Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 10
Capítulo X




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Passa da meia noite quando Ana desliga a luz da cozinha e vai juntar-se a Marcos no sofá. É Natal – não um Natal gelado como o dos filmes, com direito a fogo na lareira e blusões de lã aconchegantes, mas um Natal embalado pelo calor úmido bastante típico de um dezembro gaúcho – e as únicas luzes acesas agora são as que piscam ao redor do pinheiro montado no canto da sala e a da tela da TV. Bolinhas vermelhas estão espalhadas pelo chão porque Boris andou divertindo-se com elas antes de ir espichar-se no alto de uma estante e, pela janela aberta logo atrás deles, entra o ar morno da noite e o som dos insetos refestelando-se no escuro da rua.

Marcos ajeita a perna esquerda sobre o assento da cadeira que Ana arrastou para perto dele, as muletas escoradas no aparador logo ao lado. Mais um mês para começar a apoiar o peso do corpo sobre a perna, dois para poder abandonar as muletas e, no mínimo, outros quatro para voltar a correr – uma recuperação que seria lenta. Já consegue mover o braço relativamente bem, mas tem consciência de que ainda haveria muita dor e sessões de fisioterapia pela frente. Contudo, depois de quase dois meses dentro de um hospital, ele sabe que não pode reclamar. Porque está ali, passando o Natal com a mulher que ama, no apartamento dela. Porque está feliz – meio avariado, mas feliz.

Sobre a mesa, os restos da ceia ainda parecem apetitosos e Marcos comenta que, quando menos esperarem, vão encontrar o gato sobre a travessa da carne, banqueteando-se com o que sobrou do chester. Ana ri e diz que Boris jamais faria algo assim, que ele é um lorde, ao que Marcos rebate que mesmo lordes gostam de frango. Apertando botões no controle remoto, ela troca do noticiário para um canal de música e enlaça o braço dele com os seus, a cabeça apoiada contra o ombro de Marcos e uma baladinha do Cigarettes after sex tocando na TV.

Ele reclina-se melhor contra o encosto do sofá e fecha os olhos. No escuro, sente o perfume dos cabelos dela e o calor ameno de seu corpo, a textura suave da pele quando desliza uma mão sobre uma das pernas de Ana. O silêncio entre eles é tranquilo e singelo como um suspiro morno, e Marcos pensa que, se tivesse a oportunidade de voltar ao momento do acidente, faria tudo igual. Seus únicos arrependimentos são anteriores àquele dia.

— Tu estava distraída quando atravessou a rua. – ele comenta. – No dia do acidente.

— Uhun. – ela murmura baixinho.

— No que estava pensando?

— Em ti.

Ana não ergue os olhos para ele e continua escorada em seu ombro. Com as pontas dos dedos, traça linhas invisíveis em movimentos lentos ao longo de seu antebraço. Sob a claridade azulada da tela da TV, a pele dele adquire um tom frio, embora ela sinta seu corpo quente.

— Estava pensando em quando a gente se conheceu. – ela explica. – E que sentia tua falta.

— Por quê?

— Por que eu sentia tua falta?

— Por que estava pensando nisso. – ele sorri.

— Percebi que nunca tinha me sentido tão bem na presença de um estranho e então comecei a pensar se aquilo não poderia ter sido um sinal.

— Que tipo de sinal?

Pelo seu tom de voz, Ana se dá conta de que Marcos está achando graça daquilo e afasta-se apenas o suficiente para encontrar um sorriso largo em seu rosto. Ela enrubesce, suas bochechas e orelhas tornando-se subitamente quentes, e solta um grunhido irritado que faz com que Marcos solte uma risada.

Ela cruza os braços e ele a abraça, ainda rindo, puxando-a para mais perto.

— Por que está rindo? – ela resmunga. – Não tem graça.

— Desculpa. É que não acredito nessa conversa mística de sinais.

— Não é uma conversa mística.

— Tudo bem. – ele limpa a garganta, tentando parecer sério. – E então?

— Então o quê?

— O sinal. O que tu acha que queria dizer?

Ana investiga seu rosto em busca de qualquer sinal de zombaria. Como não encontra nenhum, resigna-se com um suspiro e deixa-se estar entre os braços dele. As orelhas ainda queimam um pouco quando ela responde.

— Talvez... talvez tenha sido um sinal de que nós ficaríamos juntos. No final.

Final? Marcos pensa que aquele não é o final, mas apenas o começo – um recomeço, sem mentiras, sem fingimento. Pensa que as coisas não aconteceram como deveriam acontecer e que talvez seus ossos partidos sempre doam em dias de chuva, mas que ama a garota recostada contra seu peito, fitando timidamente as próprias mãos, e que não vai desperdiçar aquela segunda chance de estar com ela. Pensa que ainda há um longo caminho para dentro de si mesmo, mas que isso não o assusta mais.

Ele pensa que, embora os homens possam ser atraídos pela imundície, também estão prontos para abdicar de si próprios quando amam, que são, no fundo, criaturas incoerentes, capazes de grandes canalhices e de sacrifícios ainda maiores. Pensa que nem sempre é possível julgar o que é bom ou o que é mau, mas que nunca é tarde para tentar ser um homem melhor.

Na penumbra que se molda às luzes do pinheiro, Ana inclina-se para beijá-lo e Marcos acredita que vai conseguir.


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Notas finais do capítulo

Fim.



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