O Luar escrita por Lady L


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Olá! Sei que demorei horrores para entregar essa continuação, mas espero que me perdoem kkkk!

É o mesmo universo, mas tudo está diferente. Ou talvez nem tanto assim.

Boa leitura :)



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Iphigenia sabia que tudo havia começado e acabado com o oceano.

Toda a vida havia se erguido da água, e a ela era devida toda e qualquer forma de existência. Toda a beleza e toda a feiúra, todo o prazer e todo o sofrimento, toda a ordem e todo o caos, nada seria possível sem aquele mar escuro e profundo que ela encarava naquele momento. Parecia terrivelmente apropriado que o fim do mundo tivesse se erguido dele, também.

A menina colocou os pés na água, erguendo a barra da saia branca enquanto afundava cada vez mais. Seus cabelos castanhos eram curtos, na altura do queixo, e ondulados, destacando seus grandes olhos de corça e os traços arredondados e gentis do seu rosto. Iphigenia estaria para sempre congelada naquela estatura singela e frágil, uma criança impúbere e ingênua, por mais que já tivesse perdido a conta dos séculos que passara naquela ilha. A água que subia por suas canelas magras e morenas era escura, um líquido tão negro que chegava a ser viscoso, e o cheiro forte de sal e morte permeava a escuridão da noite infindável, que engolia tudo o que havia restado do mundo.

Ela já havia se banhado naquela água fria e maldita mais vezes do que poderia contar. Se abrisse os olhos debaixo da superfície, não conseguiria enxergar muita coisa, sem contar que o sal poderia queimá-los, então ela não se dispunha mais a tentar investigar as profundezas após seus inúmeros fracassos. Mas, mesmo sem enxergar muita coisa, Iphigenia conseguia sentir o eco vago das criaturas que habitavam aquele oceano infinito, e era isso o que tentava fazer agora, com a água subindo-lhe pelas coxas.

As ondulações e marolas do mar geralmente eram calmas e morosas, como se toda a vida distorcida e deformada que ali habitasse tivesse um desinteresse supremo por deixar as águas e ascender até a terra. Mas aquilo mudava quando eles sentiam a presença de uma intrusa. Com a água pela cintura, Iphigenia começou a sentir o mar se agitando, sobressaltado com sua presença. Vultos escuros a circundavam, violentos, e, por vezes, ela quase podia sentir suas escamas frias e dentes pontudos resvalando sobre sua pele, cruéis e afiados. Mas nenhuma daquelas criaturas poderia tocá-la, nenhuma delas tinha autorização para ferir nenhuma das Irmãs. Exceto por uma.

Iphigenia sentiu o solo arenoso e cruel do fundo do mar cada vez mais distante de seus pés, e, quando se deu conta, já estava fundo demais para que ela se mantivesse emersa sem nadar. Então foi isso o que ela fez, deixando suas braçadas a guiarem para cada vez mais longe da pequena ilha, para cada vez mais perto do perigo. Ela já podia senti-lo. Ele estava longe, a princípio, mas ela sabia que também podia senti-la. Quanto tempo demoraria até que ele chegasse até ela? Quanto tempo ela teria para nadar de volta à ilha? Ela não sabia, mas também não se importava muito.

O mar subitamente se tornou revolto, raivoso. As ondas enormes procuravam expulsá-la, a arrastando de volta para a costa, e um vulto monstruoso começava a se formar no horizonte. Iphigenia ergueu o queixo e sorriu. Lá estava ele.

Ela não fez menção alguma de fugir, de voltar até a ilha, mas, antes que ela pudesse começar a nadar para mais perto da criatura, um brilho intenso e cegante tomou o céu, e a água começou a recuar rapidamente.

Acantha não era uma mulher que poderia ser descrita como bonita, mas, no momento, ela sem dúvidas estava gloriosa. Seu rosto envelhecido e cansado parecia ter tomado um novo vigor, e aquela era a primeira vez em meses que Iphigenia a via sorrindo. Seus cabelos brancos, que normalmente ficavam rigidamente atados à nuca, estavam soltos por sobre os ombros, e seus olhos vivamente azuis brilhavam como um par de diamantes. Ela descia do céu com graça, a postura ereta, os pés se apoiando nas nuvens com segurança conforme ela se afastava cada vez mais das estrelas e se aproximava da ilha.

