1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 6
Capítulo IV


Notas iniciais do capítulo

Olá! Espero que todes estejam bem!
Pois bem, quem é vivo sempre aparece, e cá estou eu. Primeiramente quero desculpar-me pela especial demora que tive em postar este capítulo. Houveram bastante tribulações para que este texto por fim nascesse, inclusive um probleminha com o gap temporal da fanfic que precisei consertar por mudar a ordem das postagens. Neste capítulo deveriam ser apresentadas as outras duas personagens restantes de nossa história, mas ao invés disso, por razões de organização temporal, ele constará com a narração de uma já apresentada. Quero deixar já previamente avisado que estes capítulos "solos" ( onde há somente a narração de uma das chars de vocês ) não serão tão constantes. Somente quando me parecer necessário narrativamente, e nunca o capítulo terá unicamente UM ponto de vista. Mesmo que somente conste com a narração de uma char, ele sempre virá com o ponto de vista de outro personagem ( sejam os rapazes ou outras figuras importantes ).
Enfim. Novamente, me perdoem pela demora. E àquelas ansiosas para verem suas personagens serem apresentadas, peço paciência XD Na próxima suas meninas terão sua estreia!
Boa leitura



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Somersetshire, 1812

 

Covington era uma construção digna de ser apreciada, isso ela era incapaz de negar.

Quem atravessasse seus portões de entrada, se depararia com uma estrada reta que guiava até a casa. A estrada era ladeada de gramado em ambos os lados, e pequenas topiarias despontavam desta grama, acompanhando o percurso. Mais à frente, veria canteiros floridos com arvorezinhas, flores e estátuas. A casa em si tinha um bloco central, elevado e imponente, com doze degraus que levavam a portas colossais de madeira clara. Contava ainda com longas alas dos dois lados e torres arredondas em seus quatro cantos.

O estábulo ficava à esquerda, de modo que para chegar à entrada os visitantes tomavam o rumo da direita, afim de passar entre o gramado e os jardins e acessar à casa por seu lado leste. Atrás da casa, estendiam-se jardins pelas colinas, que eram cobertas por muitas árvores e então desciam quase até uma horta que se localizava próximo ao muro norte. Além de seus muros, ficavam as fazendas.

Isabella estava numa das colinas forradas de floresta. Sempre que visitava a propriedade rural do Barão de Hartfield costumava vagar a qualquer hora do dia pelas terras que cercavam Covington, onde o Barão vivia com sua esposa e prima de Isa, embora não costumasse sair tão cedo. Mas naquela manhã – dias após sua chegada – despertara quando ainda estava escuro, e não fora capaz de pegar no sono novamente. Pelas janelas abertas de seus aposentos podia ouvir o canto estridente de um pássaro que, evidentemente, não notara que ainda não havia amanhecido. Em vez de fechar as janelas e voltar para a cama, no entanto, tinha se vestido – sem dar-se ao trabalho de despertar sua criada para ajuda-la – e saído.

Embora estivesse muito frio, havia algo de raro e belo em observar a escuridão se transformar em alvorecer. Por isso ela caminhara decididamente até os estábulos, requirindo a um jovem cavalariço sonolento que selasse e preparasse seu cavalo para uma caminhada. Cinco minutos depois, ela partira no dorso de Estevão, contornando a casa até as colinas que escondiam-se atrás de sua imponente estrutura. Fora até lá porque nas árvores moravam dezenas, talvez centenas de pássaros, a maioria com vozes mais doces do que aquela que a acordara. E as aves costumavam cantar com mais emoção quando anunciavam a chegada de um novo dia.

Em determinado ponto, desmontou da sela, acariciando a crina branca de Estevão por um momento. Ficara muito feliz ao descobrir que teria um modo de leva-lo consigo até Somerset. A casa de campo de sua própria família não ficava muito distante, de modo que um criado pudera leva-lo sem ademais problemas. Quando ela chegara de Londres e saltara da carruagem para dar um abraço apertado em Francesca, que a aguardava na entrada com um sorriso que cobria todo seu rosto, ele já estava nos estábulos aguardando-a. E ela não o decepcionara, é claro. Havia poucas coisas no mundo que apreciasse mais que cavalgar em Estevão.

Apoiou as costas no tronco robusto de uma faia, com os braços para trás, muito parada para não perturbar as aves. Desfrutou da textura áspera abaixo das luvas finas. Aspirou o ar gelado que tinha desalinhado completamente seu cabelo durante sua vigorosa cavalgada, e espantado para longe qualquer indício de sono que lhe restava. Absorveu a beleza e a paz dos arredores e ignorou o clima indecoroso que atravessava sua capa e deixava seus dedos dormentes. Nunca tinha apreciado o frio, mas tolerá-lo parecia um preço justo a pagar para poder estar naquele lugar.

