1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 10
Capítulo VIII


Notas iniciais do capítulo

Olá, meu povo! Tudo certinho?
Chegando aqui com mais um capítulo e, dessa vez, um capítulo particularmente importante. Como eu citei no anterior, esse é mais um daqueles que constam com uma narração da char-uma narração de um boy. No próximo, voltaremos a programação normal de duas narrações das chars por capítulo, pelo menos por um tempo. Mas não é por isso que esse capítulo é importante, não!
Ele é importante pois é um capítulo divisor de águas, por assim dizer. Ele finaliza a primeira etapa dessa história, que envolve as mocinhas conhecendo os rapazinhos e tendo suas primeiras impressões sobre eles. A partir daqui, a história vai começar a focar mais em desenvolver mais essas relações e ver no que elas darão ( será que vão dar namoro memo? Ou será que só caos e gritaria? ). E, claro, em desenvolver mais os conflitos pessoais dos nossos protagonistas, tanto os masculinos como os femininos.
Ah, outra coisa! Eu vou estar soltando um edit no tumblr sobre a personagem narrada nesse capítulo, e esse edit foi feito pela criadora dela ( congrats a essa lindíssima e talentosíssima ). Tal como os edits de apresentação das personagens foram feitas pela criadora da Ophelia. E isso me fez lembrar que eu faltei dizer uma coisa a vocês no começo da fanfic: O conteúdo postado no tumblr não obrigatoriamente precisa ser só de meu feitio. Vocês também podem cooperar, seja com edits ou até "contos" de suas personagens ( textos extras que talvez vocês queiram escrever, como eu sei que algumas de vocês gostam de fazer ). Esses contos podem narrar cenas do passado delas que vocês julguem interessantes ou divertidas de se ressaltar, por exemplo. You do you, fiquem à vontade nesse sentido! Se decidirem criar algo, basta me mandar que eu estarei postando por lá!
Bom. Acabados os avisos, me limito a desejar uma boa leitura a vocês. Té mais!



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Londres, 1812

 

Na manhã de seu casamento, Khaleesi despertou com a fronha de seu travesseiro úmida.

Agatha entrou em seu quarto e encheu sua banheira com água quente e fumegante, esfregando-a dos pés à cabeça até deixa-la rosada e reluzente. As esfregadelas insistentes arranharam um pouco suas costas, mas ela mal sentiu o ardor. Cada centímetro de sua pele foi raspada, então hidratada com perfumes que encheram suas narinas e fizeram-na sentir-se como um frango besuntado à caminho de ser servido. O que, de certo modo, era; nada mais que um produto sendo preparado afim de ser consumido. Devorado até que não lhe restasse nada além da carcaça da mulher que fora.

Uma mulher que um dia tivera sonhos e pretensões que jamais se realizariam, não mais. De modo que não importava realmente o que um dia quisera. Notou, tarde demais, que isso nunca importara.

Uma outra criada tratou de suas unhas, deixando-as aparadas e limpas. Então chegou a costureira que tinham visitado na Bond Street, acompanhada de Lady Beaumont. Sua roupa de baixo era toda de linho fino, mas o vestido em si era de seda. Era um traje novo e inteiramente adequado à moda vigente. Um vestido cor de marfim com mangas compridas e justas, que exibia um decote quadrado não muito revelador, só o suficiente para despertar certa atenção contida, cintura alta e uma saia ligeiramente solta. Um chapéu de aba estreita na parte de trás para acomodar seu cabelo completaria o conjunto. Não tinha adornos além da fita dourada de cetim que o mantinha preso sob o queixo.

Lady Beaumont também escolhera sapatos confortáveis e luvas que combinavam com a fita.

— Está belíssima, madame. — a costureira disse, ao olhá-la. — A mais bela noiva que Londres já viu.

Khaleesi examinou a própria aparência no espelho de corpo inteiro. Noiva, repetiu o termo mentalmente, com certo amargor. Seu aspecto exibia mesmo bom gosto. Havia algo no minimalismo com que fora vestida que tornava os trajes muito mais bonitos que a maioria das roupas de padrões e detalhes intricados que um dia usara. Mas não estava bela. Não sentia-se bela. O rosto que lhe encarava de volta no reflexo era o de uma mulher derrotada e abatida que não estava certa se reconhecia, nem se queria reconhecer.

Toda sua vitalidade parecia ter sido drenada. E também todo seu sangue. Só isto explicaria a palidez pastosa da pele daquela estranha, e a ausência de brilho em naqueles olhos que eram como poços de piche.

— Talvez... Algumas joias. — decidiu a costureira, após notar que não receberia resposta. Voltou-se ansiosamente na direção de Lady Beaumont, que permanecia no canto do quarto, parada. Vestida de azul-real, a mulher era a própria descrição da elegância etérea. Khaleesi invejou-a pela forma como parecia perfeitamente composta. Ressentiu-se disso. Pois sabia que mesmo que aquelas paredes ruíssem e o teto desabasse sobre suas cabeças naquele instante, a mulher permaneceria plácida e inabalável.

O seu mundo estava ruindo. Ela lutara bravamente contra o sentimento desde o momento em que descobrira que iria casar-se, mas agora ele a engolia, cru e mais real do que nunca fora. Como se toda a terra sobre o qual se sustentasse tivesse sido de repente arrancada de debaixo de si. Mas, na verdade, ela nunca fora a mais estável das bases. Estivera ruindo há muito tempo. Somente ela fora tola o suficiente para acreditar no contrário, para demorar a notar. Na verdade, só o fizera durante aqueles últimos dias de estadia com os Beaumont. E desde então, havia feito de tudo para não exibir qualquer sinal evidente de fraqueza.

