou sentia um arrepio.

— A primeira é sentir os espíritos. A segunda é vê-los. A terceira é ouvi-los. A quarta é falar com eles e a quinta é lhes dar ordens. Essas duas últimas são consideradas bênçãos ao invés de maldições. – ele deu uma risada abafada carregada de desdém. – A sexta é ver a névoa.

— Espera, qual a diferença entre a terceira e a sétima? – arqueei uma sobrancelha.

— Na terceira, você escuta o que eles querem te dizer naquele momento em que você os vê. – Dante explicou. – Já na sétima você escuta apenas resquícios.

Assenti um tanto fascinado. Talvez fascinado até demais, porque esqueci de prestar atenção por onde andava.

Ao dar o próximo passo, o chão faltou sobre um de meus pés e o coração falhou uma batida. O outro pé escorregou e Dante gritou por meu nome esticando seu braço para me segurar, todavia, o que aconteceu foi que agarrei a manga de seu sobretudo e puxei-o em minha direção.

Nossos corpos atingiram o duro barranco simultaneamente e rolaram por seu declínio, erguendo uma nuvem de poeira. Enquanto rolava e tentava me proteger das pedras e galhos que arranhavam minha pele e roupas, avistei a lua saindo detrás das copas das árvores, cheia e brilhante, rindo de nós. 

Um baque surdo e o toque suave da grama me ajudaram a perceber que havíamos parado de rolar barranco abaixo. Minhas irises ainda giravam e o estômago devia ter ido parar no lugar do coração, além da dor gritante em minhas costas.

— Isso doeu! – sentei-me sobre as pernas e coloquei as mãos entre os joelhos.

— Engole o choro. – Dante levantou-se e bateu em sua roupa para retirar a sujeira, o que seria impossível, já que seu sobretudo cinza estava detonado pela terra e alguns rasgos.

— Eu não ia chorar. – fiz um biquinho e desviei o olhar.

Meus olhos captaram algo que me fez esquecer totalmente a dor. Um enorme sorriso surgiu em minha face e meu semblante tremeluziu. Diante de nós, uma grande lagoa cristalina estendia-se por uma clareira de vagalumes. 

— Dante, olha o que a gente encontr… – procurei pelo rapaz, animado. 

Ele estava tirando a roupa. 

— O que você está fazendo?! – soltei um gritinho esganiçado e cobri os olhos com as mãos, apesar de deixar uma pequena fenda entre os dedos.

— Eu não sei você, mas tem terra até debaixo da minha língua. – ele jogou o sobretudo na grama e começou a desafivelar seu cinto.

Retirei as mãos do rosto lentamente, vendo como estavam imundas. Meu rosto não devia estar muito diferente. 

— Tudo bem, eu fico vigiando. – pigarreei e cruzei as pernas em estilo borboleta.

Dante terminou de se despir por completo. Não queria ter reparado tanto, contudo, talvez eu tenha reservado um tempinho para analisar as cicatrizes claras que ocupavam parte de seu peito e costas e criavam um contraste com seu tom de pele. 

Enquanto Dante entrava na água, engoli em seco e concentrei-me em olhar para a esfera perdida entre as peças de roupa que ele deixou no chão. Sybelle estava com os braços e as pernas cruzadas como eu, suas finas sobrancelhas ergueram-se e ela deu um sorrisinho diabólico.

— Pare de me olhar assim, eu não sou um pervertido! – franzi o cenho e inclinei-me para frente. – Eu só estava vendo as cicatrizes. As cicatrizes!

Eu estava falando com uma fada má, é claro que ela escreveu o que eu disse. Sentindo meu rosto queimar de vergonha, agitei as mãos no ar para dissipar as palavras douradas antes que Dante virasse a cabeça e as lesse.

Olhei ao redor buscando por algum sinal de perigo, entretanto, não havia nada além de um sapo camuflado na grama ou um inseto passeando em meus pés. 

Aspirei o ar fresco da noite e senti a terra úmida entre meus dedos, perguntando-me como estariam as coisas em casa e como seria nosso próximo destino. Tateei o interior de meu sobretudo em busca da minha caneta de pena, mas outra coisa me chamou a atenção: meu último carretel de linha.

Sybelle ficou bem intrigada quando me viu fazer aquilo. Coloquei o sobretudo de Dante sobre o colo e me empenhei em fechar os rasgos. A fadinha revirou os olhos e balançou a cabeça negativamente, indo deitar-se logo em seguida.

Assim que cortei a linha com os dentes, ouvi o barulho da água remexendo-se e os passos molhados caminhando pela grama. Ergui a cabeça, vislumbrando os cabelos úmidos de Dante grudados ao seu corpo e sua expressão curiosa.

— O que está fazendo? – ele levantou as sobrancelhas.

