Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 4
Capítulo IV




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Embora Marcos tenha decidido esperar um dia ou dois antes de fazer qualquer coisa, não consegue parar de abrir o contato dela no Whatsapp e fantasiar mensagens trocadas que ficam só na sua imaginação. Então na noite daquele mesmo dia acaba atirando o livro – Valsa brasileira: do boom ao caos econômico — para um canto da cama e abrindo o aplicativo no celular. Antes que possa arrepender-se, envia um “oi” para Ana e aguarda numa prostração resignada.

Ela, porém, responde logo.

— Achei que tinha desistido.

Ele cogita a ideia de que ela tenha se angustiado com a demora e sentido saudades, mas sabe que jamais será patife o suficiente para formular a pergunta. A mera possibilidade, contudo, o faz sorrir.

— Por que eu teria desistido?

— Tu sabe que eu às vezes penso coisas que não fazem sentido.

— Compreensível.

— Espero que esteja sendo irônico.

Durante a pausa que se segue, Marcos recosta-se melhor na cabeceira da cama e quase pode imaginá-la sorrindo. Quer saber o que ela está fazendo – se está aninhada no sofá, debruçada em uma janela, de pé na cozinha, mordiscando qualquer coisa, ou, assim como ele, já na cama –, o que está vestindo e o que está sentindo. Quer estar junto dela, respirando o mesmo ar e dividindo o mesmo espaço.

— O que vai fazer amanhã? – ele pergunta.

— Como assim? O dia todo?

— Ok, vou tentar de outro jeito: quer ir ao Subway amanhã?

— Quero. – a resposta vem quase imediatamente.

— Que horas te busco?

Ana começa a digitar algo, mas então parece apagar o que estava dizendo. Ele apenas observa e aguarda, apreensivo, imaginando se aquilo significa que ela está indecisa quanto ao horário ou inventando alguma desculpa para não ir ao encontro porque, de repente, mudou de ideia. Porém, ela responde apenas que às 19hs está bom e Marcos, percebendo que a conversa termina ali, despede-se com um boa noite.

Ele demora a pegar no sono. Sua mente está tão cheia – de Ana, de seus olhos, de seu sorriso, da brancura de sua pele, do som de sua voz, de todas as coisas que ele quer viver ao lado daquela mulher – que, no escuro do quarto, Marcos perde a noção de onde realmente está. Deixa-se levar pelo turbilhão de pensamentos até que, muito tempo depois, o cansaço vence e o arrasta suavemente para sonhos dos quais ele não se lembrará no dia seguinte.

***

O domingo rasteja lentamente e, no meio da tarde, Marcos já tem vontade de esmagá-lo como um inseto. Sente que o tempo não passa, que os minutos permanecem estagnados no visor do relógio de pulso e que nada é capaz de distraí-lo da lembrança de que, em algumas horas terrivelmente longas, estará com Ana outra vez. Pensa que é curioso – de um modo ruim – como o tempo torna-se um inimigo que avança a passo de tartaruga quando tudo o que se deseja é que ele voe o mais rápido possível.

Há uma planilha de recebimentos que ele poderia conferir, a fim de adiantar o trabalho da segunda-feira, mas compreende que é impossível porque não consegue concentrar-se nos números. Tenta também assistir a alguma série ou filme, porém, acaba vasculhando todo o catálogo da Netflix sem decidir-se por nada. Ler seria impraticável. Começa então a limpar o apartamento, colocando a roupa suja para lavar e varrendo todos os cômodos, mas é tomado por uma aversão que não sabe de onde veio e joga a escova de volta no balde com um palavrão quando percebe que esteve esfregando a pia do banheiro com tanta força ao ponto de machucar as pontas dos dedos. A única coisa que realmente resolve, por um tempo, a angústia da espera, é a corrida da manhã.