Afinal, parecia que estava certa. Tudo o que estava precisando era de uma folga. Passara tempo demais em Londres, confinada às paredes de sua moradia na Queen’s Road. Precisava tirar um tempo, estar em contato novamente com a natureza e com a sensação de liberdade que ela evocava. Precisava ver rostos diferentes e conversar com outras vozes que não fossem as de sua mãe ou de seu pai. Fora um desafio convencê-los a permitirem que fizesse aquela pequena viagem. Seu pai não parecia importar-se, na verdade, mas sua mãe não se agradara da ideia de ver a filha fugindo — em suas próprias palavras – quando estavam à beira de uma temporada social que prometia ser histórica.

Isabella não perguntara o motivo pelo qual sua mãe acreditava que aquela temporada seria diferente das outras, mas suspeitava que ela só dissera isso pois esperava que Isa realizasse seu sonho e finalmente se rendesse a algum casamento proveitoso. Isa não acreditava que isto fosse possível – àquela altura, já conhecera praticamente toda à aristocracia, de cabo à rabo. Talvez faltasse um ou outro indivíduo dentre aqueles que não costumavam frequentar Londres assiduamente, mas o ponto é que ela vira o suficiente para saber que nenhum deles estaria à sua altura.

Não no quesito hierárquico, mas no que se dizia ao que esperavam – os homens a desejavam graças a seu dote e, no máximo, se encantavam por sua aparência distinta, mas não davam atenção verdadeira a ela. Não a ouviam de fato, não a olhavam de fato, apenas sorriam e balançavam a cabeça e ficavam perdidos quando ela tentava fazer algo mais que apenas dançar graciosamente ou falar algo mais inteligente que um comentário agradável sobre o clima que se fazia. Isabella queria mais. Queria ser enxergada, não apenas vista. Escutada, não apenas ouvida. Admirada, não apenas desejada.

Talvez estivesse sendo demasiado caprichosa. Era isto que lhe dizia sua mãe, embora nunca tivesse dividido com ela a verdadeira razão para ter rejeitado as propostas de casamento que lhe haviam sido feitas nos últimos anos, somente com Francesca e com Pedro. Mas não queria crer nisso. Bastava lembrar de Francesca. É verdade que quando se casara com Hartfield a prima não estava arrebatada de paixão, mas se dava bem com ele. Ou ao menos era o que parecia. Isa os observara atentamente durante sua corte – Hartfield era um sujeito um tanto soturno, mas ela o flagrara rindo com Francesca, que parecia sempre contente quando em sua companhia. E Bella suspeitava que, desde seu casamento, esta estima mútua só havia crescido. As cartas que trocava com a prima a faziam questionar mesmo se o sentimento já superara este limite, e agora aproximava-se mais de afeto genuíno. Ou – sendo um pouco mais sonhadora – mesmo amor. Não poderia ser à toa que agora Francesca esperava tão ansiosa e alegremente um filho dele, poderia?

Quando o sol começou a despontar no horizonte, pintando o céu de belos tons de azul, rosa, violeta e laranja, os dedos de Isabella já encolhiam-se rígidos e enregelados. Levantou-se, esticando-os dolorosamente afim de pegar de volta as rédeas de Estevão, que amarra num tronco próximo. Subiu na sela e cavalgou de volta à Covington, sentindo-se mais desperta e elétrica – mas estranhamente mais melancólica. Por sorte, conseguiu espantar o sentimento inesperado antes de despontar para dentro da sala de jantar, onde os habitantes da casa já haviam se sentado afim de tomar o desjejum.

Todos acordavam muito cedo em Covington. O que era uma pena para os criados, que precisavam levantar-se ainda de madrugada afim de aprontar tudo para o despertar de seus senhores, mas um deleite para Isabella, que gostava de fazer o mesmo afim de aproveitar ao máximo que podia seus dias – especialmente aqueles que eram contados, como os que tinha disponíveis em Somerset. Depois teria de retornar a Londres, à tempo de acompanhar o ápice da temporada – a moeda de troca que precisara oferecer afim de que pudesse partir.

Francesca sorriu ao vê-la.

