Troca Justa escrita por Th Roberta


Capítulo 1
Troca Justa




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A noite caía, e já era possível ver a movimentação no centro da cidadela. Feirantes abriram suas barracas mais cedo apenas para lucrar com as vendas: aquela noite prometia ser diferente.

É verdade que os deuses planejam o melhor para seus filhos terrestres. De onde quer que estivessem, fosse nos céus, fosse nos templos, eles estavam atentos para a festa do povo. Realmente, a noite seria diferente: nunca antes houve uma festa tão grande como aquela, com a participação da família real tão próximo ao povo. Bandolins e flautas tocavam canções populares, e o público dançava de acordo com o que sabia, e se não soubesse, inventava: sua alteza apreciava vê-los improvisar.

A moça, na idade própria para o casamento, sentava-se junto aos pais no palanque. Seus trajes, embora feitos com os melhores tecidos, se assemelhavam aos de seu povo em molde e cores. Queria estar perto deles, ouvi-los, pois, para ela, seu reino só cresceria se fosse forte, e a fortaleza provinha da união de todos. Aquela verdade palpitava em seu peito e se fortalecia cada vez que recebia uma confirmação dos mestres do templo.

Ao seu lado, seu noivo aparentava estar mais quieto que de costume. Notava que seus olhos, por diversas vezes, estavam distantes, e suas expressões eram mínimas, mesmo diante da peça apresentada pelo pequeno grupo de teatro, que animara a todos os presentes. Diferente dela, seu quimono possuía coloração escura com detalhes dourados, tradição do vestuário de seu reino.

Naquela noite, celebravam o noivado dos dois jovens, que uniriam laços para fortalecer seus respectivos reinos, dar prosperidade ao povo e orgulho aos pais. Suas crenças possuíam divergências, mas sabiam conversar e encontrar um ponto de equilíbrio.

Se levantando, ele ergueu uma taça, brindando à noiva e aos sogros, bem como ao povo, que seria seu. E, erguendo-a para o leste, fez uma reverência com a cabeça, simbolizando a honra e obediência que devia aos pais, que não estavam ali presentes. Tomaram da bebida, e o povo bateu palmas, recomeçando a música e a festança. Ainda de pé, entregou a taça a um criado e pediu licença para os sogros. A moça o observou descer os degraus.

Em verdade, quando se afastou do centro da cidade e entrou na mata, suspirou, angustiado.

— Está tudo pronto?

O homem, escondido entre as folhas, indagou ao reconhecê-lo.

— Sim.

— Ótimo.

Ouviu algumas folhas se mexerem, os passos indicavam seu afastamento.

— Seus pais ficarão orgulhosos, alteza, e seu poder será reconhecido entre todos os povos.

Ele não respondeu: enfrentava um julgamento interno. A mente lhe acusava, e tinha como forte testemunha seu plano elaborado horas antes, no castelo, ao lado do pai; seu coração o condenava, apresentando-lhe suas boas recordações e emoções vividas naquele reino. Como decidir? O juiz saberia, facilmente, distinguir o certo do errado. No entanto, ele era manipulado, e o resultado poderia não ser o esperado pela justiça.

Um pensamento lhe veio à mente: e se fugisse? E se desistisse? Balançou a cabeça: Independente de tudo, de que adiantava fugir, àquela altura? Não havia saída, e sua postura apenas mancharia sua imagem e a de sua família no futuro. O pior dos males já estava feito, e nada mais poderia evitá-lo.

Voltou para a cidade, o olhar vago. Era visível que algo o incomodava. Sentando-se ao lado da noiva, sentiu sua mão afagar-lhe o braço. Fitando-a, pôde ver aquele sorriso quase imperceptível, e se permitiu admirar aquela expressão serena que lhe era mostrada: não a veria novamente. Colocou a mão sobre a dela, lançando-lhe um olhar preocupado. Mesmo que tivesse que fingir até o último minuto, não conseguia conter o sentimento que crescia dentro de si.

Ela se mexeu na cadeira para se aproximar dele.

— Sei que a ideia do casamento te assusta... Mas vai dar certo. - Ela falou baixinho para que apenas ele a ouvisse. - Sempre damos um jeito.

A expressão de desgosto em seu rosto se intensificou, e não conseguiu dizer nada ao abrir os lábios. Desviou seus olhos dos dela, respirando de forma errática enquanto balançava a cabeça para os lados.