Marcos se dá conta de que sua paciência, que, até então, ele havia julgado ser excelente, não serve de nada naquela situação. Novamente, é assolado pela consciência de que a experiência de se relacionar com Ana extrapola todos os seus parâmetros e limites conhecidos. Ainda não entende, em termos racionais, por que se sente embevecido pela existência dela – até mesmo medíocre e estúpido em alguns momentos –, por que ela é diferente de qualquer outra mulher, e pressupõe que talvez o motivo seja justamente aquele. Talvez a adore sobretudo porque não a compreenda.

***

Um pouco depois das 18hs, Marcos entra debaixo do chuveiro e deixa o corpo relaxar num suspiro, porque lhe parece que a água quente, ao mesmo tempo em que lava o suor da pele, lava também a ansiedade impregnada nele feito uma moléstia. Quando para diante do guarda-roupas para decidir o que vestir, já se sente melhor. Dentre as parcas opções que não configuram roupa de trabalho e roupa esportiva, escolhe um jeans comum, uma camiseta branca lisa e uma camisa de flanela escura que veste por cima. Ajusta o relógio ao pulso e fecha os botões das mangas. Por fim, calça os tênis e, em frente ao espelho do quarto, confere se está tudo certo.

Ao descer para pegar o carro, ele olha novamente para a bagunça do interior do veículo e joga toda aquela porcaria na lixeira da garagem do prédio. Marcos considera, analisando ao redor enquanto acomoda-se ao volante, que agora o carro parece muito mais decente. Já está escuro lá fora quando ele passa pelo portão eletrônico da garagem, os faróis dianteiros iluminando as sombras que se amontoam em silêncios solitários, e toma o rumo da casa de Ana.

Ele a encontra esperando na calçada diante do prédio. Ana veste uma blusa de meia manga de um tom terroso sobre um jeans de cintura alta e parece encantadora em sua simplicidade. Marcos pensa que até mesmo o decrépito coqueiro apresenta-se mais vistoso ao seu lado. Ela sorri quando ele estaciona junto ao meio-fio e entra no carro. O primeiro olhar trocado assim de perto carrega certo embaraço, um ar um tanto afetado, então Ana desvia a atenção para o cinto de segurança, que começa a puxar sobre o peito, e Marcos retoma a direção.

— Tu prefere o Subway do shopping ou o que fica perto da praça? – ele quer saber.

— O da praça. Parece que no shopping a gente se sente meio velho porque tem sempre tanto adolescente lá.

— Meio velho? – ele ri, e faz uma pergunta cuja resposta finge não saber. – Que idade tu tem, afinal?

— Vinte e seis.

— Praticamente uma senhora.

— Exatamente.

Marcos reduz e para quando o sinal fica vermelho no cruzamento. Observa as mãos dela cruzadas sobre a bolsa que traz ao colo, os dedos delicados de unhas não pintadas, as luzes da rua incidindo contra sua pele em tons quentes que logo desaparecem. Ele tem vontade de tirar a própria mão do câmbio onde espera para engatar a primeira marcha logo que o sinal abra outra vez e colocá-la sobre as de Ana. Mas não o faz, naturalmente, e quando o semáforo muda para verde, ele segue dirigindo.

— Mas confesso que também prefiro evitar lugares com grande concentração de crianças.

— Também se sente meio velho? – ela sorri.

— Sinto que não aguento ouvi-las falar aos gritos e todas ao mesmo tempo.

Ana assente, achando graça. Então se torna pensativa, os olhos passeando distraidamente pelo cenário lá fora, Marcos repara ao espiar o trânsito pelo retrovisor interno e encontrar o rosto dela refletido ali.

— Dizem que a gente detesta mesmo crianças até ter as nossas. – ela comenta.

— Parece que sim. – e espia na sua direção. – Tu pensa nisso?

— Em ter filhos? Não sei. Um dia, quem sabe...