— Ah, Isa. Saiu para explorar tão cedo? — sua prima perguntou. Bella nutria um profundo carinho por ela. A prima era a irmã que nunca tivera a sorte de ter – sua confidente mais próxima e querida. Francesca sabia tudo sobre Isabella, e Isabella sabia tudo sobre Francesca, embora elas fossem tão diferentes quanto o verão e o inverno. Francesca era, por natureza, mais inglesa que metade das damas inglesas de nascimento. Fora uma tristeza ter de despedir-se dela após seu casamento, mas uma alegria vê-la finalmente conquistar algo que tanto queria.

— Duvido que haja alguma pedra ou planta em Covington que a Srta. Ortiz já não conheça, Francesca. — Hartfield pronunciou-se por cima do jornal que lia atentamente, numa das raras vezes em que falava algo. Isa teria encarado seu comentário como uma brincadeira, se o homem ao menos tivesse sorrido ao dizê-lo.

Mas Francesca deu uma risada para o marido, de modo que provavelmente aquilo deveria ter sido a versão dele de um comentário espirituoso.

— Sempre há algo novo a ser descoberto, Logan. Basta ter imaginação e senso aventureiro o suficiente para isso. Não é, Henry?

Henrique, não Henry para Isabella, levantou os olhos do próprio prato por um segundo. O irmão mais novo dela estava de recesso de Eton, e havia preferido partir para passar a primeira semana de sua folga em Covington, ao invés de em Londres. Isa não podia culpa-lo – Londres era movimentado demais, barulhento demais. Especialmente para alguém como Henrique, cujo espírito era o de um verdadeiro rato de biblioteca.

— Ah. Sim, é verdade. — o rapaz disse, sorrindo timidamente para a irmã. Quando ela chegara, tinha se desculpado por não ter ido direto para Londres e dito que estava feliz em vê-la. Isabella o sufocara num abraço e bagunçara seu cabelo até que ele exclamasse desesperado que parasse, pois abarrotaria suas roupas. Então os dois haviam rido.

— Logan recebeu uma carta de George esta manhã, — Francesca começou, olhando Isa com cautela, enquanto ela se sentava e começava a ser servida de ovos e presunto. — ele disse estar vindo fazer uma visita. Não é ótimo?

Havia um certo apelo no tom da sua prima, e Isabella sabia o porquê. Francesca estava consciente que ela odiava o irmão mais novo de seu marido. Ah, bem, não odiava. Reservaria o ódio para os verdadeiramente maus. Como Napoleão, por exemplo. Ou a vendedora de flores que tentara enganá-la na semana anterior. Mas George Hartfield era mais do que uma simples amolação, era mais que irritante. Era a única pessoa – fora Pedro ou Carlos, talvez – que conseguia enfurece-la tanto que ela precisava conter-se para não agredi-lo. Ela nunca ficara tão zangada quanto na noite em que o conhecera, pouco depois do noivado entre Francesca e Hartfield ter sido anunciado.

— Certamente ficarei contentíssima em ver George. — declarou Isa. Contentíssima fora um exagero, mas ela foi incapaz de se conter.

— Certamente. — Hartfield murmurou, lentamente. Bella suspeitou que a lentidão em sua fala era pois estava zombando dela, se divertindo com sua mentira descarada. O sorrisinho que Henrique tentou conter foi a confirmação de que precisava.

— Então está tudo certo. — concluiu Bella, com alegria forçada.

— Isa? — indagou Francesca, hesitante.

Com um sorriso radiante, Isabella se virou para a prima.

— Tudo ficará bem. Sua casa não vai se tornar um campo de guerra. Tenho certeza que eu e George nos entenderemos maravilhosamente bem.

Estava claro que Fran não acreditou nela nem por um segundo – não que ela esperasse que fosse acreditar. A senhora de Covington olhou para a prima e para o marido uma seis vezes no espaço de um segundo.

— Ah. Bem. — concluiu, suspirando.

Isabella manteve o sorriso no rosto. Achara que o frio seria seu maior incômodo em Covington, mas aparentemente se equivocara. Por Francesca, tentaria agir de maneira civilizada com George Hartfield. Por Francesca, até mesmo tentaria sorrir para ele e rir de suas piadas, presumindo que ele fosse fazer alguma que não zombasse dela. Por Francesca e por si mesma, pois não aceitaria permitir que o sujeitinho estragasse sua abençoada estadia ali.

Começou a cortar com um pouco mais de agressividade o presunto em seu prato.

— Talvez tenhamos outro visitante além de George. — Francesca disse, de repente, como se tivesse se lembrado do fato só naquele momento. Seu marido emitiu um muxoxo.