Isto seria insuportável. Mais terrível que sentir que estava desabando seria admitir isto. Não, Khaleesi não demonstraria fragilidade. Não permitiria que aquela mulher – ou ninguém daquela estúpida família ou naquele estúpido país – a visse fraquejar.

— Melhor não. — foi a primeira vez que Lady Beaumont pronunciou-se desde o momento em que entrara no quarto. — Deus, em toda sua bondade, lhe ofereceu muita beleza, Srta. Augustenborg. É uma jovem adorável.

Khaleesi murmurou algo em resposta. Ou pensou ter murmurado.

— Estamos bem. — Lady Beaumont disse então, na direção da costureira. E de Agatha e da outra criada. Khaleesi ainda não estava pronta. Seu cabelo permanecia solto e sem forma, caindo espesso e escuro por suas costas. Mas, pelo modo como quase acotovelaram-se ao passar pela porta, duas das mulheres pareciam bastante ansiosas para escapar da atmosfera fúnebre que envolvia o cômodo. Tão ansiosas que se quer importaram-se com este detalhe. Ou talvez só não tivessem a coragem de desobedecer a uma palavra de Lady Beaumont. Agatha, por sua vez, lançou um olhar de solidariedade em direção à Khaleesi, e por um momento estendeu a mão, como se quisesse segurar a dela. Mas então pensou melhor e se retirou, abaixo do olhar de Lady Beaumont.

— Sente-se, menina.

A dinamarquesa encontrou o rosto da mulher mais velha pelo reflexo do espelho. Não havia gentileza ali. Mas ela aproximou-se com tranquilidade e, quando não foi obedecida, devolveu-lhe o olhar com certa pontada de impaciência. Khaleesi sentou-se, lentamente, na poltrona que ali fora posta, embora sua vontade fosse de permanecer em pé por simples e pura petulância.

— Deixe-me pentear seu cabelo. — ela pediu, não lhe ordenou. Khaleesi notou que poderia manda-la embora, se assim desejasse. Era o dia de seu casamento. Mesmo que estivesse hospedada em sua casa, a mulher teria de escutá-la nesta ocasião.

Mas houve algo naqueles olhos intrigantes que a fez inclinar a cabeça ligeiramente para frente, enquanto a loura pegava uma escova e começava a deslizá-la por suas mechas grossas e luzidias. Começou a desatar os nós com notável habilidade e – o que era mais perturbador – delicadeza. Durante a atividade, seu semblante relaxou, talvez o mais perto que conseguia chegar de um sorriso, e Khaleesi pôde notar com mais evidência como era estonteante, com o queixo fino e os cílios tão longos e tão claros que praticamente desapareciam sob a meia-luz diurna que se entremeava pela janela.

Sua aparência era quase antinatural. E embora não fosse dura como a de seu irmão, havia qualquer coisa de rígido nela. Como se fosse uma couraça; bela, mas inflexível. Khaleesi ainda não conseguia entender o porquê disto. De qualquer modo, nada que pudesse cogitar se quer chegaria perto de explicar o que a mulher fez e disse em seguida.

Seus dedos tocaram o queixo de Khal, incitando-a a erguê-lo. A olhar para cima, para seus rostos refletidos no espelho.

— Cabeça erguida, menina. — seu semblante voltara à seriedade rígida e as palavras saíram firmes de seus lábios. — Não importa se o chão onde pisa está cedendo. Não há forma de fugir. O maior ato de rebeldia que pode proclamar é mostrar ao mundo que, ainda assim, permanece de pé. Daqui há pouco mais de uma hora você será a Duquesa de Barclay, o que quer dizer que o mundo estará abaixo de seus sapatos. Pise nele.

As últimas palavras foram ditas com tamanha intensidade que Khaleesi somente encarou-a por um momento, incapaz de formar uma reação digna. Não sabia o que mais a deixou mais desconcertada; ver aquela mulher fazendo qualquer demonstração passional, mesmo que somente por meio de sua voz, ou assimilar o que ela dizia. Piscou os olhos, encarando aquela estranha que logo mais seria sua irmã por matrimônio.

Pise nele.

— Lady Beaumont...

— Acredito — ela interrompeu-lhe, dessa vez com certa dose de suavidade, embora seus olhos permanecessem frios. — que está na hora de se referir a mim como Morgan. E creio que devo chama-la de Khaleesi.

A mais nova anuiu. Lady Beaumont virou-se brevemente então, voltando-se novamente para ela ao posicionar suas mãos a frente de seu colo, prendendo um delicado cordão de ouro a seu pescoço. Havia um pequeno diamante em sua ponta. Mas este era o único detalhe intricado na jóia.

— Minha avó, a Duquesa Viúva, usou em seu casamento. Assim como minha mãe usou no dela. E eu usei no meu. — a mais velha explicou, enquanto atava o cordão.

Khaleesi sobressaltou-se.

— Ah, mas eu não poderia...

— Logo mais será uma Gillingham. — novamente, foi interrompida. E logo ficou claro que não havia espaço para negociações naquele tópico. — Não só pode, como deve.

Quando finalizou com o colar, as mãos hábeis de Lady Beaumont – Morgan— começaram a trabalhar em seu cabelo. Era no mínimo estranho que soubesse fazer algo assim. Certamente vivera toda sua vida sendo servida e cuidada por criadas, que tinham-lhe vestido e penteado e perfumado desde que ainda era uma menina. Ela pareceu ler a dúvida em sua mente, pois murmurou, sem desviar a atenção de seu trabalho:

— Sempre gostei de penteados.

E este foi o fim da conversa.

