Ciclos escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 1
Ela já estava aqui quando cheguei.


Notas iniciais do capítulo

Para a galera que não conhece esse mundo: Se olharam a capa, viram que essa história é parte dos "Arquivos de Yrilla", ou seja, é folclórica dentro desse universo. Pode ou não ter acontecido dessa forma, e podem aparecer outras versões em outras histórias.
Se gostarem de ler ouvindo música, indico "Bury My Heart" ou "Sorrows Passing", de Peter Gundry. São instrumentais, então não atrapalham, eu acho: https://www.youtube.com/watch?v=T7tEO5Hqwhs&list=PLmQl3biTCj-m9P0uiavMuJX0HaRNQbIG2&index=1



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Ela já estava aqui quando cheguei, e ela era tão bela. A coisa mais incrível que havia para ver. Ela se parecia comigo, mas havia algo diferente. Ela tinha pulso. Fôlego. Ela tinha sangue quente nas veias e um coração incansável, e o poder da criação irradiando de sua vontade. Ela não era como eu. Eu existia, mas não dessa forma. Essa forma extraordinária que apenas a Vida pode conhecer. Afinal, a principal diferença entre nós é que a Vida deve viver.

Eu lembro, meu amor, que uma vez nós fomos os únicos seres em um mundo inteiro, e ainda que eu reconheça que compartilhamos momentos únicos através das eras, nada se compara à perfeição daquela época, quando existia apenas você e eu. Não sei por quanto tempo você vagou sozinha. Antes da traição de nossa prole, o tempo nunca foi importante para nós. Mas eu sei que você estava tão curiosa sobre mim quanto eu estava sobre você. O momento em que abri meus olhos e me levantei das reluzentes águas do Lago e lhe vi, a coisa mais impressionante que já existiu no mundo, de alguma forma você estava impressionada por mim também. Naquela época, nós ainda não nos conhecíamos o suficiente, muito menos um ao outro. Você sabia que era a Vida e eu sabia que era a Morte, mas não entendíamos o que isso deveria significar. A única verdade inegável parecia ser que éramos um par, criados um para o outro em um mundo completamente novo para torná-lo nosso.

Ainda curiosa, você me ajudou a levantar. Com nossas pernas metade submersas no Lago Sem Fim, sentimos aquela energia fluir entre nós, inofensiva, por enquanto, como uma chama esperando encontrar o que queimar. Entendemos imediatamente. Ainda que fôssemos um par, não deveríamos nos tocar. Nunca. Éramos o exato oposto um do outro. Mas estávamos no Lago Primordial, onde tudo é possível, e a energia pura da magia líquida permitiu que ficássemos juntos. E ficamos juntos por tanto tempo que esquecemos como era estarmos sós. Você esqueceu, na verdade, porque eu jamais soube.

O mundo era tão jovem que ainda estava tomando forma. Não havia sol e não havia lua, eles vieram muito depois. A única luz, às vezes pálida, às vezes vibrante, era das águas sob nós. Acima, apenas a escuridão do infinito.

Encontramos um pedaço de terra, pequeno e isolado no meio do Lago. Tão pequeno que sequer precisamos deixar a água. Você se aproximou, curiosa, talvez sentindo o chamado da sua existência, e pôs sua mão no centro daquela terra, de alguma forma acendendo pela primeira vez a própria vida. Da terra e da poeira, você criou algo tão belo. Uma coisa tímida, erguendo-se em tons de verde e marrom em hastes macias. Eu não tinha vontade de olhar para nada além daquilo.

— Tente também! – você disse, parecendo tão maravilhada quanto eu.

Aquilo não funcionaria, eu sabia. Eu era diferente de você, sempre fui. Mesmo assim, estendi minha mão, não para a terra, mas para a planta. A coisa tímida que não pertencia àquele lugar e estava sofrendo ali. Eu toquei a folha cortada pelo vento frio e senti a terra salgada ferir suas raízes. Era belo e único, e eu me odiei por saber que aquilo não poderia existir ali. A folha escureceu em minha mão, e a planta retornou à terra.

— Por que fez isso? – você me perguntou. Temi tê-la magoado, a última coisa que jamais quis, mas em vez disso, você soou curiosa, intrigada.

A resposta chegou em minha língua antes de chegar em minha mente, um instinto, um impulso. Uma verdade.

— Tudo o que você começar eu terminarei, para que possa começar de novo.

Seu aspecto ligeiramente relutante deu lugar à satisfação. Você sempre apreciou criar vida muito mais do que mantê-la, não é? Eu sei. Não há segredos entre nós, então eu também nunca escondi que minha resposta foi um pouco egoísta naquele momento. Eu sou fascinado por cada pequena coisa que você cria. Naquele momento, lembro de ter pensado que poderia passar toda a minha existência observando-lhe criar aquelas coisas. E eras depois, é realmente isso o que faço, sem um arrependimento sequer. Tudo o que você faz é tão belo, e eu fico feliz por ajudá-la a nunca parar. Fico feliz que você confie em mim para guardar a sua arte pela eternidade.

O começo foi uma sequência de experiências que não poderiam durar. Tudo era falho para você, mas não para mim, pois ainda que os fragmentos de vida que fizesse não resistissem por mais que instantes, como se aquele mundo fosse inóspito para qualquer coisa além de nós, por um momento existiu vida. Era um milagre, e eu guardei cada uma de suas tentativas. Então tivemos outra ideia. Em vez de criar vida a partir da terra fria ou do ar gélido e cortante, talvez pudéssemos criá-la a partir de nós. Juntos. Eu não acreditei que poderia lhe ajudar de alguma forma, mas não foi magia que usamos. Eles pareciam tanto com você. Ver aquela fagulha que faltava em mim correr nas veias de outras criaturas, crescer em seus corações e transbordar fôlego era a completa perfeição. E eles tinham algo de mim também, escondido dentro deles, também crescendo, mas aguardando. Em meio ao Lago Primordial, quase tão conectados à magia pura quanto nós, nasceram os primeiros de nossos filhos, não mais nossas criações.