— Quem? — Isa indagou, torcendo intimamente para que fosse alguém que pudesse lhe dar brecha para evitar o Hartfield mais novo.

— É um... Ah... Qual o nome dele, querido? — ela olhou o marido, mas logo em seguida disparou: — Ah! É um tal Conde de Lannair. Margareth disse-me que ele retornou à casa que um dia foi de sua família, em Heybridge. Como está tão perto, me pareceu mal-educado não cumprimentá-lo, de modo que lhe escrevi uma carta convidando-o até Covington.

— E ele respondeu? — Bella arqueou uma sobrancelha, intrigada. Não recordava-se de algum dia ter conhecido algum Conde de Lannair. Talvez o sujeito não fosse um assíduo frequentador da cidade. Se fosse assim, talvez fosse bom conhecer algum rosto novo.

— Não ainda. — Fran respondeu, parecendo ligeiramente consternada. Franziu as sobrancelhas claras delicadamente. — Enviei-a por Vincent, um dos criados que foi ao vilarejo dois dias atrás. Mas talvez Vincent tenha perdido a correspondência? Ou errado a casa. É plausível, ele é um tanto distraído. — ela divagou. Então suas feições se iluminaram, como se tivesse tido a ideia mais brilhante imaginável: — Ah! Que tal visitarmos a ele nós?

— Nós? — Hartfield repetiu o termo, erguendo os olhos acima de sua leitura ligeiramente. Henrique fez algo parecido, encarando a prima.

Francesca fez um gesto com a mão em direção a eles.

— Não vocês, cavalheiros, já que evidentemente nada os deixaria mais transtornados que pôr o pé para fora de Covington. — ela assinalou. Então voltou-se para Bella em expectativa. — Ah, Isa, você viria comigo?

Isabella não pôde evitar sorrir diante da empolgação da prima. Perguntou-se quanto tempo fazia desde que ela tivera uma boa razão para retirar-se de sua casa. Deveria ser bastante, se a perspectiva uma mera visita de cortesia lhe animava tanto.

— É claro. Por que não? Estou certa que o Conde de Lannair deve ser um sujeito agradabilíssimo. — respondeu, ainda sorrindo.

— Não deveria descansar, Francesca, considerando seu estado delicado? — Hartfield, desta vez, de fato deixou o jornal de lado afim de encarar a esposa com uma cautela que Isa notou ser oriunda de genuína preocupação.

— Eu estou grávida, Logan, não com tuberculose. Posso realizar pequenos esforços físicos. Não é como se fosse andando até Heybridge, e certamente passarei a maior parte da visita sentada. — Francesca argumentou.

Seu marido manteve-se olhando-a por um momento ainda, como se ainda não estivesse completamente convencido. Isabella suspeitava que, se pudesse, o homem a manteria trancada dentro do quarto durante toda a gravidez afim de protege-la e ao bebê de quaisquer possíveis riscos. Mas é claro que isto era impossível, além de um ato exagerado. Talvez ele tenha apercebido-se do fato, pois por fim levantou o jornal diante do rosto novamente.

Francesca piscou, cúmplice, na direção de Isabella. E a mais nova piscou de volta.

 

Eles haviam chegado ao alvorecer.

Pararam numa estalagem na primeira noite, mas tinham passado a última viajando, mesmo exaustos e – no caso de Griffith – extremamente doloridos. Ele pudera ouvir pássaros cantando com aquela sonoridade estridente característica do período antes do amanhecer, e provara do ar que provocava aquela sensação revigorante que sugeria o fim da noite, mas não exatamente o início do dia. Fora um alívio sacolejar pela estrada desregulada que cortava o pequeno Heybridge, ainda completamente adormecido naquele horário. Isto significava que ninguém os veria chegar.

Não havia necessidade real de manter segredo a não ser pelo fato de Griffith preferir que ninguém soubesse que ele se encontrava na Casa Lodge, onde fora criado. Não queria ver ninguém. Na verdade, não queria ser visto. Não queria transformar-se numa curiosidade para velhos conhecidos e vizinhos. E não desejava vê-los peregrinarem até sua porta para cumprimenta-lo e saber como era um homem aleijado, para então partirem murmurando como era lamentável o estado em que o jovem Griffith Shawcross estava. De qualquer modo, não ficaria por muitos dias. Só precisava de um tempo.

Fora isso que pedira a Aiden. Só um tempo.