Iphigenia estava jogada sobre a areia úmida, terrivelmente longe da água, antes mesmo que ela pudesse tentar evitar. O vulto no horizonte começou a se afastar lentamente, e Iphigenia se levantou, desajeitada, caminhando até Acantha e pingando água salgada. Ela detestava quando a maré baixava assim, tão bruscamente, quando sua irmã descia do céu. Sempre acabava com sua diversão.

—Eu já disse para você não entrar no mar- Acantha disse assim que seus pés tocaram o chão, olhando Iphigenia com desaprovação- Ele não vai ficar nada satisfeito quando ver que você incomodou o Leviatã novamente.

Iphigenia vez uma careta.

—Eu estava apenas nadando um pouco- ela tentou se justificar, mas Acantha esboçou uma expressão de descrença.

—Claro que estava. Mas não faça isso de novo- ela disse, em um tom firme- Você viu Europa? Precisamos voltar para casa antes que as estrelas comecem a cair.

Iphigenia não sabia onde a irmã do meio estava, e sequer queria saber. Mas, infelizmente, ela tinha uma boa noção.

—Europa deve estar atormentando a Mulher Acorrentada- ela respondeu, e Acantha novamente esboçou uma expressão de desaprovação.

—Vamos buscá-la, então. Ele virá essa noite, as estrelas me contaram.

Iphigenia conteve sua careta à tempo de esconder seu desgosto, e seguiu a irmã para a parte oeste da ilha em silêncio.

Acantha via o futuro. Não era algo que ela podia fazer o tempo todo, somente quando estava no céu, realizando seu trabalho. Iphigenia conseguia ver o passado, e Europa, qualquer coisa que se passasse no presente, desde que também estivessem exercendo sua função. Se concentrar era o necessário para iluminarem a noite, e as visões sempre acabavam vindo, mais cedo ou mais tarde. Iphigenia encarou o céu. A lua minguante havia sumido assim que Acantha havia descido, assim como a maré havia recuado bruscamente. Mas as estrelas ainda não haviam começado a cair, de modo que a noite eterna ainda tinha o mínimo de luz.

Europa realmente estava atormentando a Mulher Acorrentada, como Iphigenia sabia que ela estaria. Sua irmã tinha um capricho pela crueldade, e espezinhar uma pessoa indefesa e ensandecida era um convite praticamente irrecusável para seu temperamento maldoso.

Europa era a Lua Cheia, o que a fazia a mais bela e mais vigorosa de todas as Irmãs. Se Iphigenia, a Lua Crescente, tinha o aspecto de uma criança, e Acantha, a Lua Minguante, de uma anciã, Europa era uma mulher no auge da juventude e da beleza, adorável em cada sentido da palavra. Seus cabelos negros iam até as ancas sinuosas, e a pele morena jamais perdia o brilho, mesmo com a escuridão que as cercava. Os olhos castanhos, no momento estavam fixados na Mulher Acorrentada, enquanto os lábios cheios emitiam alguma zombaria.

—Europa!- Acantha chamou, e ela se virou para encará-la, parecendo levemente zangada por ter sido interrompida- Deixe a Acorrentada em paz. Precisamos chegar em casa antes que fique totalmente escuro.

Europa revirou os olhos.

—A noite só fica escura se eu assim desejar- ela replicou- Diferente de vocês, meu brilho realmente tem potência.

Foi a vez de Iphigenia revirar os olhos. Quando todas as Irmãs desciam do céu, o que o Homem do Mar chamava de “Lua Nova”, a escuridão se instalava cada vez mais depressa conforme as estrelas começavam a cair, sem ninguém para sustentá-las. Mas, por ser a portadora da luz mais forte, Europa sempre insistia em sair de casa mesmo no escuro, uma vez que era capaz de iluminar minimamente o próprio caminho ao conjurar sua luz lunar.

Ele vem nos visitar hoje- Acantha disse, e apenas então Europa pareceu realmente prestar atenção- Eu vi enquanto estava no céu. Ele chega assim que a última estrela cair.