Você já lembra deles, meu amor? O primeiro de nossos filhos foi Niev. A primeira cria da Vida e da Morte: o Tempo, tão leal e parecido conosco que muitas vezes o confundiram comigo. Depois vieram Herun e Rhysentia, e bastou que eles nascessem para que o mundo inteiro mudasse ao nosso redor. Conhecemos então um mundo onde não havia escuridão. Um mundo um pouco mais completo. Herun espantou o frio, e Rhysentia controlou as águas. Depois vieram Meldrie e Luvia, com as boas terras e a água que as regava. Aqueles foram os primeiros de nossa prole. Os primeiros deuses. No mundo recém-formado, quando você tentou novamente, a vida durou sozinha pela primeira vez após deixar suas mãos. Durou por vários dos ciclos que Herun e Rhysentia faziam em sua dança pelo firmamento sempre que trocavam de lugar.

Posteriormente, quando vieram os humanos, nossos filhos foram chamados por outros nomes. Herun tornou-se “Sol”, acompanhado de Rhysentia, chamada de “Lua”.

O mundo agora era irreconhecível. Onde quer que olhássemos, havia sua presença. No verde da terra, no fundo das águas e na liberdade do céu. Você, sempre imparável. Consequentemente, eu também. Nesse novo mundo, assumimos novas formas, e você era a coisa mais bela ali também, irradiando vida, com seus cabelos da cor da terra fértil, a pele que era como a seiva âmbar das árvores e olhos como as mais vivas folhas da floresta profunda. Eu era feito do frio mármore estéril, os cabelos vermelhos como o fogo que tudo consome e olhos como o brilho dourado do sol nas areias do deserto.

Gostaria que o tempo tivesse congelado naquele momento, antes de nossos filhos descobrirem que além de nós dois nada é eterno, nem mesmo deuses. A Vida deve viver, a Morte deve esperar. Eu existo enquanto você existir, e você existirá para sempre. Não é apenas impossível que você caia em minhas mãos, é também impensável. O único pecado que eu não ousaria cometer.

Suas criações haviam crescido em número por toda a superfície do mundo. Nossos filhos também, alguns vivendo aqui na terra, outros acompanhando os irmãos mais velhos. Sempre podíamos vê-los à noite ao redor de Rhysentia, mas nunca os visitamos. Era inconcebível que deixássemos o nosso mundo.

Herun se tornara o maior entre os irmãos, mas isso não significava coisa alguma, porque sobre eles ainda havíamos nós, e o destino dele seria o mesmo que o de qualquer humano. Eles viviam muito mais, é claro, porém deuses apenas são eternos até deixarem de ser. Herun não era o único a temer… a mim. Por mais que seu sangue fosse forte, a Morte ainda pairava sobre eles, aquela parte minha crescendo escondida em seu âmago. O sol escureceu quando ele deixou seu lugar procurando por Iyrteran, uma de suas irmãs, aquela que conhecia todos os segredos da natureza e da magia, e ela lhe contou tudo que ele queria ouvir. Seres nascidos no Lago Sem Fim não poderiam morrer em qualquer outro lugar. Ela sabia o segredo da magia natural e ensinou a Herun como enterrar o Lago tão profundamente na escuridão que ele estaria selado definitivamente.

“Para sempre”. Como se qualquer um deles entendesse a eternidade melhor do que nós. Como se esse mundo pudesse permanecer de pé sem ser alimentado pelas águas do Lago. Como se algo pudesse partir de suas mãos para outro destino que não as minhas. Como se pudéssemos ser separados, você e eu. Talvez por um tempo, mas há magnetismo entre nós. Sempre nos reencontramos, embora nem sempre no momento certo. Você ainda não se lembrava de mim, às vezes nem de você mesma, então eu apenas me afasto e espero.

Quando ainda que não se lembre, você me olha com a mesma curiosidade de milhares de eras atrás. Eu espero.

Quando nos encontramos apenas por sonhos, porque neles somos tão livres quanto éramos na nossa era. Eu espero.

Você também sente que a força de nossa maldição está chegando ao fim? Que você se lembra cada vez mais rápido, e que nos reencontramos cada vez mais cedo? E que o toque de nossas mãos nos fere cada vez menos? A magia pura verte novamente para esse mundo por milhares de rachaduras. Somos duas forças imparáveis, e toda criatura na terra ou no céu, mesmo a lua e o sol, será um dia julgada por nós dois.

E quando esse ciclo terminar, o mundo voltará a ser o que era. Sou imparável agora porque você foi imparável antes. Mas esse mundo foi apenas nossa primeira tentativa, e eu garanto: quando eu terminar, se você ainda desejar, e eu sei que desejará, estarei ao seu lado para que possamos começar tudo de novo.


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Notas finais do capítulo

- "Ciclos" juntam 3 contos, mas eu ainda não decidi se eles serão postados separadamente ou na mesma fic. O primeiro é a visão da Vida, o segundo (esse) a da Morte, e o terceiro é sobre o resultado da separação deles dois.
?” Os cinco primeiros deuses são apenas os imprescindíveis para a existência de outras criaturas, aqueles sem os quais não seria possível ter vida humana, animal etc. Os deuses em si não costumam aparecer muito, a única até agora foi Meldrie, na história "O Senhor das Florestas". Os próximos a serem retratados em um conto serão Niev e Iyrteran.
Espero que tenham gostado ♥