Quando terminaram, o cabelo de Khaleesi havia sido domado num penteado com cachos intricados na parte de trás de sua cabeça, afim de que não fossem amassados pelo chapéu. Alguém bateu à porta pouco após o acessório ter sido posto. Era a criada. Sem dizer uma palavra, Morgan rumou em direção à porta e Khaleesi seguiu-a. Desceram as escadas que levavam ao saguão da residência Beaumont. Lá se encontrava o Visconde Bedwyn com o Senhor Holroyd – o médico – e um homem que Khaleesi ainda não tinha conhecido. Era bastante jovem, com olhos e cabelos castanhos e um rosto liso. Mas o que mais chamava a atenção era o fato de estar sentado numa cadeira de rodas. Ele foi apresentado como o Conde de Lannair.

— Cavalheiros, permitam-me apresentar a futura Duquesa de Barclay. — não havia sorriso na voz de Morgan, mas ela fez um gesto amplo com as mãos na direção da noiva.

A contrário de sua personalidade, Khal sentiu-se terrivelmente retraída. Mais do que nunca quis esconder-se daqueles olhares perscrutadores. Mas então as palavras de Morgan ecoaram em sua mente.

Pise nele.

Ela se empertigou.

— Ficou muito exuberante, senhorita, devo dizer. — o médico afirmou, levando uma das mãos dela até os lábios solenemente.

— Fica muito bem com o cabelo assim, moça. — disse o Conde, vagamente. Mas fez uma mesura leve com o queixo. — É um prazer conhecê-la finalmente.

O Visconde Bedwyn olhou-a quase diretamente nos olhos. Então abriu um sorriso amplo e doce:

— Está belíssima, madame.

— E como saberia, senhor? — Khaleesi indagou, arqueando uma sobrancelha.

— Escolhi o verbo errado — ele respondeu. — É belíssima, madame. Percebo pela sua voz, e isso me deixa feliz. Aiden precisa do que há de melhor. Ele andou um tanto infeliz.

Khal o contemplou, um tanto estarrecida. Mas não lhe restou tempo para formular uma resposta digna. Pois um lacaio surgiu para avisar que o vigário chegara para celebrar o casamento. Não iriam para qualquer igreja na cidade, mas para uma singela capela que fora construída na propriedade dos Beaumont. A construção ficava no meio de um pequeno conjunto de árvores que haviam sido plantadas num dos cantos do jardim. A capela era utilizada para batismos familiares, Morgan tinha-lhe dito, e para outros momentos particulares. Mas nunca tinha sido cenário de um casamento.

O Visconde Bedwyn tomou seu braço. Mais tarde Khal não conseguiria se lembrar de ter saído da casa, de descer os degraus que levavam ao jardim ou de atravessá-lo. Passaram por um canteiro de ervas, entre a horta de um lado e fileiras de flores do outro, mas ela não apercebeu-se disso. O simples ato de pôr um pé a frente do outro pareceu tomar toda sua atenção. Quando por fim chegaram próximos à capela, o Visconde parou enquanto todos os outros entravam na estrutura – na ausência de seu pai, ele se voluntariara a prestar o papel de acompanha-la.

O vigário estava à espera.

Não haveria outros convidados.

Se fosse uma cerimônia de casamento normal, seu noivo estaria na capela esperando ansiosamente por sua chegada e ela entraria pela porta de braço dado com o pai enquanto a família e os amigos a contemplariam, admirados. Se fosse uma cerimônia de casamento normal, haveria música. Haveria uma grande nave para um lento desfile enquanto a solenidade das núpcias se transformava numa agradável expectativa. Ela estaria expectante, naquela mistura de terror e excitação que precedia o momento em que se uniria ao homem que amaria pelo resto de sua vida. O homem que a virara de ponta cabeça e com quem jamais poderia imaginar viver sem. Um dia, Khaleesi ansiara por aquele dia em seus mais febris sonhos.

Mas aquele não era um casamento normal. E aquele não era o homem que habitara seus anseios durante todos aqueles anos.

— Madame — a voz do Visconde Bedwyn a tirou da borda de uma espécie de precipício. — É quase uma piada terem designado um cego para leva-la ao altar. Mas eu prometo não deixa-la cair, se fizer o mesmo por mim.

Khaleesi apertou seu braço, encarando-o fixamente, embora ele não pudesse vê-la. Pensou que não teria se importado em casar-se com Lorde Bedwyn, com seu cabelo dourado de sol, seu sorriso caloroso e seu olhar que, embora não enxergasse, naquele momento transbordava ternura e gentileza. Atributos que evidentemente faltavam em seu noivo.

— Obrigada.  — respondeu, quase num sussurro. Pensou aliás que ele não tinha lhe ouvido.

Mas o homem anuiu, dando-lhe uma batidinha nas costas da mão. O momento chegara.

Seguiram até o interior da capela. As construções de pedra eram sempre frias por dentro, em especial quando erguidas entre a mata, com pouquíssima luz do sol penetrando por suas pequenas janelas. Sobretudo num dia nublado como aquele – o céu cinzento e esmaecido parecia refletir o estado de espírito de Khaleesi no momento em que atravessou a pequena nave até o altar, onde seu noivo a aguardava, de costas. Ela teve a impressão que aquela capela era mais fria do que outras construções do tipo.

Sentia-se gelada até a alma.

Os parcos convidados – que resumiam-se a família Beaumont, aos amigos do comandante e à irmã mais nova do Visconde – já tinham deslizado até a fileira da frente, que contava com assentos almofadados. No momento em que a troca de parceiros foi feita e o Visconde dirigiu-se até onde os outros estavam, Khaleesi olhou seu noivo. Ele carregava aquele olhar indecifrável.