Fugira três dias após o sarau organizado por Lady Haylock. Mas isto somente pois fora o tempo que necessitara para recuperar-se do estrago que o evento fizera. Ele não recordava perfeitamente de tudo o que sucedera, pois a névoa do láudano que Isaac lhe empurrara goela abaixo havia mantido-no semiconsciente durante o primeiro dia, e passara o segundo dia embebedando-se de um conhaque que Aiden lhe oferecera. Mas lembrava-se do sarau. E lembrava-se de estar agonizando.

Negara-se a ir com a cadeira de rodas. Mesmo agora que enxergava o nível de sua estupidez ao fazê-lo, não via como poderia tê-la usado. Enquanto Isaac vestia nele as calças que usara para o evento, ele notara que não suportaria. Contudo, também não suportara não usá-la. Já no início do evento precisara manter-se sentado enquanto todos caminhavam ou dançavam pelo salão, trocando amabilidades e divertindo-se. Perto do fim dele, estava à beira de um colapso. A dor tornara-se uma coisa viva, pulsante, que o estava levando a loucura. Em determinado momento, Griffith suspeitou veementemente que iria desmaiar de tamanha agonia.

Sua última movimentação independente fora arrastar-se até o jardim, em busca de um pouco de ar fresco que aliviasse a azia que o dominava. Não lembrava quanto tempo fazia desde a última vez em que sentira-se daquela maneira. Na verdade, não conseguira lembrar de nada. Não conseguira pensar em nada. Sua mente era incapaz de concentrar-se em qualquer coisa que não fosse a dor, e o tempo estava passando, e aquele evento infernal nunca acabava. Como se não bastasse, do inferno surgira uma mulher especialmente dramática que gritara com ele – ou teria sido ele que gritara com ela? – sem qualquer diabo de razão. Griffith só queria ficar sozinho. Sentia-se humilhado. Estava furioso – consigo mesmo, com a vida e qualquer que tenha sido a cruel força que o levara até aquele estado – e tão perto das lágrimas que toda sua força era usada somente para impedir que vertessem. Só queria ir embora, para longe daquelas pessoas. Para longe daquele mundo no qual nunca mais poderia viver novamente, e fora tolo em acreditar no contrário.

Nunca deveria ter partido de Stirling.

O duque chegara pouco após Griffith espantá-la. E tinha levado-o de volta até sua casa. Três dias depois, Aiden estava noivo e Griffith dissera a ele que iria embora. Sentira-se como um covarde, como um fraco. Mal pudera olhá-lo nos olhos quando tinham conversado. Estava abandonando seu amigo num momento em que ele claramente precisava que estivesse por perto. Mas o deixara somente com uma promessa; de que retornaria para o casamento. E então fugira.

— Vamos embora, Isaac. — fora o que dissera ao valete, na manhã do terceiro dia.

— Vamos, milorde? — ele indagara, animado. Parecia, afinal, que não gostava de Londres. — Para onde?

Griffith encarara então a garrafa de conhaque vazia em suas mãos.

— Vamos para casa.

A casa não era um solar, tampouco uma mansão ou um chalé. Mas era grande, quadrada, sólida. Estivera vazia nos últimos seis anos. Havia muitas lembranças alegres ali, talvez as únicas da vida de Griffith. Sua infância e sua juventude haviam sido tempos felizes, apesar de sua família ter sempre vivido à margem da pobreza mesmo antes da morte de seu pai, quando Griff tinha quinze anos.

Quando chegara, ele ficara satisfeito ao descobrir que o lugar não estava com cheiro de mofo nem tampouco abafada. Havia uma faxineira que vinha quinzenalmente limpá-la e organizá-la, de acordo com Isaac. Havia um cheiro, porém, de algo indefinível que despertava lembranças da infância, da mãe e dele quando viviam ali. Até lembranças do pai. Era estranho que nunca tivesse reparado naquele cheiro quando morava ali – talvez porque na época aqueles cheiros não lhe evocassem nada de particularmente especial ou valioso.

Após dormir durante a manhã, por insistência de Isaac, despertara ansioso para explorar. Seu valete dissera que chegara uma carta – um convite. Aparentemente fora tolice esperar que realmente passariam despercebidos, embora tivesse dado instruções claras para que a carruagem fosse escondida sem demora assim que tinham descido. E por mais que tivesse dito a Isaac que contasse que viera sozinho afim de visitar os pais na padaria e que seu patrão lhe dera permissão para se hospedar na Casa Lodge. Ele só precisaria contar a uma pessoa e certamente em uma hora todos saberiam do fato.

