Contos de Si-Wong escrita por Kureiji


Capítulo 3
O Conto de Aria




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Meu nome é Aria, da Tribo da Água do Sul, não precisa ficar tímido, eu sei que vim do mesmo lugar da grande Katara e do lendário Sokka, mas acredite em mim, eu sou apenas uma pessoa comum assim como você.

Eu vim em uma missão de representar minha tribo no Oásis das Palmeiras Enevoadas, ou OPE como eu prefiro chamar. Eu estava animada pra conhecer todas os avanços e pelo turismo também, mas não imaginei que acontecia tantas coisas aqui, no meu primeiro dia já houve explosões, conflitos políticos e reféns.

Já estou no meu quarto dia e já cumpri a maior parte das minhas obrigações, hoje eu vou aproveitar e conhecer mais de toda essa beleza. Meu guia na cidade estava muito ocupado com seus deveres, o Kalil, uma pena porque a companhia dele é uma das melhores coisas que eu tive aqui, felizmente outra pessoa se ofereceu para me levar em um bom lugar: Bastet.

De início fiquei receosa porque a primeira vez que eu a vi ela estava colocando o seu khopesh na garganta de um conselheiro. Mas ela o fez pensando que haviam tentado matar sua família, isso dá um desconto, não é? Quer dizer, ela é uma conselheira então eu devo estar segura...

Antes de sair passei e dei uma olhada no espelho pra ver se estava tudo certo: Meu cabelo curto e ruivo estava com a franja certinha. Minha calça e cinto, ok. Bumerangue, ok. Estava tudo pronto, minha pele era um pouco mais clara que a do meu povo, mas nos poucos dias lá já havia pego um pouco de pigmento. Agora só faltava eu chegar.

A Bastet me esperava do lado de fora da cidade, eu sou sempre pontual, uma boa agenda é o princípio pra tudo dar certo, então fiquei surpreendida quando vi que ela chegou ainda antes que eu.

— Suba, vamos nesse velejador de areia. - Ela disse apontando para uma espécie de pequeno barco que servia de transporte para dominadores de areia.

—Bom dia, você acordou comigo? - Eu disse sorrindo.

—Por que eu dormiria com você?

—Deixa pra lá...- Acho que eles não têm essa expressão aqui- Vamos só nós duas? Você não tem toda uma guarda?

— Não queria que eles me importunassem hoje, mas você está errada, vem mais alguém.

Por um instante pensei que meu coração havia parado, do lado dela havia uma grande pantera-zebra.

—Esse é o Sekhi. Ele vai nos acompanhar.

—Tudo bem...

Eu subi logo atrás dela e o "Sehki" deitou ao lado da dona, graças aos espíritos.

Ainda que nosso destino fosse um banho ela estava bem produzida, como das outras vezes que eu havia a visto. Seu cabelo estava todo trançado e caía até os ombros no seu tecido de linho purpúreo, ela sempre andava com uma tiara de ouro e muitas joias, mas desta vez não veio assim.

A viagem começou e eu tive tempo para admirar algo que eu não me cansava de assistir: a dominação de areia usada para velejar no deserto. Era tão parecido com a dominação de ar, mas também tão único.

Eu ainda não estava acostumada ao calor extremo da região, mas aquele vento contra meu corpo era uma sensação sem comparação. As dunas de areia que eram uma tortura pra quem andava no deserto agora pareciam apenas ondas divertidas para velejar.

—E então, o que você mais gostou? - Ela perguntou

—O que?

—O que você mais gostou dos dias que passou aqui?

— De tudo! Mesmo sendo tão distante vocês já eram bem conhecidos na nossa região. Ainda assim nada do que ouvi faz jus ao que realmente é, tudo tão único e interessante.

— Sim, eu me sinto como no topo de uma montanha, qualquer lugar que eu ande eu tenho que "descer", por isso tenho tanta preguiça de visitar outros lugares.

Respira Aria, ela só está expressando a opinião estúp...A opinião dela.

— Aposto que você iria mudar de ideia se conhecesse minha tribo.

— Hum...Acho que não. Mas isso foi um convite?

— Não só um convite, um desafio.

—Eu gosto de desafios, tudo bem eu aceito. Eu já tenho tudo que eu poderia querer, mas vou pensando no que vou exigir quando eu ganhar.

—Não faz diferença, você não vai ganhar.

O clima estava ficando mais quente, mas eu não queria perguntar se ainda ia demorar muito pra chegar.

— Ei.