Ofereceu-lhe o braço com formalidade, como faria com uma parceira de dança, uma desconhecida, num baile. Ela pousou os dedos enluvados meio sobre a mão, meio sobre o pulso do homem, e ele a voltou para a frente, para se casarem.

A cerimônia em si passou como um sonho. Khaleesi fez tudo o que lhe foi pedido. Pronunciou seus votos e o comandante pronunciou os dele. O Conde de Lannair, que fora escolhido como padrinho para a ocasião, tinha passado a maior parte do processo checando vez após vez seu bolso, para conferir que as alianças estavam ali. O Comandante pegou elas dele. Ele deslizou o anel em seu dedo. Calculara o tamanho erroneamente, pois parecia estar um número acima. A jovem concentrou-se na umidade e frieza do ambiente e em como ela a abraçava como uma velha amiga, transportando-a para a propriedade campestre de sua família no interior da Inglaterra. E quando isto não funcionava, ela pensava nas cores e sons de uma terra ainda mais distante, a terra onde deixara tudo – inclusive o homem que amara e as memórias de felicidade mais genuína que um dia conhecera.

Então, no que pareceu ser uma eternidade e simultaneamente tempo algum, o vigário os declarou marido e mulher, levando-os a uma minúscula sacristia para assinarem o registro enquanto o Conde de Lannair e Morgan os seguiam para assinar como testemunhas.

Enquanto o vigário se despedia e espremia-se para sair pela porta, os convidados aproximaram-se, gravitando ao redor do casal recém-formado. O Doutor Holroyd apertou a mão do comandante Gillingham – seu marido — e bateu em seu ombro. O Conde de Lannair fez algo parecido, embora o comandante tenha se inclinado ligeiramente para que seu braço o alcançasse. O Visconde o pegou despreparado num abraço apertado, então voltou-se na direção de Khaleesi e a abraçou, dando-lhe um beijo no rosto. A jovem senhorita Dashwood também a abraçou. Morgan segurou o rosto de seu irmão com as duas mãos e, quando ele abaixou a cabeça, beijou-lhe a bochecha delicadamente. Então segurou na mão da nova irmã e apertou-a com leveza. Lorde Beaumont limitou-se a apertar a mão de ambos, murmurando congratulações educadas.

A pequena comitiva caminhou de volta para casa como na ida, o Visconde ao lado de Khaleesi, apoiando-a em seu braço, enquanto Lorde e Lady Beaumont seguiam atrás e o Conde e o médico posicionavam-se um de cada lado... Do marido dela. Quanto tempo levaria para se acostumar com esta ideia? Algum dia se acostumaria?

Os criados sabiam do casamento, claro, embora Khalessi não recordasse de ter havido um anúncio formal. O mordomo fizera todos se enfileirarem: homens de um lado, mulheres de outro. Todos fizeram reverências ou se curvaram quando o grupo entrou e Lorde Beaumont fez um pequeno pronunciamento pomposo e formal antes de comandar três saudações inibidas dos empregados.

O Comandante fez um breve e sem emoção discurso de agradecimento, Morgan se mostrou nobre e benevolente e ao fim de suas palavras olhou diretamente para Khaleesi, que não sentia-se apta a fazer mais que murmurar algo educado. Mas o olhar de sua cunhada fê-la mudar de ideia. Você será duquesa de Barclay. Reunindo toda a energia e ânimo que estava longe de ter naquele momento, Khaleesi conseguiu abrir um sorriso e agradecer em alto e bom som a todos por seus votos gentis e pela deliciosa surpresa de boas-vindas.

O sentimento ao menos não fora de todo uma farsa. Pois Khaleesi ficou sinceramente tocada pelo desjejum comemorativo que fora preparado, certamente na correria graças ao modo como tudo ocorrera; tão rápido e sem muito tempo para grandes planejamentos. Haviam flores à mesa, assim como fitas, velas e até mesmo um pequeno bolo de noiva, tudo preparado pela criadagem sem o conhecimento de ninguém. Mesmo os donos da casa pareceram genuinamente surpresos pelo capricho do arranjo.

Mas mesmo isto não era capaz de afastar a percepção de que, comparada ao que era usual, aquela comemoração era, na mais positiva das visões, apática.

Seu marido bebeu pouco e não comeu absolutamente nada, embora certamente não tivesse tomado café da manhã antes da cerimônia. Escutava sempre que alguém erguia a voz afim de fazer um brinde, e às vezes fazia um aceno de apreço. Mas fora isso, parecia estar ali apenas de corpo. O almoço pareceu prolongar-se sem fim, embora Khaleesi tenha provado pouquíssima coisa da comida e nem mesmo o bolo tenha sido capaz de seduzi-la. Queria desesperadamente que aquilo acabasse e, no entanto, temia o seu fim. Pois após aquela tarde viria a sua noite núpcias. A noite em que consumariam o matrimônio que acabara de ser realizado.

Seu estômago contorceu-se. Embora não graças àquela ansiedade expectante que deveria estar envolvendo-a.

— Temo que a aliança tenha ficado um pouco grande. — seu marido anunciou, então, muito de repente. Foi talvez a segunda vez no dia em que ele olhou-a diretamente – a primeira fora na capela, no momento em que ela deslizara o anel por seu dedo.

— Um pouco, talvez. — respondeu, vagamente. — Mas pode ser consertado, comandante. A maioria das coisas pode ser consertada.

Ela questionou as próprias palavras. Podia? Podia mesmo? A cerimônia da qual acabara de participar lhe passava a mensagem contrária.