A moça inicou uma frase, mas foi interrompida ao ouvir o som dos corvos no céu, o som que menos desejava ouvir em sua vida. Olhando para a entrada da cidade, viu alguns homens invadirem o local e matarem seus súditos. Ateavam fogo em algumas barracas e casas próximas; o desespero se instaurou.

Guardas apareceram correndo para retirar a família real do local em segurança. De mãos dadas, os dois desceram do palanque, correndo atrás dos reis, que iam na frente, em uma rua pouco movimentada. No meio do caminho, ele soltou sua mão.

Ela parou e se virou para trás.

— Vamos, precisamos fugir... - Ela começou. Sua voz tremia. - Não podemos ficar...

Puxou-o pelo braço, mas ele se desvencilhou de seu toque. Ela não entendeu seu gesto, mas ao vê-lo empunhar a espada e apontar para si, entendeu tudo.

— Então era isso... - Ela disse, os olhos marejados. - É um deles. - Concluiu sua observação.

Ele não respondeu. Sua mão alternava a força com que segurava a arma, como que decidindo o que fazer. Dentro de si, sua mente e seu coração brigavam; cabia a ele terminar aquilo, escolhendo seu destino.

— Por quê?

Ouviu-a questionar e, por um segundo, se arrependeu de ter se submetido às graças do pai. Poucas vezes a vira com raiva, e outras menos, entristecida; ver a expressão traída em seu rosto, seu olhar acusador fez o rapaz estremecer. Dentro de si, pôde ouvir o coração dizer: "culpado!".

— Me diz por quê! - Ela indagou ainda mais alto.

Sabia o motivo, mas revelaria a ela? Como explicar que se deixou levar pela ambição? Como explicar que tudo fora um plano? No entanto, seu plano falhava a partir do momento em que ela entrava em cena: não esperava se apaixonar, e isso o levou àquela indecisão. Jamais questionara seus pais, jamais hesitou em um plano; porém, ela o fazia questionar a si, aos pais e aos deuses. Ela o fazia hesitar, e tudo o que tinha que fazer era um simples movimento com a espada para acabar com aquilo. "Inocente!", seu cérebro gritou.

Um servo que ficou para trás viu a jovem moça em perigo e chamou por ajuda. Um guarda correu até ela, puxando-a para trás para enfrentar o rapaz, que agradeceu por ter um pouco mais de tempo. O servo aproveitou o momento para pegar uma espada também, ficando ao lado da moça para protegê-la se fosse necessário.

Suas espadas se chocaram no ar. Com um chute em seu peito, afastou o guarda, e com um gesto horizontal, cortou seu pescoço. Olhou para o servo com uma expressão amedrontadora, e ele correu, deixando a espada e a princesa para trás. Ela pegou a arma e a apontou para o noivo.

— Eu sei que isso pode ser difícil de acreditar, mas eu estou do seu lado. - Ele disse de forma séria, a espada abaixada ao lado do corpo. No tribunal de sua alma, o martelo bateu.

Ela riu.

— Claro que está. Depois de trair nossa confiança, depois de trazer seus guardas aqui, depois de matar o meu povo... - Ela ironizou, as lágrimas caindo de seus olhos como gostas de chuva em dia tempestuoso.

— Não vale a pena lutar. - Ele falou, afrouxando o contato com o punhal.

— É o que farei, nem que eu morra no processo. - Ela disse com a voz firme.

Pôde ver a decisão em seus olhos. Tinham crenças divergentes, mas sempre encontravam um ponto de equilíbrio. Quem cederia? Qual seria o ponto de equilíbrio daquela situação?

Se posicionaram, e ela foi a primeira a atacar. Ele se defendeu com facilidade; se ele dominava as técnicas da esgrima, ela tinha força de vontade de sobra para enfrentá-lo. Moveu a espada novamente, em dois gestos consecutivos que formaram um "X" no ar e deveriam tê-lo acertado, mas ele se defendeu. Ela girou para o lado ao ver a arma passar ao seu lado, verticalmente, mas não conseguiu prever que o rapaz aproveitaria para acertar-lhe um chute na perna. Se desestabilizou e recuou, encontrando a ponta da arma em seu pescoço. Olhou para ele com fúria.

— Eu disse que não valia a pena. - Ele comentou, rodando a espada na mão, fazendo a lâmina girar sob o pescoço da jovem noiva. Dentro de si, o juiz concluiu o julgamento: "culpado!".

— Por que fez isso? - Ela questionou, a espada abaixada.