—Oi

— É que assim... Sobre o Kalil, ele nos guiou nos dois primeiros dias e eu fiquei com uma dúvida. Você sabe me dizer se ele é sempre tão gentil com todo mundo?

—Sei.

—Então...Ele é?

— Você não veio aqui pra conversar sobre homens né?

—O que? Eu? Não, claro que não. Só achei estranho...Não não.

Sim, talvez um pouco.

—Olha lá, chegamos. - Ela disse apontando.

A areia tinha começado a dar espaço pra um terreno mais rochoso, ainda bem seco, enquanto caminhávamos deu para avistar uma entrada para o subsolo, ela tinha alguns degraus grandes e não tão bem terminados.

—De vez em quando alguém vem aqui, mas hoje à noite tem um festival na cidade então todos estão se preparando.

À medida que descíamos as rochas ganhavam tons castanhos mais claros e era possível perceber algumas listras brancas em algumas delas, como se alguém tivesse as desenhado.

—Que lindo...

Depois de descermos um pouco lá estava, parecia um paraíso escondido. O teto da caverna formava um arco grande com alguns cristais brancos bem espaçados que traziam iluminação pra caverna, entre eles estavam grandes estalactites que variavam entre o castanho e o branco. Mas a verdadeira atração estava no reservatório de água bem no meio, a luz dos cristais refletia no cristalino das águas e formava um espetáculo de sabores visuais.

—Bem vinda a Caverna Washin. Linda, não é?

—Linda? Eu nem tenho como descrever.

—Sim, ela...

—Perfeita, maravilhosa, esplêndida, é como se eu estivesse respirando um arco íris, como se a palavra "beleza" tivesse sido criada quando alguém viu isso, como se...

—Já entendi, venha.

Nós fomos andando até a beira das águas, chegando mais perto vi que a água corria bem lentamente e era bem fundo. Era tudo cristalino de encher os olhos de prazer.

—Por que você trouxe tudo isso pra um banho? - Bastet perguntou

—Isso o que?

—Esse cinto, mochila, essa calça com vários bolsos.

—São só 4 bolsos. Nós não dobradores não podemos nos dar o luxo de andar despreparados.

— Se for assim eu posso lhe mostrar como se usa um khopesh depois.

—Sério? Eu adoraria, eu amo aprender novas técnicas. Você já deve ter ouvido falar do Sokka né? Eu o admiro muito, ele não se limitou a aprender só a nossa forma de lutar, ele também aprendeu...

—O que é aquilo?

Que rude.

Ignorei a falta de educação e olhei pra onde ela apontava. De longe não dava pra ver bem, mas com certeza não era algo natural da caverna.

—Aquilo não fica aqui?

—Não.

Nós fomos andando na direção dos dois objetos até os enxergarmos melhor, de perto deu pra ver que eram duas caixas de madeira refinada próximas uma da outra, cada uma tinha uma espécie de caixa menor em cima feita de mármore.

Quando chegamos perto deu para ver melhor, dentro das pequenas paredes de mármore do primeiro estava um pergaminho enrolado e no outro continha uma adaga sai com a empunhadura adornada e uma esmeralda encrustada nela.

—Retire apenas um. - Bastet falou.

Foi então que eu vi, na parede a nossa frente estava encrustado com traços grosseiros, como arranhões "Retire apenas um".

—O que é isso? - Eu perguntei

Ela me encarou.

—Posso lhe garantir que não é uma pegadinha, não sei o que é também.

Eu me sentei no chão e coloquei a mão no queixo. O que poderia ser? Quem colocou aqui sabe que é bem visitado, mas qual seria o objetivo? Por que retirar apenas um? Por que doar esses objetos? Por que uma adaga e um pergaminho?

É muito complexo pra ser só um tipo de roubo ou assalto, não faz muito sentido. Eu também não acho que seja uma pegadinha da Bastet, ela não parece ter muita paciência pra isso.

—Eu vou pegar o pergaminho. - Ela disse.

—O que? Você não pode, temos que descobrir qual o objetivo disso tudo.

—Quando pegarmos vamos descobrir.

Olhei pra ela sem entender.

—Não adianta tentar adivinhar, vamos agir e então vemos o que acontece.

—Mas por que o pergaminho?

Ela levantou seu khopesh pra mim.

—Você não precisa da adaga né? - Eu perguntei

—Exatamente. Se esse pergaminho não tiver nada de interessante, ou se nada acontecer, pegamos a adaga depois.