— Isto não foi planejado. — ele murmurou, deixando de olhá-la. Mas ela não soube dizer se referia-se ao casamento ou à mesa posta à frente deles. De qualquer forma, ele logo reiterou: — Após nossas núpcias, devemos seguir para visitar pessoalmente minha mãe, Lady Gillingham. Então acredito que seria adequado buscarmos seus pais, para que eu tenha a chance de discutir os acordos nupciais com o Duque, embora tecnicamente... Tudo já esteja feito. Então precisaremos organizar o baile de celebração ao casamento, e fazer uma rodada de aparições sociais para espalhar a notícia.

As palavras foram pronunciadas com evidente cansaço. Pareceu a Khaleesi que seu marido não apreciava qualquer tipo de conjuntura social. E tampouco sabia fazer sugestões; tudo o que dizia era num tom inflexível, como se conversasse não com sua esposa, mas com um dos soldados sob seu comando.

Khal, por sua vez, odiava receber ordens.

— Tudo consta em sua restrita programação de nosso casamento, comandante? — indagou, sarcasticamente.

Ele voltou-se novamente para ela, o cenho franzido. Mas ela gesticulou com a mão, dispensando o fato. Não sentia-se muito no clima de brigar, embora tivesse um desejo enorme de fazer isso.

Foi a última vez que trocaram palavras naquele dia.

Mais tarde, à noite, Khaleesi sentou-se na beirada da cama de seu quarto na casa Barclay, as mãos entrelaçadas em seu colo. O quarto era contíguo ao de seu marido, com somente um quarto de vestir separando-os. Era decorado maravilhosamente bem em tons de creme e dourado, com uma cama numa plataforma e um dossel acima de sua cabeça. A tarde lhe oferecera algum tempo para buscar resignação e, embora seu espírito ainda permanecesse abatido, naquele momento sentiu-se mais agitada que qualquer outra coisa. Usava a camisola que Morgan comprara-lhe às pressas no dia anterior, junto aos trajes que vestira de manhã. Haviam apliques delicados de renda na bainha do belo linho branco e na borda de suas mangas. Trançara o cabelo, mas quando tentara colocar a touca que viera junto ao conjunto, Morgan a tomara de sua mão.

— É melhor que não se esconda. — tinha-lhe dito. Então, com aquela delicadeza incomum a seu toque, começara a desatar a trança até que seu cabelo escorresse por suas costas, espesso e perfumado. — Assim. Esta é a face de uma duquesa nobre e segura de si.

Khaleesi estava nervosa como se aquela fosse uma primeira noite que realmente importasse. Não seria sua primeira, mas de certo modo sim, importava. Pois selaria por definitivo o seu destino; não que ainda houvesse chance de escapar. Mas, após aquela noite, tornaria-se por definitivo uma esposa. Sim, aquela noite tinha grande significado, mas não pessoal. De fato, não importava o que faria com o cabelo ou o que vestiria. Nem tampouco como se sentia.

Soltou as mãos e encarou as palmas. Se casara, porém sem a presença de seu pai, de sua mãe ou de seu irmão. Não conhecia seu noivo e nem a família dele por inteiro, que agora também era sua. No dia seguinte, ela e seu marido partiriam e começariam a mudar tudo isso ou, ao menos, o que pudessem mudar. Pois ela não achava que um dia poderia conhece-lo – ele deixara claro que não fazia questão que isso ocorresse, certo? Não era relevante.

Ela provavelmente passaria o resto da vida ao lado daquele homem, e para sempre ele lhe seria um desconhecido. Um estranho que talvez a visse numa noite ou outra, afim de tentar fazer com que concebesse logo um filho, um herdeiro. Mas não mais que isto. Estava certa de que, quando conseguisse o que queria, seu marido simplesmente desapareceria e eles nunca mais teriam qualquer contato desnecessário. Somente o que fosse estritamente preciso, talvez para discutir acerca da educação da criança – ou das crianças – ou para manter as aparências na frente de seus pares.

 Não sabia se conseguiria ser feliz vivendo daquele modo. Talvez encontrasse consolo nos filhos, pois sabia que os amaria mesmo que não amasse seu marido. Não existia necessariamente um elo entre a felicidade e o amor, certo? Não era preciso estar apaixonada pelo marido para ser feliz com ele, era?

Mas, para isso, precisa-se ao menos falar com ele. O que você não suporta fazer por mais de poucos minutos.

Naquele momento Khaleesi poderia, caso se permitisse a tamanha indulgência, chorar e chorar até se sentir fraca e vazia. Vontade não lhe faltava. Choraria pela perda de um homem honrado que jamais tornaria a ver, embora o tivesse amado com tudo o que era e tudo o que tinha. Pela perda deste amor e da perspectiva de felicidade que um dia tinha trazido. Pela sua falta de poder e escolha. Por um futuro que parecia assustadoramente vazio.

Mas aquilo não era ela. E não fazia o mínimo sentido continuar se permitindo prestar aquele papel vulnerável e chorão. Já tinha acontecido. Ela estava casada, e não havia forma de voltar atrás. Mas não passaria o resto de sua vida chorando esse fato; enfrentaria sua nova realidade de rosto erguido e encontraria uma forma de continuar firmemente. Não permitiria mais que aquela situação ou aquele homem tivessem tanto poder sobre ela. Não mais.

Pise nele. 

Esfregou o rosto, afim de afastar a vontade que as lágrimas tinham de vir. Então começou a tentar concentrar-se no presente e no nervosismo atual que era infinitamente mais fácil de suportar que aquelas perspectivas desoladoras.

De qualquer modo, todos seus esforços foram infundados. Pois seu marido não entrou em seu quarto naquela noite.