Mas algo dera errado – pois quando Isaac fora até seus pais, eles haviam-lhe dito como contentes estavam por ver um Shawcross retornando ao lar. Provavelmente alguém os flagrara antes que sua mentira pudesse ser disseminada. Ainda assim, Griffith não estava disposto a ceder. De modo que pediu a Isaac que queimasse a carta e respondesse a qualquer atrevido que seu patrão estava recuperando-se de uma enfermidade particularmente terrível e não desejava ser perturbado por hora.

Nem pelos próximos dias. Ou pelo resto de sua miserável vida.

Deslizara por todo o térreo sozinho, encontrando a sala de estar à esquerda, o cômodo em que toda rotina diurna se desenrolava quando era menino. Tudo estava exatamente como e onde ele se recordava, a não ser pelos panos que cobriam as mobílias. Seguira para o salão então, maior e menos usado do que o outro aposento. Fora feito para comportar pequenos bailes, mas poucas haviam sido as vezes em que seu propósito fora cumprido. Em seu canto, havia um velho piano.

Griffith foi até ele. Como todo o resto, estava escondido sob um tecido. Sentiu um repentino desejo de puxá-lo, levantar a tampa do teclado e tocar, mas o instrumento deveria estar terrivelmente desafinado. Seu pai fora a última pessoa a tocá-lo. Fora uma tarde tranquila, aquela. Griffith estava sentado em seu colo e sua mãe cantarolava, na sala de estar, junto à melodia. Havia um cheiro quente no ar, de verão e alegria. Aqueles dias, aqueles anos, realmente haviam sido tão contentes e despreocupados quanto se recordava deles?

Provavelmente não. A memória tendia a ser seletiva. Lembrava-se de sua infância e juventude precoces como dias infinitamente ensolarados de amor e riso, talvez por causa do grande contraste que havia se seguido.

Mesmo assim, naquele momento, naquela casa, foi dominado pelo avassalador poder da ausência, por mais estranho que pudesse parecer. Sentiu uma falta desesperadora do pai, que o deixara há tanto tempo. E da mãe, que estava longe. Não, que ele pusera longe. Sentiu uma onda sufocante de sofrimento, graças aqueles dias ilusoriamente perfeitos que jamais experimentaria novamente. Pois jamais retornaria ao que era.

E nem fazia tanto tempo assim. Tinha apenas vinte e um anos.

Que dali a pouco seriam cinquenta.

Ou setenta.

Isto se ousasse viver tanto assim.

De repente, sentiu-se terrivelmente exausto. Foi por isto que deslizou de volta ao próprio quarto e, sem pedir ajuda a Isaac, arrastou-se para cima da cama novamente. Mas desfrutou somente brevemente do estado idílico da inconsciência. Pois, em algum momento próximo ao fim da tarde, foi despertado por batidas na porta.

 

O vilarejo de Heybridge era mesmo um lugarzinho bastante pitoresco.

Isabella ressentiu-se por não tê-lo visitado antes, sozinha. Era verdade que não havia muito o que pudesse fazer nas ruas do lugar em si, visto que não conhecia ninguém formal ou informalmente, mas haviam belas colinas ao redor, e enquanto a carruagem de Hartfield sacolejava pela rua principal, ela jurou ter visto um rio cortando um lindíssimo campo florido. Talvez, da próxima vez que decidisse cavalgar, pudesse tomar o caminho até o lugarejo. Pensou que ficaria muito satisfeita ao expandir sua exploração para além da propriedade de Hartfield.

— Ah, é logo ali na frente. — Francesca, sentada a seu lado, falou, embora não tenha se movimentado. Diferente de Isa, que colou a bochecha na janela do veículo afim de tentar enxergar a construção que ficava no fim da rua principal.

Perto de Covington ou mesmo da casa rural dos próprios Ortiz, a casa provavelmente seria chamada de cabana. Mas não era, de fato, uma. Certamente que era a maior das construções de Heybridge, destacando-se pela sua arquitetura sóbria e ligeiramente antiquada, o que sugeria ser o tipo de construção familiar e hereditária de algum cavalheiro.

Logo que desceram da carruagem, ambas subiram as poucas escadas que levavam à porta de entrada e então entreolharam-se. Francesca sorriu, não tentando esconder o quão feliz estava por ter se afastado um pouco que fosse de sua casa. Isa retribuiu o sorriso, já contagiada por toda sua animação, embora qualquer um que as visse provavelmente fossem considera-las tolas; empolgando-se tão grandemente com algo tão frívolo como uma mera visita cortês.