—Calma, aqui diz "retire apenas um".

—O que você acha que pode acontecer de errado?

—Uma armadilha, uma maldição, eu não sei.

—Até que faz sentido... Aqui ficava perto da biblioteca de Wa Shin Tong, talvez tenha algo assim mesmo. Então vou só pegar o pergaminho.

—Calma! Se for mesmo espiritual, a adaga pode ser mais que uma adaga, nunca ouviu falar de armas com propriedades especiais?

—Não.

— Pois elas existem.

—Você já viu alguma?

—Se essa adaga for uma delas, sim! Só vamos descobrir se pegarmos ela.

—Não me convenceu, vou pegar o pergaminho.

—Espera! Deixa-me pensar.

Ela revirou os olhos e ficou batendo o dedo indicador no braço enquanto esperava.

Se isso for uma armadilha, como ela deve ser ativada? Talvez seja quando retirarmos os dois tesouros de dentro dos cubos de mármore, pois então seria identificado que os dois foram pegos. Talvez a armadilha só passe a ser ativada quando um objeto for retirado, se alguém conseguisse retirar os dois objetos ao mesmo tempo ela não seria ativada.

E se for por peso? Se colocarmos algo de mesmo peso pra substituir uma, então retiramos a outra, assim o sistema entenderia que ainda tem uma.

Eu tô partindo do ponto de vista lógico, mas e se na verdade for alguma pegadinha dos espíritos e eles estiverem nos assistindo? Se for assim não tem uma solução baseada em algum "mecanismo da armadilha". Considerando que é uma armadilha. Bem, se tem um aviso claramente é porque tem uma punição.

Quer dizer, pode ser um conselho não é? "Retire apenas um", talvez sejam objetos mágicos que ninguém deveria possuir em conjunto.

—Eu já disse, só vamos saber quando pegar.

Ela tem razão, mas eu não quero ter que decidir entre o pergaminho e a adaga. Bem...Se for um mecanismo de armadilha baseado em retirar um em um tempo diferente do outro, ou em retirar o objeto de dentro do recipiente, eu tenho uma ideia. Se for um espírito fazendo uma pegadinha talvez funcione também, mas e se for...

—Eu vou tirar o pergaminho- Bastet falou interrompendo meus pensamentos

—Não! Eu já sei, olha, e se retirarmos os dois ao mesmo tempo? Sem retira-los lá de dentro?

Ela me olhou sem entender.

— O pergaminho e a adaga estão dentro de um cubículo de mármore né? Com a parte de cima de vidro.

—Continua.

—Bem, eu pensei, você não consegue tirar um "bastão" de pedra e fundir ele com essas duas partes de mármore?

— Talvez eu consiga, é um trabalho delicado. Mas pra que?

—Se tirarmos os dois tesouros sem tirarmos de dentro dos "baús" de mármore talvez não dê problema. Com sua dominação você poderia retirar esses "baús" de cima dessa caixa de madeira, se tiver grudado.

—Pra que o bastão?

— Ah, achei que assim seria mais fácil de retirá-los ao mesmo tempo, caso tenha uma armadilha cujo mecanismo seja a diferença de tempo que um objeto é retirado após o outro.

—Isso não faz muito sentido pra mim, mas me agrada a ideia de pegar os dois. Afinal somos duas, então tecnicamente cada um pegou um.

— Além disso, eu tenho mais uma carta na manga, mas prefiro não comentar.

Ou ela iria zombar.

Com uma delicadeza que eu não esperava a Bastet retirou um bastão cilíndrico da parede com sua dominação de terra, ele era maior que a distância entre os dois baús de mármore (que estava um pouco mais de meio metro longe um do outro). Ela então uniu as duas caixas com o bastão pela parte de trás de cada um. Depois ela retirou mais pedras da parede da caverna para "colar" melhor o cilindro às caixas.

— Eu vou puxar as duas, se prepara caso algo aconteça. - Ela disse

Ela fechou os olhos, se abaixou e então se levantou com as duas palmas da mão estendidas para cima, levantando assim o nosso novo "treco".

Nada aconteceu.

—Se isso foi uma pegadinha foi de muito mal gosto. - Eu disse.

— Não sei se foi uma pegadinha. Se fosse uma pegadinha a graça seria nos assistir batendo cabeça com isso, não é? Se for, então tem alguém nos assistindo em segredo.

— Eu acho que sim...Quando eu pregava peças a graça era ver elas acontecendo, obviamente.