 

 

Aiden já estava parcialmente bêbado quando partiu da Casa Barclay.

Passara cerca de meia hora em seu escritório, degustando um drinque solitário de uísque – pois a garrafa de bom conhaque que tinha dera a Griffith uma semana antes. Uma semana. Passara-se tão pouco tempo assim? Parecia que fora ontem que havia chegado à cidade, então sido convidado – não, intimado – a comparecer ao sarau de Lady Haylock. Fora um evento tão divertido quanto qualquer outro evento social daqueles era para ele – ou seja, nem um pouco. Fora cercado por todos os lados por mães vorazes, desejosas de que desse um tostão ou dois de atenção às suas filhas.

A pior certamente fora Lady Ortiz – se é que ele poderia chama-la de tal modo –, pois tivera o apoio da própria anfitriã em sua empreitada. Mas graças à sua notável prática em escapar de enlaces matrimoniais, ele conseguira fugir da Senhorita Ortiz e de sua mãe crápula. Então recebera aquela maldita carta. E Griffith tinha ido embora.

Quando ele voltara, na noite anterior, tinha o recebido berrando:

Griffith, seu patife maldito! O que significa isso? Hein? Um dia inteiro de atraso. Podia muito bem voltar para o quinto dos infernos de onde você veio por ter feito isso comigo, seu canalha safado.

Mas ficara indescritivelmente aliviado ao vê-lo, pois significava que novamente tinha todos os seus amigos por perto. Tanto que pedira a ele que fosse o padrinho de seu casamento.

Estava casado, por Deus.

Quando partira para Londres idealizara que levaria pelo menos toda aquela primavera para escolher uma esposa. Já conseguira resignar-se o suficiente com seu inevitável e pesaroso destino, e começara a traçar algo que assemelhava-se a um plano; ele não precisaria de mais que duas ou três semanas de frequência em eventos para selecionar uma candidata promissora. Sua mãe certamente o ofereceria uma lista das mulheres disponíveis e aptas ao serviço. Então, tendo selecionado a pobre alma, bastaria passar o resto da temporada cortejando-a, somente por mera formalidade.

Pois mesmo que não fizesse as coisas da maneira mais apropriada, sabia que não seria rejeitado. Que dama rejeitaria a um duque?

Justamente aquela com quem casara-se, é claro.

Tentando enxergar de modo mais prático, talvez devesse agradecer ao Príncipe de Gales. De fato, ele lhe poupara bastante tempo e energia ao enviar aquela correspondência. Aquela três vezes bendita e mil vezes maldita correspondência. Um cumprimento polido. Uma sugestão formal. E estava feito; Aiden resolvera a questão do matrimônio, que era de sua responsabilidade sanar, e ainda agira pelo bem diplomático de sua nação.

Maravilhoso. Fantástico. Esplêndido. Ou seria, caso ele não discordasse veementemente da decisão de seu soberano. Aiden não era estúpido; sabia o peso que aquela união tivera. Era como se o Príncipe tivesse aberto a boca e anunciado abertamente que acolhera um traidor, a raspa de uma nação inimiga. Ah, bem, não inimiga. A neutralidade inicial da Dinamarca diante da guerra não poderia ser declarado como um aberto sinal de inimizade. Mas tampouco fora um sinal de amizade. E isso bastava para que o duque não nutrisse a melhor das opiniões quanto ao país. De qualquer forma, após o ataque de 1807, a nação passara a apoiar Napoleão oficialmente e se tornara inimigo da Inglaterra oficialmente por consequência.

O que não queria dizer que recebia de braços abertos aqueles que tinham-no traído. Um traidor era o que era, não importava sua origem. E Aiden não apreciava traidores. E decididamente não confiava neles. Era dessa forma que enxergava o Duque de Augustenborg, o pai de sua esposa, que tinha fugido com o rabo entre as pernas quando a Inglaterra tinha atacado a Dinamarca cinco anos antes. Embora ele tivesse a impressão que havia mais por trás desta história mal contada.

A questão – e a infeliz conclusão de todo este raciocínio – era que não era ele quem sentava-se no trono da Inglaterra. Era o Príncipe Regente. E, consequentemente, o que cabia-lhe era somente obedecê-lo. Cumprir seu dever com sua nação. Esta era sua única responsabilidade.

O que não diminuía em nada seu aborrecimento.

Algo que poderia tê-lo amenizado talvez fosse descobrir que a noiva escolhida para si era uma dama solícita, de brando espírito, tão disposta a cumprir com seu dever quanto ele. Mas é claro que mesmo este conforto o destino lhe negara. E não só isso, como o presenteara com o completo oposto do que era desejável.

Ah, como ele era um homem de sorte. Tremenda, incomensurável sorte.

O único consolo que obtivera fora a presença de seus amigos. Todos tinham comparecido, inclusive o próprio Griffith, que chegara de seu retiro em Somerset só um pouco antes da cerimônia começar. Aiden pedira a ele que fosse seu padrinho, e apesar de estar evidentemente exausto e dolorido da viagem, o amigo lhe sorrira provocativamente e garantira que não deixaria ele sair correndo da capela.

Apoiou o copo de vidro no amplo peitoril da janela com um baque surdo. Aquilo estava ficando ridículo. Não adiantava ficar ali, lamentando as desgraças e infortúnios que o tinham acometido. O que fora feito estava feito, e agora não havia mais maneira de voltar atrás. Na verdade, naquele momento ele deveria levantar-se, subir as escadas até os aposentos de sua esposa e concluir o ciclo que iniciara naquela manhã.

Meia hora.