Europa se empertigou, então finalmente deixou a Mulher Acorrentada em paz.

—Por que não disse isso antes?- ela perguntou, com uma careta- Vamos logo. Essa idiota não vai mesmo a lugar nenhum, e temos coisas mais importantes para fazer no momento.

Iphigenia não gostava quando Europa falava assim sobre a Mulher Acorrentada. Ela era uma figura triste, triste e solitária. Só aparecia quando a maré baixava, ou seja, quando a Lua ficava Nova, o que queria dizer que, na maior parte do tempo, ela ficava submersa naquele oceano terrível. E, mesmo com essa vida terrível, e ainda tendo que lidar com todas as provocações de Europa, ela nunca parecia reagir. Apenas continuava encarando o horizonte com uma expressão vazia. A única vez que Iphigenia havia visto a Acorrentada falando foi quando havia tentado impedir Europa de provocá-la, e sua irmã havia lhe acertado um tapa. A Mulher Acorrentada encarou Europa com severidade, e disse:

“Toque nela novamente e providenciarei para que sua mão seja decepada. Exilada ou não, Andrômeda ainda é da realeza”

Iphigenia não sabia o que ela queria dizer com isso, ou sequer quem era Andrômeda, mas havia ficado grata. Desde aquele dia, Europa nunca mais havia lhe batido.

Caminhando de volta até a casa no topo da pequena colina, Iphigenia pensou sobre o Homem do Mar, e sobre todos os fragmentos do passado que ela havia visto da última vez em que estivera no céu. Ela geralmente via coisas sem muita importância, pedaços de vidas há muito perdidas, ou lembranças de lugares que não existiam mais. Ela tinha vários cacos de conhecimento inútil e desconexo: sabia que a ilha na qual habitavam costumava ser a montanha mais alta do mundo antes da Inundação; que o mundo costumava ter não apenas noite, mas também dia; e que a humanidade costumava ser sustentada pela tecnologia de engrenagens de bronze e de magia divina, que mantinham todas as criaturas da escuridão afastadas. Mas ela raramente via qualquer parte da própria vida, ou da vida das poucas pessoas que conhecia, então foi uma supresa enorme quando uma visão do passado do Homem do Mar havia se revelado na última vez em que fizera a Lua Crescente brilhar.

Ela o vira ainda jovem. Ele costumava ser bonito, com cabelos escuros e pele morena, muito diferente do homem pálido e grisalho que havia se tornado. Nesse aspecto, ele se parecia bastante com a Mulher Acorrentada: havia algo de poderoso sobre ambos, mas também algo de exausto. Como se eles já tivessem tido dias de infinita glória, mas que agora já tivessem se esvaído. Na visão, ele estava fazendo algo- ou alguém- construindo cada osso, músculos e artéria da criatura com magia, sangue e pedaços do oceano. Os cabelos feitos de algas, o esqueleto de corais, a pele da areia fina e escura que recobria o fundo do mar. A visão não havia se prolongado por tempo o suficiente para que Iphigenia visse o trabalho concluído, mas havia sido possível ouvir o nome que o Homem do Mar havia dado à sua criação: Ianthe.

As três Irmãs finalmente chegaram ao topo da colina, adentrando a pequena casa de pedras cinzentas que chamavam de lar.

—Precisamos fazer algo bom para o jantar- Europa declarou- Não é sempre que ele vem.

Ele era o Homem do Mar, a pessoa que as mantinha naquela ilha. A pessoa que as havia criado, do mesmo modo que havia criado a tal Ianthe. Mas Iphigenia, Europa e Acantha não eram feitas do oceano, elas eram feitas de pedaços usurpados de um reino que não pertencia a ele. As estrelas haviam contado tudo a Iphigenia, e elas também eram feitas do mesmo substrato: as almas de todos aqueles que haviam se afogado, seus futuros, passados e presentes roubados. Mas Iphigenia e suas irmãs tinham algo que as estrelas não tinham: o sangue e a magia dele fluindo por suas veias. E por isso Iphigenia odiava o Homem do Mar: ela era a única que sabia exatamente o que ele havia feito.