—Pois é, se fosse pra nos observar em segredo, não seria muito mais interessante ver duas mulheres atraentes tomando banho?

O que? Eu esperava outra coisa, tipo "onde eles estariam escondidos?".

—Isso não tem lógica alguma. - Eu disse.

—Você já olhou pra mim? Não faz sentido preferirem pregar uma peça sem graça do que a outra opção.

Eu suspirei.

—ENFIM...Vamos aproveitar nossa sorte e sair daqui.

Ela revirou os olhos.

—Eu não queria abrir mão desse banho, mas acho que você tem razão.

Bem...Toda essa discussão foi em vão, no final das contas não tivemos o direito de escolher o que fazer.

De dentro da água começou a sair uma criatura que eu nunca havia visto antes, ela parecia grudenta e dava pra ver que não era um ser humano. Eu peguei meus dois bumerangues em mão, Bastet entrou em posição de combate e o Sehki (aquela pantera-zebra grande e assustadora) começou a rosnar.

Quando seu corpo ficou todo para fora d'água consegui vê-la melhor.

Mas como eu posso explicar? Tente imaginar um camaleão de 3 metros de altura, mas apoiado sobre duas patas. Agora imagine que esse camaleão é meio girino, com uma cauda longa que ele usava para se apoiar e com membranas entre os dedos.

Era difícil olhar pra ele, as vezes parecia que sua pele era mais escamosa e as vezes mais úmida, como se alternasse. Ele era verde mas suas patas e cauda eram mais escuras.

—Boa tarde criaturas do mundo mortal, deixem o que vocês pegaram ou morram- Ele disse.

—Quem é você? - Bastet perguntou sem transparecer medo.

—Vou perdoar sua indelicadeza em não retornar o boa tarde porque também me faltou boas maneiras. Naom Seh Yn.

—Como? - Perguntei

—Não, Koh Moh é o nome de meu primo.

—Eu não sei como é o nome do seu primo. Isso é uma charada? - A esse ponto eu já não estava entendendo mais nada.

—Eu não perguntei seu nome eu perguntei quem é você. - Bastet disse- É um espírito? Nós pegamos o objeto justamente.

—Naom.

—Não o que? - Ela retrucou.

—Naom Seh Yn. É meu nome, vocês precisam saber caso eu as mate. Sim, eu sou um espírito.

—Ah eu entendi! Não Sei é o seu nome! - Eu disse com alegria

Bastet me ignorou e continuou encarando o Não Sei, ah é! Ele quer que devolvamos e quer nos matar... Eu limpei a garganta e disse:

—Por que devemos devolver?

—Ali diz "retire apenas um".

—Olhe bem, eu estou vendo aqui apenas um objeto- Eu apontei- Um bastão de pedra de duas pontas.

Ele sorriu.

—É verdade, agora podem fazer parte de um só corpo, mas onde eu escrevi "retire apenas um" foi retirado dois objetos.

—Antes de retirarmos tornamos tudo um só.

Ele me encarou.

—Coloque a palma da sua mão estendida pra frente.

Eu estava em uma posição de total desvantagem, não queria ter que brigar com um espírito, ainda mais com 3 metros de altura. Não questionei, apenas coloquei.

Não foi preciso nem 2 segundos para eu me arrepender, no instante que coloquei a mão para frente a língua dele se estendeu e encostou em minha mão.

Os seus dois olhos focaram em direções opostas na horizontal, depois em direção opostas na vertical, e então ele os deixou semicerrados em minha direção.

—Você parece ser ingênua e não ter maldade na sua fala. Vou lhes contar algo: Isso é um teste.

—Eu sabia que não era uma pegadinha- A Bastet disse.

—Vocês sabem que a biblioteca de Wan Shi Tong ficava perto daqui? Pois então, desde a convergência harmônica a fama dos seres humanos melhorou com o meu mestre, Wan Shi Tong, os humanos vivendo mais unidos entre si e com os espíritos i impressionou, mas ele ainda está muito desconfiado. De fato, vocês ainda usam muito o conhecimento para o mal, então ele começou a observá-los mais de perto e propor alguns testes, esse é um deles.

—Então...Nós passamos?

—Eu não sei, vocês são as primeiras, não esperava pessoas tão...Excêntricas. Vamos fazer assim, eu deixo vocês recomeçarem o teste se passarem em outro. Vocês falaram sobre charada mais cedo, eu amo charadas. Vamos fazer uma disputa então, vocês duas contra mim, se eu ganhar vocês vão embora, se vocês ganharem deixo refazerem o teste.