Fora que dissera a ela, quando retornara após passar a tarde inteira fora de casa. Após o almoço comemorativo à cerimônia, mandara empacotar tudo que era seu – e também as coisas da Duquesa de Barclay – e enviara até a Casa Barclay. O fim da estadia de sua noiva com os Beaumont findara. Era hora de levá-la para sua casa. Então, de algum modo, dera um jeito de escapar em meio a esta comoção e passara o resto da tarde desaparecido. Gastara a maior parte de seu tempo no White’s e durante o resto dele vagara pela cidade, sem destino certo. Apenas um cru e intenso desejo de não se direcionar de volta até sua residência londrina.

Um sentimento parecido o dominava naquele momento. Ainda assim, quando sentiu que os trinta minutos prometidos já tinham sido há muito ultrapassados, pôs-se de pé. Certamente ela tivera tempo o suficiente para preparar-se. Morgan aparecera com o intuito de ajuda-la a fazê-lo, assim como orientá-la acerca do que aconteceria naquela noite.

Aquela noite.

Pode ser consertado, comandante. A maioria das coisas pode ser consertada. Fora isso que ela lhe dissera naquela manhã, olhando-o fixamente nos olhos. Ele evitara olhá-la durante toda a cerimônia, e naquele momento recordou-se por quê.

Pois, além da apatia evidente, aqueles olhos escuros também carregavam um intenso desprezo. Não uma discreta indiferença, ou desagrado por ter-se sujeitado àquilo – por isso ele não poderia culpa-la, mesmo ele não estava pulando de alegria, certo? Mas não fora só isso. Cada músculo em seu corpo que ficava tenso sob o olhar que ele dava-lhe sinalizava o asco que sentia. Desprezo e asco não só pelo casamento que acabara de ser realizado contra a vontade de ambos. Mas desprezo e asco por ele.

 Embora não tivesse intenção de beber mais, a ideia de se entregar ao esquecimento começou a lhe parecer atraente. Qualquer coisa seria atraente se significasse que ele não se lembraria daquele olhar. Aquele terrível olhar, que o fizera sentir-se como o vilão mais cruel, a criatura mais desprezível que já pisara na terra. É claro que Aiden tinha tanta culpa quanto ela – quase dissera isto em alto e bom som para a mulher, no momento em que ela disser aquelas estúpidas palavras sobre conserto, mas isto teria sido patético.

Ele não costumava importar-se com o que outros achavam acerca de si. De fato, sabia que poucos eram aqueles que nutriam positivas opiniões sobre sua natureza ou personalidade.

Mas, maldição, aquela era sua esposa. Passaria o resto de sua vida ao lado de uma mulher que o odiava. Que nunca poderia se quer respeitá-lo, que era a esperança que intimamente nutria, e o que garantira a ela que faria.

Fazia anos que não se embriagava. Parecia coisa de jovens, nem um pouco atraente para um homem de quase trinta anos. Além disso, mesmo que decidisse buscar amnésia temporária numa garrafa, ela não viria rápido o suficiente para afastar aquela péssima percepção. Isto demonstrava muita sensatez de sua parte, embora não explicasse de modo algum porque, ao sair de seu escritório, ele não rumou para o andar de cima e sim para a saída da casa.

Um lacaio ligeiramente surpreso abriu as portas para ele, e Aiden ordenou, praticamente entredentes, que seu chofer fosse chamado. Durante cada minuto passado, ele sentiu-se cada vez mais envergonhado. Cada vez mais incomodado. Cada vez mais arrependido. Mas subiu na carruagem num pulo, sem pensar duas vezes antes de fazê-lo. O que só o fez sentir-se pior ainda.

Poderia ter sido invadido por algum raio de racionalismo que o teria feito dar a volta e retornar ao seu lar, ao quarto de sua esposa. Mas, em vez disso, ele prosseguiu incansavelmente até o leste da cidade, e não parou até que teve um vislumbre do escritório onde Levi Holroyd trabalhava e vivia.

Levi se tornara, ao mesmo tempo, um amigo e uma figura fraterna. Aiden confiava em todos seus companheiros de maneira igual. Mas Levi, que fora quem abrira sua casa e dispusera de seu tempo para curar a Aiden assim como aos outros, tinha algo de diferente. Aiden sabia que suas palavras sempre seriam certeiras. Levi sempre sabia o que dizer ou, quando fosse necessário, sabia quando não dizer nada. Era um instinto natural correr a ele quando sentia-se atônito e perdido, como o buscava quando, durante sua recuperação, sentia-se estar afundando inexoravelmente. Sem escapatória. Sem chance de sobrevivência.

Por algum milagre, ele estava em casa. E não tinha planos para sair. Aiden o encontrou sentado perto da lareira em seu escritório, com um livro na mão e uma xícara de café ao seu alcance. Quando o viu, fechou o livro com um sorriso acolhedor e, naquele momento, Aiden notou que talvez tivesse sido egoísta de sua parte surgir daquele modo. Talvez o amigo quisesse simplesmente passar uma noite calma sozinho.

— Aiden. — ele saudou-o, levantando-se. Então indagou, em tom brincalhão: — Quanto tempo, não? Vamos, se sente. Vou te servir algo para beber. Você parece estar precisando.

O duque murmurou um agradecimento que mais pareceu-se com um grunhido. De repente, sentar-se na outra cadeira disponível fez com que se sentisse ainda mais constrangido por sua presença. Os dois sabiam que ele não deveria estar ali. Os dois sabiam onde ele deveria estar. Mas Levi, diferente dele, não parecia julgá-lo por tal. Agia com naturalidade, como se aquela fosse somente mais uma visita ocasional que lhe era feita.