Ele havia afogado o mundo, e o jogado na completa escuridão. Talvez por isso o Homem do Mar a tivesse moldado como a menor e mais frágil de todas as Irmãs, pois ele sabia que seria ela quem poderia descobrir todos os seus pecados. E ele havia feito de questão de jamais lhe dar o poder para puni-lo por isso.

Iphigenia secou seus cabelos, ainda encharcados de água salgada, e foi ajudar Europa com o jantar. Conforme cortava os vegetais miúdos e retorcidos, que cresceram privados de luz, ela encarava a lâmina afiada, e seus pensamentos corriam vermelhos e violentos com sangue.

Ela pensou em Ianthe. Ianthe, com a pele escura e as tranças de algas, e os olhos rebrilhantes de pérolas. A criatura semi-formada, em construção, com os ossos expostos e vazia de vida, de magia, de poder. Por que os traços daquele rosto inacabado lhe pareciam tão familiares? Por que aquele olhar vazio e tristonho parecia tão dolorosamente conhecido?

“A Mulher Acorrentada”- ela pensou, de repente, em uma epifania gloriosa.

—Preciso buscar mais vegetais- Iphigenia disse, de repente, cravando a faca na tábua de cortar e correndo para fora da cozinha.

—Não demore!- Acantha aconselhou, mas Iphigenia já não a ouvia. Estava correndo em direção à única pessoa que poderia salvá-las.

A Mulher Acorrentada ainda encarava o horizonte quando Iphigenia se aproximou dela. As estrelas começavam a cair, mas a garota sabia que ela nunca mais teria de colocá-las de volta no céu. Não mais. Ela finalmente veria a luz do dia.

—Ianthe?- Iphigenia chamou, e, pela primeira vez, a Mulher Acorrentada a olhou diretamente nos olhos.

—Shh, fale baixo, Andrômeda- ela respondeu, se inclinando em direção à menina. As correntes, firmemente cravadas à pedra, rangeram- Ele vai nos ouvir.

—Ianthe- Iphigenia repetiu- Você precisa se lembrar. Você precisa fazer alguma coisa. Você precisa nos salvar.

Iphigenia estendeu a mão para tocar o rosto de Ianthe, que não recuou. Ela nunca havia tentado aquilo antes, nunca havia tentado brilhar fora do céu, como Europa por vezes fazia. Mas ela precisava tentar. Se concentrou em todas as memórias, as mesmas das quais tirava energia quando se tornava a Lua, e mostrou tudo para Ianthe. Ela precisava lembrar. Ela precisava saber. O Homem do Mar poderia ter levado quase todas as suas memórias, mas ainda havia algo ali, ela sabia.

Ela procurou por Andrômeda, e viu o rosto delicado, parecido com seu próprio, coberto de sangue conforme ela expirava, moribunda. Viu também um Anjo com um coração e asas de bronze, cambaleando sem rumo por uma floresta escura. E, quando ela se forçou a voltar ainda mais no passado, ela viu o Homem do Mar.

Na visão, ele e Ianthe lutavam, e era uma briga terrível, apocalíptica. Luz e sombras, terra e água, e a pura energia de uma magia forte e violenta voando pelos ares. No final, Ianthe se ergueu, ferida, mas vitoriosa, e o Homem foi aprisionado debaixo do novo reino da Mulher, a terra firme. O mar recuou, finalmente sob controle, e a escuridão se dissipou. O Homem tinha um nome, e um nome morto: Nereu.

Mas Ianthe já estava ferida demais para continuar a mesma. Iphigenia viu como ela havia mudado com os séculos: a morte havia tirado o poder da sua magia, e agora ela dependia de engrenagens de bronze e inteligência para continuar com a mesma força. Fora assim que ela havia conhecido a tal Andrômeda e o Anjo de asas de bronze: ambos a ajudavam a guardar todas as suas criações em um enorme e brilhante Farol. Mas isso não a salvaria para sempre. E, quando Nereu finalmente conseguiu poder para se erguer novamente, a Inundação havia chegado, e ali estavam elas, tendo que lidar com as consequências terríveis dessa derrota.