Sente que ela vai continuar o assunto, está tomando fôlego para dizer qualquer coisa, mas então percebe que chegaram ao Subway e apenas aguarda em silêncio enquanto Marcos manobra para estacionar na vaga de rua. Quando ele desliga o carro, ela pendura a bolsa ao ombro e desce, tomando a frente ao entrar na lanchonete. Já está diante do balcão de recheios, avaliando o que pedir, no momento em que Marcos a alcança. Ele olha na mesma direção por sobre o ombro dela – gosta da proximidade, do cheiro suave de shampoo no cabelo dela, de como parece que os dois ali, juntos, são um casal de verdade – e brinca dizendo que não recomenda o extra de bacon.

— Por quê? – ela se vira para olhá-lo.

— Passei tão mal na única vez em que comi que achei que fosse morrer.

— Que coisa agradável pra se dizer antes de comer.

— Só avisando.

A atendente está do outro lado do vidro, encarando-os como quem não tem paciência para aquele tipo de conversa, principalmente em um domingo à noite, e pergunta o que eles vão querer. Ana pede um sanduíche de frango teriyaki e Marcos opta pelo steak cheddar. No caixa, ela apresenta o ticket de desconto e recusa-se a que Marcos arque com o restante do valor, de modo que cada um acaba pagando seu pedido e sua bebida.

— Tu é uma mulher teimosa. – ele reclama enquanto sobem as escadas para as mesas no segundo andar.

— Só não sou antiquada ao ponto de sair com um cara e esperar que ele pague por tudo. – ela diz com um sorriso divertido.

— Tu não me deixou pagar por nada até agora.

Eles sentam-se à uma mesa junto das janelas que dão para a rua. Marcos fica satisfeito ao constatar que há apenas outras duas mesas ocupadas ali, nenhuma delas por adolescentes ou crianças. Está de frente para Ana e acha engraçado, mas adorável, o modo como ela desembrulha o sanduíche apenas o suficiente para mordê-lo e então envolve cuidadosamente o restante do pão com o papel sobressalente. Ela olha para a lata de refrigerante e fica claramente indecisa sobre o que fazer, pois agora suas mãos estão ocupadas com o sanduíche.

Marcos abre o lacre de alumínio, enfia um canudo plástico pelo buraco e desliza a lata de leve na sua direção. Com a boca ocupada, Ana balbucia um agradecimento. Então ele começa a comer também, hora ou outra deixando cair nacos de pão sobre a mesa e sujando os dedos de molho, fazendo uma pequena bagunça, o que acaba provocando risos em Ana. Depois, para tentar remediar a situação, ele usa todos os seus guardanapos e também os dela.

Conversam sobre qual seria o melhor molho – barbecue para Marcos, enquanto Ana prefere parmesão –, sobre filmes e o preço absurdo de uma ida ao cinema com direito à pipoca rançosa, sobre os shows deprimentes da festa do município daquele ano, sobre signos – ele ri com sarcasmo quando ela comenta que capricornianos, como ele, são territorialistas e obstinados – e sobre Boris. Nesse momento, Ana inclina-se sobre a mesa com o celular em mãos para mostrar-lhe fotos e mais fotos do gato, explicando o contexto de cada uma delas com um sorriso mole no rosto. Ela conta-lhe que Boris tem cinco anos e que o encontrou na rua ainda filhote, abandonado ou perdido e cheio de pulgas.

Quando se dão conta de que são os únicos ali e de que já passa das 22hs, concordam que está na hora de ir embora. Na rua, ao encarar o carro e perceber que ainda não quer levar Ana para casa e separar-se dela, Marcos sugere caminharem um pouco. Agora, há pouco movimento mesmo ali, no centro da cidade, e a iluminação dos postes de eletricidade dá um aspecto amarelado às pedras da calçada e às fachadas das lojas. Os cabelos castanhos de Ana, soltos e levemente ondulados, adquirem novamente aquele tom acobreado de que Marcos se lembra, da noite em que a conheceu.