Trocaram algumas amenidades enquanto o médico enchia um copo com conhaque e colocava em cima da mesa, então calaram-se quando ele sentou-se à sua frente, ligeiramente voltado para o fogo que ardia e crepitava ao lado de ambos. Levi não disse nada. Bebeu seu café e se recostou, cruzando as pernas e observando a dança das chamas ao consumirem a lenha. Quando seus olhos pousaram em Aiden, o fitaram sem deixa-lo desconfortável. Era um talento seu: aquela pose, aquele silêncio, aquela atenção.

Estava somente à espera. Era convidativo. Não ameaçava nem julgava. Apenas esperava.

Aiden pousou a sua taça na mesa, após consumir seu conteúdo quase inteiro. Então descansou os cotovelos nos braços da poltrona e uniu as pontas dos dedos sob o queixo:

— Ela me odeia, Levi. — anunciou, preferindo encarar à lareira a seu amigo. Não deu maiores explicações. Ele sabia de quem falava.

— Como pode odiá-lo, se mal o conhece? — o médico retrucou, calmamente.

Aiden balançou a cabeça.

— Ela sabe. Que eu não sou capaz de fazer nenhuma potencial esposa feliz. Posso dar a ela a segurança de meu nome, da minha riqueza, do meu futuro. Posso me deitar com ela e engravidá-la. Mas isso é tudo. E não é o suficiente.

— A maioria das mulheres acharia estar no paraíso tendo essas coisas. — Levi ressaltou, com delicadeza.

— Não estariam.

— Não. — o médico concordou, em voz baixa, após um minuto ou dois de silêncio. — Não estariam.

Finalmente o duque buscou os olhos do companheiro. Até Levi concordava que um casamento desprovido de sentimentos, até mesmo de afeto, seria o inferno na terra. Não havia escapatória.

— Ainda há algo que pode fazer. — ele murmurou, como se pudesse ler sua mente e quisesse propositalmente ir de encontro ao que se passava nela.

— Casei-me com ela, Levi. — Aiden rebateu, com firmeza. — E ao fazer isso destruí os sonhos que talvez tivesse e arruinei sua vida, ou a vida que ela talvez desejasse ter. Não há nada que eu possa fazer para mudar isso.

— Não pode mudar isto, mas pode tentar reter os danos.

A próxima pergunta do mais novo veio numa exclamação enraivecida:

Como?! Por Deus, como isso seria possível, homem?

O médico não deixou-se abalar por sua quebra de postura. Aiden sabia, por experiência própria, que não adiantava discutir com Levi. Quanto mais aborrecido se ficava, mais controlado e contido o homem permanecia. Como o esperado, sua expressão manteve-se plácida e seu tom de voz soou calmo quando disse:

— Tente conhece-la. E permita que ela o conheça. — o duque estava prestes a interrompê-lo novamente, mas a mão que ele levantou o impediu de fazê-lo. — Pode nunca amá-la apaixonadamente. Mas não precisa desprezá-la, e ela não precisa desprezá-lo. Como você mesmo disse, para o bem ou para o mal, estão casados, e provavelmente passarão o resto de suas vidas ligados. Dividirão não só o título e o dinheiro, como a obrigação de estarem lado a lado em ao menos uma ou outra ocasião, além da educação dos filhos que terão. E isto não precisa necessariamente ser desagradável.

Aiden permaneceu somente encarando-o durante todo o monólogo que tecia. Levi deu um gole no café, então deixou a xícara de lado e estendeu o braço em sua direção, agarrando seu ombro direito num aperto leve. Somente o suficiente para garantir que teria toda sua atenção.

— Pode nunca amá-la. Mas o fato de sentir remorso pela situação a qual ambos se sujeitaram demonstra que você se importa. Escutou-me bem? Você se importa. Só não compreendeu ou aceitou isso plenamente. Ainda não. Mas este é o primeiro passo para não desistir antes mesmo de tentar.

Aiden o contemplou, agora não mais ressentido por ser contrariado. Somente melancólico.

— Eu deveria odiá-lo. — declarou.

Levi ergueu as sobrancelhas.

— Por não me permitir afundar em minha própria autopiedade. Nem hoje, nem antes. — continuou o duque. — Por me manter são.

Aquele não era um assunto que costumava entrar em pauta entre ambos; a natureza dos sentimentos de Aiden e o modo como quase o tinham levado à completa loucura, fazendo-o desejar simplesmente abrir mão e desistir, cada vez mais afogando-se no poço de seus próprios erros e lamúrias. E a forma como Levi fora capaz de convencê-lo que não poderia permitir que isto ocorresse.

— E você me odeia? — indagou seu amigo.

Aiden não respondeu-o. Apenas colocou-se de pé, permanecendo parado ao lado da lareira, voltando a encarar o fogo.

O médico, por sua vez, continuou em silêncio novamente. Somente olhando-o. Até que balançou a cabeça.

— O impetuoso e bem-sucedido Major Comandante Aiden Gillingham, que nunca fugiu de um campo de batalha, acabou de fugir da cama de sua esposa. — ele deu um assobio. — Bem, isto é algo que Griffith adoraria saber. Mas não direi a ele, não se preocupe.

— Vá para o inferno. Você e o aleijado.

Levi sorriu. Então murmurou, olhando-o fixamente:

— Você não destruiu minha vida ou meus sonhos. Sabe disso, não é? Nem os de William ou os de Griffith.

O duque balançou a cabeça.

— Eu não casei com você. Nem com eles.

— Eu teria recusado, mesmo que tivesse feito o pedido. — o mais velho disse. Então começou a rir.

E Aiden sorriu junto. Embora esta fosse a última coisa que desejasse fazer naquele momento.


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