Quando deixaram cair a aldrava, o som opaco de sua batida reverberou pelos corredores da casa. Mas, a princípio, não ouviram o som de passos que normalmente era a resposta característica a este tipo de som. Francesca franziu as sobrancelhas delicadamente, mas justo quando parecia que ia indagar-se se havia ou não alguém em casa, Isabella se apercebeu de certa agitação dentro da construção. Ela pensou por um momento até ter ouvido vozes – sussurradas com agressividade, quase parecendo mais um farfalhar que um som de fato humano.

Mais um minuto passou-se. Então a porta abriu-se de supetão, apresentando um criado jovem e corpulento que lhes acenou gravemente com a cabeça. Parecia particularmente irritado, embora estivesse claro que o alvo de sua irritação não eram as duas mulheres à sua frente. Talvez por isso ele forçou-se a empregar o seu tom mais cordial quando disse:

— Miladys?

Francesca, que parecera ficar um tanto desconcertada com todo o desenrolar estranho da cena, se recuperou facilmente ao abrir um leve sorriso:

— Viemos oferecer nossas boas-vindas a Lorde Lannair, que recém-chegou no vilarejo. Sou Lady Hartfield, e esta é a Senhorita Ortiz, minha querida prima.

Uma expressão estranha tomou o rosto do lacaio no momento em que ouviu o sobrenome de Isabella. Oh, então a incrível fama dos Ortiz chegou aqui também. O que, na verdade, fazia pleno sentido. Francesca fora uma Ortiz antes de casar-se com Hartfield.

O criado reverenciou-as respeitosamente.

— Lorde Lannair as encontrará na sala. Com sua licença.

Levou cerca de mais dez minutos antes que alguém, de fato, surgisse novamente na sala de visitas. Enquanto aguardavam, Isabella e Francesca ficaram trocando olhares expressivos uma com a outra. A bem da verdade, o que Isa mais queria fazer era rir. A situação num todo estava desenrolando-se de modo tão bizarro que ela não se surpreenderia se o tal Conde de Lannair no fim revelasse-se um velho ermitão de noventa anos com excêntricos gostos para caça e isolamento social absoluto.

No fim, não se tratava de um velho. Mas de algo talvez muito pior.

Francesca, sempre perfeitamente educada e equilibrada, foi capaz de esconder polidamente a surpresa que talvez a tenha acometido no momento em que o sujeito deslizou para dentro da sala, sentado em sua cadeira de rodas. Mas é claro que Isabella foi incapaz de seguir seu exemplo. Talvez porque, em seu caso, somado à surpresa, houvesse ainda outro sentimento transbordando dentro de seu interior no momento em que seus olhos cruzaram-se com os olhos daquele homem, que refletiram, mesmo que brevemente, o pensamento que estava estampado nos dela:

Ah, o destino me odeia.

— Lorde Lannair. — Francesca, alheia ao inferno no qual sua prima acabara de mergulhar, sorriu cordialmente. — Nos perdoe a intromissão repentina. Viemos cumprimenta-lo em sua volta à Heybridge após tanto tempo. Mandei uma carta previamente avisando de nossas intenções, no entanto... Acredito que ela perdeu-se no meio do caminho.

A criatura, já plenamente recuperada do terror que ainda ameaçava sufocar Isabella, voltou-se para Fran com um breve aceno de cabeça. Nenhum sorriso, apenas uma menção leve com o queixo.

— Lady Hartfield. Sua carta não chegou em minhas mãos, de fato. Embora, de qualquer forma, eu não recordo de um dia tê-la encontrado antes.

Se notou a evidente secura em sua voz, Francesca não demonstrou isto com clareza ao responder:

— Ah, acredito que na última vez em que esteve aqui, ainda não era casada com Lorde Hartfield.

— Da última vez em que estive aqui, seu marido se quer era Lorde Hartfield. — o sujeito retrucou. Então voltou seus duros e escuros olhos para Isabella.

Ele é mesmo muito jovem. O pensamento cruzou distraidamente a mente da espanhola, que ainda tentava buscar em sua cabeça algo para dizer e ajudar sua prima naquela particular provação. Ele usava o cabelo mais comprido do que ditava a moda, e as ondulações castanhas caíam-lhe na testa de um modo quase desleixado, fazendo-o parecer ainda mais novo do que certamente era. Os olhos abaixo daquela franja pareciam estar desafiando-a a desviar o olhar.