—O que você acha Bastet?

Ela sinalizou um "ok" com polegar enquanto não retirava os olhos do Não Sei.

—Então deixe-me começar. - Ele disse, enquanto vagarosamente começava a escalar as paredes da caverna.

—"Nos vire do avesso. Abra nossas vísceras"

Enquanto ele escalava suas escamas mudavam de cor: amarelo, roxo, branco, até que ele ficara camuflado, quase imperceptível.

—"Assim você ganhará sabedoria. Sem nós um ignorante você seria". Quem sou eu?

Nos vire do avesso...Abra nossas vísceras, como eu poderia ganhar sabedoria fazendo isso?

— Um sacrifício? - Bastet falou- Já ouvi falar de sacrifícios aos espíritos para se obter respostas, com aves do deserto.

—Não! Vocês têm mais uma chance- Ele respondeu em um tom ameaçador.

Ele disse "nós", são muitos, "um ignorante você seria", tem que ser algo que faz parte da nossa vida e sem isso seríamos ignorantes...

Onde procuramos sabedoria? Se eu fosse lembrar de tudo não iria terminar hoje.

Tá bom, pense Aria, onde posso procurar sabedoria mexendo e remexendo, como que abrindo uma víscera.

—Óbvio! Como eu sou lenta! Livros, são livros.

—Muito bem. - Ele disse voltando a cor normal e ficando sobre as duas patas de novo- É sua vez então, proponha uma charada.

—Posso? - Eu disse a Bastet

—Vai.

—"Você me tem hoje e amanhã você me terá ainda mais. Conforme o tempo passa, eu não sou nada fácil de guardar. Não ocupo nenhum espaço...

Fiz umas pausas dramáticas, então sinalizei um arco com a palma aberta.

—Mas estou sempre num único lugar". Quem sou eu?

Os olhos de Não Sei denunciavam que ele estava perdido, ora eles focavam em um objeto da caverna, em outro momento eles olhavam para lugares diferentes.

Ele se deitou, rolou, então colocou a língua pra fora e encostou no chão.

—Não sabe? Ganhamos?

—Eu ainda tenho tempo! Espera!

Ele pegou um pouco de areia do chão, que não era muito, e foi jogando de volta enquanto esfregava o "polegar" e o "indicador".

—Tempo...Acho que entendi! Memória, você é a memória!

—É... Você acertou- Disse desanimada

—Muito bem, minha vez então.

Se antes ele ficara quase imperceptível, agora ele desapareceu.

—Não Sei? Oi? - Eu sabia que ele estava ali, mas perguntar foi quase um reflexo.

—"Ele é magro...Muito magro. Tem dentesss, mas nunca come. E mesmo sem ter dinheiro, dá comida...

Infelizmente essa última parte eu ouvi a voz ser sussurrada no meu ouvido.

—A quem tem fome".

Se o plano dele era me desconcentrar, então pode apostar que deu certo.

Um misto de medo de um espírito gigante invisível e raiva porque odeio que falem no meu ouvido surgiram em mim, isso não ajudou em nada a solucionar a charada.

—O que você acha Bastet?

—Muitas coisas poderiam ser chamadas de magras...

—Eu odeio charadas com dentes, pode ser muita coisa, um pente, dente-de-leão.

Nunca come...Não é um animal então, provavelmente um objeto mesmo, ou uma outra forma de vida.

—O segredo está em "da comida a quem tem fome", isso restringe nossas opções. - Bastet afirmou.

Quem dá a comida? Poderia ser uma planta? Mas ela come, e uma planta com dentes...Dente-de-leão? É fino na sua haste, serve de alimento, tem "dentes, não tem dinheiro. Mas o dente-de-leão serve de comida, a analogia é "dá comida".

—O tempo está acabando...- Não Sei falou.

—Sem trapaças, ainda temos tempo! - Bastet falou apontando o Khopesh.

Às vezes minha mente não faz muito sentido, mas é assim que ela funciona e pronto.

O Não Sei não deveria ter feito uma charada com comida, porque eu já penso nisso a todo momento.

Quando a Bastet apontou o seu Khopesh, eu a imaginei fazendo o Não Sei de picadinho pro jantar.

Isso me lembrou de uma faca, me lembrou que estou com fome...

—GARFO! É um Garfo, ele é magro, não tem dinheiro, não come e dá comida a quem tem fome! G A R F O.

Não consegui conter o riso e pulos de alegria.