—Eu me lembrei, criança- Ianthe disse assim Iphigenia afastou a mão de seu rosto, os olhos novamente brilhantes, cheios de propósito- Eu finalmente me lembrei de tudo. E eu vou destruí-lo. Custe o que custar.

Ianthe se ergueu, e as correntes se romperam, desfazendo-se como se fossem pó. Ela caminhou com passos firmes até o mar, a água subindo até seus joelhos, e então ela ergueu seus braços. Faíscas de pura magia cintilavam nas pontas de seus dedos. Iphigenia não havia apenas lhe devolvido suas memórias, ela havia também lhe devolvido seu poder. A garota nunca mais poderia subir ao céu e se tornar Lua, mas aquele era um preço pequeno a se pagar. Sua magia pelo retorno da luz. Parecia uma troca justa.

Nesse exato momento, a última estrela caiu do céu. O mar se abriu, e Nereu finalmente surgiu.

A expressão no rosto do Homem do Mar era de horror. Horror e choque.

“Ele deveria saber que ela se ergueria novamente, como eles sempre fazem”- Iphigenia pensou- “E deveria saber que seria eu quem a ajudaria”

—Olá, velho amigo- Ianthe disse, com frieza e uma pontada de ironia- Sentiu minha falta?

Ela não esperou por uma resposta. Lançou sobre ele um ataque de pura luz e energia, que o fez cambalear, caindo novamente para dentro do mar.

O homem se ergueu rapidamente, contudo. As sombras ao redor dele pareciam inquietas, famintas. O oceano se agitou bruscamente, e um vulto monstruoso começou a se assomar no horizonte.

—Você deveria ter continuado acorrentada, Ianthe- o homem disse, com desprezo- Eu te deixaria viver sua vida patética, se você se submetesse. Mas agora você será engolida, como todo o resto da sua criação.

O Leviatã surgiu, gigantesco, poderoso, terrível. Iphigenia deveria estar assustada, mas não estava. Ela simplesmente encarou a visão do fim do mundo com um sorriso tranquilo no rosto. Por mais atemorizante que ele fosse, não era páreo para Ianthe. Não agora, com todas as suas memórias e poder de volta.

—É aí que você se engana, Nereu. Sua besta não engoliu toda a minha criação- Ianthe abriu um sorrisinho- Você pode até ter matado toda a luz. Mas você nunca pôde matar o verdadeiro Sol.

Das profundezas do oceano, uma visão gloriosa ascendeu.

Um anjo resplandescente, emanando luz dourada, que refletia em suas belas asas de bronze. Era a coisa mais bonita que Iphigenia já havia testemunhado, ela nunca havia visto tanta luz, tanta energia.

O Leviatã se encolheu perante a visão do Anjo, que sorriu, voando para cima, cada vez mais alto.

O céu começou a clarear, o azul se tornando em um tom pálido de laranja, e Nereu gritava, com ódio e agonia.

—Não vou cometer o mesmo erro da última vez, e muito menos irei cometer o mesmo erro que você. - Ianthe declarou, se aproximando do inimigo- Você não vai ficar preso, ou enterrado, ou acorrentado. Você é meu criador, afinal, e eu sou e sempre serei uma parte de você, carne de sua carne, sangue de seu sangue. E agora é você quem será uma parte de mim.

Ela se aproximou de Nereu, e ele se retraiu perante sua presença. Quando ela o agarrou pelo pulso, ele começou a gritar cada vez mais alto, se desfazendo lentamente em cinzas e sombras, e Ianthe brilhava, com cada vez mais luz orbitando ao seu redor.

Logo o dia raiou, e Nereu havia desaparecido. Iphigenia esperava que para sempre.

—Você agiu bem, Andrômeda- Ianthe disse, sorrindo para ela, um halo dourado e brilhante ao redor de sua cabeça.

O oceano começava a recuar. Construções e ruínas despontavam em meio à água escura, mas todas estavam vazias, abandonadas. Do topo do mundo, Iphigenia enxergava todo o passado, mas ela não precisava de magia alguma, daquela vez.

—Meu nome não é Andrômeda, senhora- a garota respondeu, baixando os olhos.

Ianthe riu.