Ela caminha sem pressa ao seu lado, observando as vitrines das lojas, e os dois compartilham um silêncio que não é mais constrangedor ou pesado, mas agradável. Às vezes, ela aponta-lhe qualquer coisa do outro lado do vidro – “Tu viu isso? Um fone de ouvidos com aquecedor de orelhas! Não é genial? Mas não faz mais tanto frio assim. Aposto que por isso está na promoção...” – e Marcos pensa que adora ouvir qualquer coisa que ela tenha a dizer. Às vezes, seus braços se tocam fortuitamente. Às vezes, ele não consegue perceber mais nada além da figura daquela mulher movendo-se ao seu redor.

— Como vão os negócios na tua loja? – ele indaga, um olhar irônico brincando no rosto, ao apontar para um letreiro luminoso que diz “Ana Bijoux”.

— Engraçado. – ela devolve o olhar de sarcasmo.

— Ana. – ele pronuncia o nome dela como se refletisse a respeito. – Geralmente é Ana Clara, Ana Júlia... tu não tem nenhum outro nome?

— Não. Só Ana.

— Só Ana. – ele repete baixinho e assente. – Combina contigo.

— Em que sentido?

— É simples. Autêntico. Sem artifícios. – e depois de uma pausa: – Bonito.

Ela vira-se para encará-lo a tempo de que Marcos possa ver o sorriso sumindo de seu rosto. Pega de surpresa pelas palavras dele, ela não sabe como reagir e fica presa naquele olhar que parece dizer muitas coisas. Marcos sente o coração batendo forte, um calor subindo-lhe pela nuca, porque repara no brilho úmido de seus olhos e não entende se a magoou ou se a cativou. Ele tem vontade de abraçá-la e de tomá-la para si, de nunca mais deixar que ela vá embora. Tem vontade de guardá-la para sempre naquele momento, a garota oscilando num enigma diante dele.

— Eu também gosto do teu. – ela se pega dizendo, a voz sumindo em um sussurro. – Do teu nome.

Marcos está prestes a segurá-la pelo braço e puxá-la para junto de si, mas então Ana desvia o olhar e, chamando-o, começa a voltar pelo caminho pelo qual tinham vindo. Frustrado, mas incapaz de zangar-se com ela, ele a acompanha em silêncio até o carro. Durante o tempo que levam para chegar até a casa dela, trocam comentários fugazes sobre coisas sem importância e fingem uma naturalidade que ignora o clima estranho de antes. No fundo, Marcos está pensando sobre o que ela poderia estar pensando também.

Embora o primeiro encontro costume acabar com um beijo – e, nos casos mais encaminhados, um convite para subir ao apartamento –, isso não acontece ali. Nas sombras do interior do carro, brevemente iluminados pela claridade artificial da rua, eles hesitam numa angústia desconfortável. Ana procura pelas chaves dentro da bolsa e Marcos aperta o aro da direção com as duas mãos. Então ela o fita com um sorriso pudico que pede desculpas, agradece pela noite e deixa o carro.

Observando-a entrar no prédio, Marcos se pergunta o que foi aquilo.

***

Em casa, atirando-se de costas na cama ainda vestido, ele encara o halo de luz do abajur tremulando no teto do quarto e sente-se excepcionalmente sozinho. A solidão é como uma sombra gelada arrastando-se sobre o seu corpo e consumindo qualquer resquício do calor da presença de Ana. Marcos recorda-se da expressão de pesar no rosto dela, de que ela se afastava involuntariamente dele quando ainda estavam no carro, e imagina se Ana é assim tão tímida ou se ele acabou fazendo algo de errado.

Está escovando os dentes e pensando em o quanto seu reflexo no espelho parece deprimente quando escuta o som de uma notificação no celular e vai pegá-lo sobre a mesinha de cabeceira do quarto. Com a escova de dentes ainda enfiada num canto da boca e a espuma fazendo arder a língua, ele desbloqueia o aparelho e vê que Ana adicionou-o como amigo no Facebook. Marcos não consegue evitar um sorriso aliviado.

E, naquele momento, a noite já não é mais tão escura.


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