O Não Sei apareceu na nossa frente sem muita alegria.

—Minha vez. - Bastet falou.

— "É indeciso, as vezes acrescenta

Outras vezes se opõe ao que foi falado

Algumas histórias ele aumenta

Por perguntas ele é interessado

Às vezes é o objeto da conversa

Outras só ajuda no assunto dado

O que é o QUE é..."

Eu não entendi uma palavra dessa charada. Eu nem sei por onde começar, ainda bem que não sou eu que tenho que resolve-la.

Não Sei estava inquieto, ele andava de um lado para outro sem se decidir se brincava com rabo ou se enfiava a cabeça na água. A charada era tão difícil pra ele que nem conseguia disfarçar que não tinha a menor noção, é quase como se fosse possível ver engrenagens e fumaça na cabeça dele.

—O tempo está acabando. -Bastet disse com um grande sorriso no rosto.

—Eu preciso de silêncio! Faça o seguinte, jogue uma pedra na água quando acabar o tempo.

Ele entrou na água com o corpo todo e ficou lá.

Até pensei em sugerir uma fuga, mas achei que seria muito arriscado, só faltava um minuto.

O tempo restante fora rápido, eu joguei uma pedrinha no lago e ele saiu de lá.

—Eu não sei...- Não Sei disse- Qual a resposta?

—Uma palavra ué.

—O que?

—Exatamente, o "que".

Ele ficou calado. Eu não, não entendi nada.

—O que Bastet?

—Exato, o "que".

—Como eu sou idiota! Agora entendi- Ele disse.

—Então explique- Bastet falou.

—O "que" tem muitas funções, qualquer uma que eu dissesse poderia estar certa, mas incompleta.

"É indeciso, as vezes acrescenta

Outras vezes se opõe ao que foi falado "

Podemos usar o "que" nas orações para contrapor o que foi dito ou pra acrescentar uma informação nova.

"Algumas histórias ele aumenta" -

Porque ele serve como advérbio de intensidade.

"Por perguntas ele é interessado"

Nas próprias charadas...Sempre começam o que é o que é.

"Às vezes é o objeto da conversa"

Pois as vezes é um substantivo.

"Outras só ajuda no assunto dado"

Porque serve como auxílio.

—Exatamente- Bastet falou, e meu cérebro ainda tentava processar tudo.

—Por fim, você disse, o que é o QUE é... Esperamos que eu completasse a sentença, o QUE é... Uma palavra! Ele é tudo que eu disse, substantivo, pronome, advérbio, mas você poderia apelar dizendo que era uma resposta incompleta, já que a própria charada deu várias funções dele, então a única que você não poderia negar como errado é "palavra".

Eu não esperava isso da Bastet, e eu achando que estava começando a entender ela.

—Estou frustrado, mas impressionado, tudo bem, podem refazer o teste.

—Vamos levar nosso item, o bastão de dois pesos. - Bastet disse.

—Não! Não foi isso que eu disse, isso é trapaça!

—Ei, não é trapaça, lá diz "retire apenas um", pensei que já tínhamos discutido isso! - Eu falei- Nós ganhamos a disputa de charadas, seja justo!

Ele então aumentou de tamanho, ficando com 4 metros de altura. Das suas patas saíram garras e da sua cabeça uma crista horizontal grande, seus olhos formaram fendas e seu corpo começou a brilhar entre o roxo e o azul. Não Sei então abriu sua boca e emitiu um grito esganiçado.

—Vocês estão brincando com a sorte! Escolham um ou sofram as consequências.

Eu entrei em pose de combate, as pernas tremendo um pouco? Talvez, mas estava preparada.

—Já escolhemos um.

Ele soltou ar, o que pra mim pareceu um suspiro, e voltou a sua forma normal aos poucos.

—Eu vou ter paciência, porque vocês parecem ser promissoras e sem intenção de maldade. Eu vou lhes ensinar qual o propósito do teste e como passar nele.

Eu estava muito confusa com a mudança de atitude, era muito pra processar.

—O teste consiste no seguinte: Se vocês escolherem o pergaminho, a reputação de vocês melhora com o Wan Shi Tong, afinal trocaram uma linda adaga que pode conter propriedades espirituais por um papel velho sem saber qual o assunto que ele contém. Se escolherem as duas, só irão atiçar a ira e eu terei que mata-las. Se escolherem a adaga, deixarão Wan Shi Tong mais desconfiado e ele terá que fazer mais testes.