—Eu sei quem você é, Iphigenia Crescentia- ela disse- Mas você se parece tanto com ela… não duvido que uma parte dela ainda esteja com você.

O Anjo surgiu novamente no horizonte. Dessa vez, ele não brilhava. Já havia feito seu trabalho, o Sol estava de volta, e finalmente poderia descansar.

Ele pousou aos pés de Ianthe, ajoelhado e com a cabeça baixa. Suas penas de bronze estavam quebradas, mas eram cicatrizes douradas, e não feridas, que Iphigenia via em seu corpo dessa vez.

—Ícaro- Ianthe o chamou, e ele ergueu os olhos para a Deusa- É bom te ver de novo.

—E é bom ser visto pela senhora- ele respondeu, se erguendo- Admito que perdi as esperanças por alguns momentos. Você demorou. Mas, no fundo, eu sabia que você viria.

Ianthe sorriu.

—Eu quase não consegui, e não teria conseguido sozinha, não sem a Lua Crescente. Mais uma vez, uma criação de Nereu se voltou contra ele. Acho que é essa a nossa sina, afinal- ela disse, lançando um breve olhar para Iphigenia.

A garota mais uma vez encarou o chão, mas conseguiu tomar coragem para olhar a Deusa nos olhos.

—Então nós conseguimos mesmo, certo? Ele nunca mais vai voltar, vai?- ela perguntou.

Ianthe e Ícaro se entreolharam.

—Bem, Iphigenia, nunca é seguro dizer nunca- a Deusa disse- Nereu e eu, nós somos a destruição e a criação um do outro. E eu espero poder contê-lo, espero de verdade. Mas apenas os milênios dirão se a morte dele será permanente dessa vez. Ela nunca foi antes, mas é meu desejo mais profundo que, por uma vez, ela seja.

Iphigenia assentiu. Deveria estar assustada com essa informação, mas se sentia calma. Se havia alguém que poderia deter a escuridão com as próprias mãos, esse alguém era Ianthe.

—Então você não está mais morta, minha senhora?- Ícaro perguntou, abrindo um sorriso resplandescente- Já se passaram muitos séculos, sua alma deve ter se refeito, como a dele se refez.

Ianthe deu de ombros.

—Eu não me sinto mais morta. Mas tampouco me sinto viva. Acho que esses termos são pequenos demais para o que quer que eu me tornei agora- a Deusa disse- Nada é como antes, e duvido que voltará a ser. Mesmo que eu reconstrua tudo, pedra por pedra, é impossível saber o que esse mundo irá se tornar.

Ícaro assentiu gravemente.

—O que quer que você decida fazer, eu estarei do seu lado- ele disse.

—E eu também- Iphigenia concordou- Se você me aceitar, é claro.

Ianthe sorriu.

—É claro que aceito, criança. Eu jamais conseguiria chegar a lugar algum sem a ajuda de vocês- a Deusa respondeu- Mas, agora, precisamos ir buscar suas Irmãs. Elas também são parte do que quer que venha a seguir. Assim como as estrelas.

—As estrelas, senhora?- Iphigenia perguntou, confusa.

—Sim, minha criança. As estrelas também são criação dele, como nós somos. Talvez elas possam ser a base do nosso futuro. Assim como você.

Naquele momento, Iphigenia soube que eles reconstruíram o mundo, pedaço por pedaço, e que fariam isso juntos. Aquele não era um mito de criação, ela sabia, e sim de ressurreição. Mas nada que voltava da morte permanecia incólume. Ela não fazia ideia do que a criação de Ianthe se tornaria, mas esperava do fundo de seu coração que fosse algo bom, bom e belo. Talvez a Deusa estivesse fadada a cair, como seu criador havia caído, talvez nada fosse eterno, e tudo estivesse em constante mudança. Mas, o que quer que acontecesse, Iphigenia Crescentia estava em paz. Afinal, por hora, ela estava exatamente onde deveria estar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Talvez mais coisas surjam nesse universo, talvez não. Mas espero que sim, admito que gostei da direção que os personagens tomaram depois desse conto.

Agradeço à Jupiter L por me lembrar da existência dessa continuação. Ela não teria saído sem você.

Até a próxima, vejo vocês nos comentários!