Desviei o olhar e joguei o sobretudo em sua direção, cobrindo parte de seu torso desnudo. Peguei a esfera de Sybelle, acordando a pequena com o balanço e entreguei-a na mão de Dante.

— Não olhe. – e segui até o lagoa, retirando o sobretudo e apoiando-o sobre uma pedra alta.

Virei a cabeça por cima do ombro, concluindo que o rapaz se vestia de costas para mim. Ignorando a queimação nas bochechas, retirei peça por peça e fui envolvido pela frieza da água.

O reflexo da lua oscilou com as pequenas ondulações que se espalharam e os vagalumes afastaram-se. Soltei um suspiro de satisfação e inclinei o rosto para cima.

— De todas as pessoas, não achei que você fosse ser tímido. – Dante comentou ao longe.

Dei uma risada abafada e soltei meus cabelos para desembaraçá-los.

— Não é timidez. – juntei as mãos em formato de concha e acumulei um pouco de água ali, observando-a escorrer pelos dedos. – Mas você vai me achar bobo se eu disser.

— Mais do que já acho? – zombou.

— Da próxima vez, arranje outra pessoa para costurar suas roupas. – cruzei os braços e empinei o nariz.

— Se queria ouvir um obrigado, era só dizer. – Dante bocejou. 

— Então diga. – olhei para trás. Ele estava sentado ainda de costas com as mãos sustentando o peso do corpo.

— Obrigado, estranho que se jogou em mim na plataforma. – o rapaz balançou uma das mãos no ar.

Revirei os olhos e bufei, resolvendo focar-me no reflexo de meu rosto na água. Após um tempinho de silêncio, me dei por vencido.

— Acredito em almas gêmeas. Então eu só vou me mostrar para a pessoa no final do meu fio vermelho. – fitei minha mão de aço, sabendo que teria de presenteá-la com um pouco de óleo mais tarde.

— Fio vermelho?

— Nunca ouviu sobre a lenda do fio vermelho do destino? – ergui as sobrancelhas e voltei-me para ele. – Quando nascemos, os deuses amarram um fio carmesim em nossos mindinhos que liga você a sua alma gêmea. 

Dante ficou quieto por um instante e eu temi que ele estivesse com um de seus sorrisos sarcásticos. Encolhi os ombros e abaixei-me até minha boca estar no nível da água.

— Então você e a pessoa que está no final do seu fio provavelmente têm karmas compatíveis. – ele refletiu.

— Bem, os deuses não erram, né? – admirei o céu.

Karmas compatíveis. Aquele era o pilar para uma relação amorosa perfeita ou uma parceria de sucesso. Por isso demorava tanto para requerer um parceiro exorcista na guilda e…

— Espera, eu nunca perguntei o seu karma. – arregalei os olhos. – Qual é?

— Escorpião. E o seu? – resmungou.

— Ah, meu karma… – grunhi de decepção. – Posso pular essa pergunta?

— Posso ver seu rosto? 

Fui pego de surpreso por sua fala e a única coisa que fiz foi ruborizar, tímido e hesitante. 

— Só um pouquinho. – afastei a franja grudada em minha testa e esperei que ele se virasse.

Dante analisou-me brevemente por cima de seu ombro e retornou sua atenção para Sybelle.

— Não gosta da magia do seu karma. – concluiu.

Uau, ele era bom naquilo.

— Magia não é para mim. – sorri sem jeito.

Uma brisa balançou as copas das árvores e secou a água de meu rosto, lembrando-me que eu já estava ali há um tempo e meus dedos já começavam a enrugar. Deixei a lagoa e vesti-me rapidamente antes que pegasse um resfriado.

— Para onde agora? – amarrei meus cabelos.

Dante havia se deitado na grama, usando um dos braços como apoio. Espiei-o de cima, reparando que seus olhos estavam fechados e que respirava calmamente. Pisquei os olhos lentamente e sentei-me ao seu lado. Sybelle colocou as mãos no vidro e me fitou interrogativa.

— Eu sei, eu sei. Não somos compatíveis. – fechei os olhos. – Mas o destino nos uniu, não é? – os abri. – Quero dizer, não o f-fio, é que...

Sybelle me encarava com uma expressão de desdém grande demais para um rosto tão pequeno. Revirei os olhos. 

— Certo, eu nos uni. Melhor assim? 

Ela agitou a cabeça em um sinal de desaprovação e sentou-se de costas para mim.


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Notas finais do capítulo

Queria comentar duas coisas: se o Suichiro acompanhado já é desajeitado desse jeito e quase morre a cada segundo, imagina quando ele ia explorar sozinho antes de conhecer o Dante?
E o Dante que cada canto que encosta dorme?

Bem, me contem o que acharam ♥ e até semana que vem!

Beijos.
—Creeper.