— Não precisas saber. - Foi sua resposta, após um momento de silêncio.

Ele continuava girando a arma, e puderam ouvir o som da destruição e da morte atrás deles. Ela viu o vilarejo em chamas, alguns corpos na rua.

— Pensei que tivesse desistido, alteza. - Ouviram um homem dizer, se aproximando do rapaz. Junto dele, outros vinham atrás, segurando seus punhais manchados com sangue.

Ele não demonstrou expressão alguma.

— Vão atrás dos outros. - Ele ordenou, indicando com a cabeça a direção a seguirem. - Eu termino com ela. - Finalizou a frase, vendo-a enraivecer.

A dor da traição estava estampada em seu rosto, mas o que mais lhe machucava: ver o povo morrer ou saber que o inimigo era o próprio noivo?

Ela percebeu que ele ainda girava a espada. Respirou fundo.

— E eu achando que você estava ansioso pelo casamento. - Ela satirizou.

— Nunca me importei com isso. - Ele falou, observando-a com certa ansiedade.

— E a união dos reinos?

— Só um reino irá prosperar. E será o meu.

Ela se sentiu cada vez mais irritada com suas respostas. Por que estava sendo tão arrogante?

— Jamais pensei no seu reino, no seu povo medíocre ou na sua família "tradicional".

— Nem mesmo me amou? - Ela indagou, segurando a espada na mão com mais força.

— Nunca te amei.

Ela arfou.

— Mas foi bom brincar com você.

Ele exibiu um sorriso malicioso, e aquela foi a gota d'água para ela: no instante em que a lâmina sob o seu pescoço girou de forma que não apresentasse perigo para o que planejava fazer, usou o lado externo do braço para empurrá-la para o lado em um gesto rápido e, com a outra mão, moveu sua espada para frente, atingindo o rapaz no abdômen. Sua raiva era tanta que a lâmina atravessara seu corpo.

Ele sorriu e largou a arma no chão, se ajoelhando em frente a ela.

— Finalmente.

Grunhiu ao sentir a lâmina ser retirada dele, e caiu de lado no chão. A moça soltou a arma e olhou para as próprias mãos.

— Te irritar... é difícil. - Ele proferiu com dificuldade, sentindo o gosto metálico na boca. - Pensei que nunca... faria isso. - Ele confessou, se engasgando com o próprio sangue.

Sempre encontravam um ponto de equilíbrio, e, dessa vez, ele cedeu. Em seu tribunal interno, podia ouvir sua sentença: a morte. Ela veio rápido, e recebê-la tendo como última lembrança a sua noiva era quase como um presente, um alívio para a dor do fim.

Compreendendo o que ele fizera, ela se jogou ao seu lado, segurando seu rosto.

— Por que fez isso? Por quê?! - Gritou, chorando.

Ele segurou seu pulso, seu toque oscilava, e sabia que estava morrendo.

— Te amei... Eu te amei... - Ele disse, tossindo, o ar começava a faltar.

Ela balançou a cabeça e encostou a testa na dele.

— Agora é tarde... - Foi o que conseguiu dizer entre os soluços.

Ele abriu a boca para falar, mas não conseguiu dizer mais nada. Fechou os olhos, sentindo as lágrimas da jovem moça molharem o seu rosto. "Estou do seu lado", e o lado que escolhera fora o dela, o lado da morte. Não se preocupava com a má fama que seu reino e sua família ganhariam após o seu fracasso. Só não podia deixar que ela morresse sozinha, pensando que fora totalmente enganada. Ele a amou e, no fim, o ponto de equilíbrio consistia em estarem juntos. E estariam juntos mais uma vez. Agora, diante da morte.

Ela chorava compulsivamente quando ele perdeu a consciência. Não saberia, mas ele se sentiu aliviado por morrer em seus braços. Afinal, traíra sua confiança; pensou ser justo que morresse por suas mãos. Talvez, fosse uma "troca" justa.

Ele não sentiu o último beijo que ela lhe dera, e nem vira o seu desespero ao perceber que estava morto. Também não a viu partir.

Aquela noite era diferente, e os deuses olhavam para aquela pequena cidade com compaixão: por más interpretações dos mestres, e pela maldade no coração dos homens, a cidadela caía, sendo aquele pedaço de terra anexado ao mapa do reino que o dominou. Os corvos voaram pela cidade cantando o canto da vitória. Ninguém sobrou para contar a história; apenas os deuses viram, e fecharam os olhos após a última pessoa cair.


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