—Então, você propõe que peguemos o pergaminho? - Eu disse.

—Sim, eu ainda faria mais, contaria quão genial vocês foram e de seu bom coração. Estariam muito mais perto de conquistar meu mestre.

—Parece perfeito! O que você acha Bastet?

Ela estava pensativa.

—Não tem o que pensar: Uma alternativa é tentar levar os dois e morrer, a outra é estar a um passo de conquistar o favor de Wan Shi Tong.

—De fato...- Ela disse com a mão no queixo- Se pegarmos o pergaminho ganharemos mais conhecimento, eu sempre o quis, a Aria que queria a adaga.

E a culpa sobrou pra mim.

— Nós buscamos ser uma grande cidade, ter a biblioteca de Wan Shin Tong tão próximo seria muito mais do que poderíamos pedir. Não poderia ter uma proposta melhor mesmo...

—Eu sei, então peguem o pergaminho logo.

—Mas eu me recuso!

—O que?

—O que? - Eu completei.

Ela abriu um sorriso. Eu não sabia se sentia ódio ou confusão.

—Não há nada que me dê mais prazer do que contrariar alguém que ache que está totalmente no controle da situação. Ainda mais alguém mais forte do que eu. – Ela disse com um sorriso idiota no rosto- Além do mais, se é isso tudo de bom, por que está nos oferecendo assim? Eu acho que nossa "resposta" ao teste foi estranha demais e você não sabe o que fazer, não é? Se teríamos a aprovação do seu mestre ou não.

A expressão de raiva do Não Sei mudou para confusão e... medo? E depois mais raiva, era tudo muito intenso.

—Eu não tinha certeza, mas agora você se denunciou. Aposto que ele não é muito amigável logo você não pode dar um sinal de incompetência no seu trabalho, então não sabe o que fazer com nossa situação, mas também não tem coragem de levar a questão a seu mestre.

—Eu sei o que fazer, vou mata-las!

Ele tomou aquela forma de novo e avançou em nossa direção.

Por um reflexo Bastet criou uma parede de terra, mas na mesma velocidade o Não Sei a escalou. Eu atirei meu bumerangue quando ele estava lá em cima e pareceu ter chamado sua atenção para mim, ao mesmo tempo Bastet jogou o que parecia ser uma bola de fumaça nele.

Ele saiu do meio da fumaça com toda fúria para cima de Bastet novamente, ela tentava se defender elevando o solo onde ele pisava e trazendo estalactites do teto. Algumas apenas escorregavam em seu corpo pegajoso, outras ele cortava com suas garras. Sempre que via uma oportunidade Sehki tentava morder ou arranhar o espírito, mas ele não parecia se ferir, apenas se incomodar.

Eu aproveitei o momento para jogar meu outro bumerangue nele, que estava ancorado por um fio super fino a um molinete à minha cintura. O bumerangue voltou para minha mão e o fio encostou nele sem que ele percebesse. Eu fiz o movimento mais uma vez, mas agora não tive a mesma sorte e o bumerangue não voltou.

Peguei um frasco de vidro do meu cinto, coloquei em um estilingue.

Eu não poderia me dar o luxo de errar.

Atirei e consegui acertar bem no imenso corpo do Não Sei.

Ele tentou se voltar pra mim enquanto a Bastet retardava-o, ativei o molinete da minha cintura forçando os fios que haviam passado nele a se enrolar. Depois de ter dado uma apertada forte, cortei o fio da minha cintura e acendi-o com um fósforo.

Não Sei virou um show de luzes, enquanto ele pegava fogo seu corpo mudava em várias cores brilhantes, era difícil de enxergar com todo aquele brilho, mas parecia que agora todo seu corpo havia mudado para uma forma mais reptiliana e menos anfíbio.

Ele saiu correndo e se jogou em direção a água.

—Ele vai voltar, desfaça o bastão e segure-o quando ele voltar. - Eu disse

Bastet fez o que fiz rapidamente sem hesitar. Depois de desfazer o bastão foi criando paredes e espinhos ao redor do lago. Era uma dominadora espetacular.

Eu quebrei o vidro dos dois baús com o bumerangue que eu havia recuperado então peguei a adaga e o pergaminho.

Eu guardei a adaga e comecei a dar prosseguimento no meu plano, não era tão simples assim e eu estava muito nervosa.

Sem muita demora Não Sei saiu de dentro da água. Fiquei sabendo porque ele já subiu esmagando uma das paredes e escalando uma outra, ele usou-a de apoio e pulou por cima dos espinhos.