Por um momento, pareceu a Isa que sua prima seria incapaz de recuperar-se desta. Mas parecia que estava subestimando o seu dom natural para cortesia, pois após não mais que cinco segundos de silêncio ela reiterou, observando o estranho contato visual que ambos travavam naquele momento:

— Ah... O senhor e minha prima já tiveram o prazer de encontrar-se?

O incrível desprazer, sim. Foi o que Isabella pensou. Nesse momento, o mesmo jovem lacaio de antes entrou, servindo-lhes café em xícaras e pratos de porcelana que haviam sido claramente limpos pouco antes. Quando ele acabou não partiu, como ditava o comportamento padrão da criadagem, mas sim recostou-se próximo à porta como um guarda. O Conde teve a prudência de responder no lugar de Isabella:

— Oh, sim. Tive a adorável sorte de conhecer Lady Ortiz em Londres, antes de vir me recolher em Somerset. — não havia nenhum calor em sua voz que indicasse que aquele encontro fora-lhe, de fato, adorável.

Mas Francesca continuou a sorrir abertamente.

— Ah, isto é ótimo! Dessa forma, me sinto menos acuada a fazer o convite que pretendia fazer-lhe.

Isabella virou a cabeça tão bruscamente para a prima que pensou ter ouvido o próprio pescoço estalar. Seus olhos encararam-na com urgência. Até mesmo balançou a cabeça de um lado para o outro, tentando ser o mais imperceptível possível, mas ela continuou concentrada no homem à sua frente:

— Estou planejando uma pequena semana festiva em Hartfield. Na verdade, pretendo começa-la aqui, e então continua-la em Londres, visto que logo meu marido precisará retornar à cidade para ocupar-se de suas responsabilidades lá. No entanto, ficaríamos muito honradas se o senhor nos cedesse sua companhia durante este par de dias em que estaremos aqui. Não ficaríamos, Isa?

Isabella demorou um momento para falar e, quando o fez, foi muito fracamente, só não mais fraco que o sorriso que surgiu em seu rosto:

— É claro.

Lutou contra o ímpeto de fechar os olhos com força. O Conde pareceu ligeiramente surpreso pelas palavras ouvidas. Mas não um surpreso-agradável. Estava mais para um surpreso-desconfortável, o tipo de reação de pessoas que não estavam adaptadas a serem convidadas para lugar algum – ou não estavam adaptadas a frequentar lugar algum.

— Lamento dizer, Lady Hartfield, — ele começou, embora nada em sua voz indicasse que de fato lamentava algo. — que logo estarei partindo de volta à cidade. Na verdade, minha partida é planejada daqui já daqui há dois dias. E este é um compromisso com o qual não posso faltar.

Francesca pareceu francamente decepcionada, embora sua boa postura a contivesse de demonstrá-lo com clareza.

— Compreendo.

Neste momento, algo estranho ocorreu. O lacaio, que já se fizera invisível àquela altura, de repente emitiu um som do fundo de sua garganta. Como um discreto pigarreio, mas que pôde ser claramente ouvido, visto que o silêncio se abatera no cômodo novamente. Ninguém reagiu evidentemente a isto; Francesca e Isabella eram educadas o suficiente para fingir que nada ocorrera. E o Conde... Ele também não esboçou qualquer reação clara, embora Isabella tenha pensado que ouviu um suave suspiro escapar de suas narinas antes dele reiterar:

— Mas é claro que posso ceder uma visita a Hartfield antes de preparar-me para partir.

Os olhos de sua prima iluminaram-se novamente.

— Oh, que maravilha. — ela disse, sorrindo. — Compreendo que possa parecer uma provação estar em meio a tantos estranhos, milorde, mas temos como vantagem o fato de que você e Isabella já se conhecem. E estou certa que Logan e o resto de nossos visitantes ficarão deleitados em também fazê-lo.

Ah, que esplêndida vantagem, Isabella pensou amargamente. Mas pareceu a ela, por um momento, que havia um traço de cruel diversão nos olhos escuros do Conde quando este respondeu:

— Ah, de fato, uma preciosa vantagem. Estou certo que também adorarei a companhia de todos, tal como adorei a companhia de Lady Ortiz em Londres. Lhes agradeço a acolhida tão calorosa, madames.

Isabella foi incapaz de imaginar, embora tenha esforçado-se diligentemente em fazê-lo não só naquele momento como também durante todo o percurso da viagem de volta e durante toda a noite que seguiu-se, qual fora o pecado horrendo que cometera para que Deus lhe desse tamanho castigo. Deveria ter sido mesmo a maior das barbaridades, se George Hartfield não parecia ser punição suficiente para encobri-lo.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Um xêro!



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