Pensei que ele iria avançar para cima da Bastet, mas em vez disso ele desapareceu.

—Ele não pode vim aqui agora Bastet! - Eu gritei.

Maldição, eu mal conseguia escutar os passos dele.

Cada segundo parecia uma eternidade, 1, 2, 3, 4,5.

—ROOAAAR- Pelo menos foi assim que escutei o rugido de Sehki.

Ele pulou em direção ao nada e no meio do caminho encravou seus dentes no Não Sei, que voltou a ficar visível.

—Tentando fugir de uma pantera-zebra fedendo a álcool? - Bastet disse.

Eles ganharam o tempo que eu precisava.

—Ei! Lagartixa Mutante! - Lagartixa mutante...Eu sou muito engraçada.

Nas minhas duas mãos eu segurava dois pergaminhos amarrados a uma pedra cada.

—Um desses é o verdadeiro e o outro é o falso.

Eu vi expressão de apreensão no rosto dele.

— Eu vou jogar os dois, cada um em uma ponta do lago, é melhor você ser rápido. Vamos levar apenas a adaga. 1, 2...

Joguei os dois, um em cada direção do lago.

Não parei para ver o arremesso nem como Não Sei faria para alcança-los, apenas corri e puxei Bastet pela mão, Sehki veio correndo atrás de nós.

Quando estávamos subindo para alcançar a saída ouviu-se um rugido esganiçado e a Bastet usou sua dominação para ir fechando o caminho de forma atrapalhada enquanto subia.

—Rápido rápido!- Gritei quando subimos no velejador.

Depois de conseguirmos alguma distância e eu ter conseguido dar uma respirada, falei.

—Acho que já estamos em uma distância segura.

Eu não questionei a decisão dela de recusar a proposta do espírito e ela não questionou minha decisão de manter a adaga.

—Ei, isso não vai gerar um grande problema espiritual pra vocês?

—Já fico satisfeita de estar viva. Mas não se preocupe, semana que vem irão chegar alguns nômades do ar, eles resolvem esse problema.

Se ela estava tão confiante que era simples assim, quem sou eu para questionar.

Depois de me acalmar mais eu disse:

—Bem, acho que tem algo que pode lhe deixar contente.

Tirei um pedaço de papel do bolso de trás.

—O pergaminho?!

—Sim!

—Como? Um daqueles não era o verdadeiro?

—Aqueles eram apenas papel velho e amassado, que eu enrolei no formato de pergaminho e amarrei a uma pedra com barbante, por isso eu precisava do tempo.

—Por que dois? Por que fingir ser um falso e o outro verdadeiro? Não era mais prático fazer a mesma coisa só com um? Dizer que era o verdadeiro e jogar na água. Você não precisaria de tanto tempo pra armar tudo igual precisou.

—Sim, é verdade! Mas eu tinha receio de que ele percebesse que era falso, eu não sei como é a visão de um camaleão-anfíbio espiritual. Então quanto mais informação eu desse para ele processar mais ele teria no que pensar e se confundir, é como fazer mágica, você enche de informações inúteis para distrair o público do que importa.

—Sagaz. Você é mais do que eu esperava, poderia ficar mais tempo aqui.

—Ah sei não, acho que preciso voltar logo com as informações novas.

—Se você vai usar como desculpa a política, acho que vai ser importante você ficar pra ver as consequências das suas ações.

—Nossas ações.

—Isso.

—É. Talvez eu possa... Eu realmente estou muito curiosa.

—Então está decidido.

—Mas eu me recuso!

Ela me encarou sem entender. Eu sorri.

—Sua cabeça dura, quase eu mato você eu mesma naquela hora.

Ela deixou um sorriso escapar.

—Mas aí, eu fico com uma condição, você tem que me falar um pouco mais do Kalil, não quero ser a estrangeira boba que é enganada.

—O que? Isso de novo? Esquece, pode voltar pro seu iglu mesmo.

—Ah qual é...

E assim foi até chegarmos no Oásis das Palmeiras Enevoadas.

...

Tem que ter uma lição no final do conto, não é? Uma superação talvez.

Já sei, como não dominadora, essa é minha frase preferida, aprendi na minha terra.

"A sorte favorece os preparados"

Ou seja, guarde bem seu bumerangue e seus barbantes, é isso pessoal.

 


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Notas finais do capítulo

Não esqueçam de comentar o que acharam ^^ . Provavelmente postarei só mais um conto para encerrar.



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