A Rainha das Bruxas e o Príncipe Condenado escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 1
Único - Uma Mente Envenenada.


Notas iniciais do capítulo

- Não, gente, eu não consigo usar nomes normais. O nome "Iriszka" vocês podem ler como Irishka.
— O conto foi escrito ouvindo essas músicas, eu indico que ouçam porque talvez tenha influenciado a cena: https://www.youtube.com/playlist?list=PLmQl3biTCj-kdP7WxJD3432lNnPuVXBiM



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/800266/chapter/1

Muhrander, Opis. Ano 1121.

Seus movimentos eram leves e encantadores como uma folha na correnteza. A música o inebriava de tal modo que não era necessário pensar, impregnava-se em seus músculos, e seu corpo se movia envolto em uma aura de graça, força e determinação. Ele não pararia enquanto a musicista ainda tocasse. Sua dança macabra era observada por dezenas de olhares vazios e ressentidos, ainda que só houvessem eles dois naquele palácio. O luar e as estrelas orientavam seus passos, iluminando o átrio do salão através do teto de vidro; não importavam quantos candelabros e lustres iluminassem o ambiente, a escuridão da noite sempre imperava no local.

O Príncipe Condenado deslizou ao ritmo da música entre os tronos de sua mãe e de seu pai, fazendo uma respeitosa reverência, o pungente odor de sangue e carne carbonizada não parecia incomodá-lo. Incomodava-o menos ainda os crimes que denunciava. Sobre a mesa do banquete, suas voltas desviavam cuidadosamente das travessas cheias de comida ainda intocada. Os pés descalços saltavam sobre pratos vazios e corpos ensanguentados com a mesma destreza com a qual um esgrimista maneja sua lâmina. No momento, via-se completamente sozinho. Por um instante, parecia que a própria música fluía de si, soava de dentro da sua própria mente. Desejava que isso fosse verdade. A própria musicista desejava estar em qualquer outro lugar, desejava não ser a única outra alma viva a observar seu sombrio senhor dançar uma melodia melancólica demais para aqueles movimentos extasiados. Ainda assim, ele fazia aqueles passos, a despeito da tristeza dos toques taciturnos da harpa. Mas a perfeita sintonia entre sua alma e os tons expressos pelo instrumento faziam os ouvidos do Príncipe Sem Nome receber a música com hospitalidade. Ele sabia que a vida nada mais era que um baile, e aquela sombria melodia era a que guiava seus pés por essa dança.

Sentiu subitamente seu corpo enrijecer, sua consciência retornando à sobriedade como que emergindo de um profundo mergulho em si mesmo, quando a última nota foi tocada. Ele parou na iminência de um passo, ainda sobre a mesa do banquete. A leveza que sentia desapareceu, seu corpo, que um momento atrás parecia flutuar em uma dança sob as estrelas do solstício, sentiu o peso dos crimes recair em seus ombros novamente, e tamanho era o peso que eles o deixaram sem ar. Sua respiração vacilou, trêmula, então ele olhou por cima do ombro para a musicista sem se virar.

— Por favor – pediu, com delicadeza –, não pare de tocar.

Ela obedeceu, temendo irritá-lo. Não finalizou mais a música, reiniciando sempre que preciso para a melodia não parar. Não atrapalharia seu senhor do baile que apenas ele enxergava. Mesmo que usasse roupas simples, a qualidade das peças não deixava dúvida sobre sua nobreza. A fineza das calças, a costura da camisa parcialmente amassada para dentro. Era príncipe por direito e, agora, por conquista. Apesar disso, não usava joia alguma, nem parecia ter pressa para mover os cadáveres dos tronos e sentar-se onde merecia. As sombras pareciam segui-lo, sem nunca se aproximarem, nunca se expondo à luz das velas. A fragilidade do Véu no solstício permitia que as pobres almas permanecessem em um mundo que já não as aceitava, observando o suave regozijo de seu ingrato algoz, a fazer descaso dos corpos que deixaram na terra. Seus sussurros não chegavam aos ouvidos do Príncipe Condenado, nem suas presenças a seus olhos, mas lá estavam, à espreita.

As estrelas brilhavam mais forte aquela noite. Quando desceu da mesa, finalmente, percebeu a visita no meio do salão. Ele sorriu, caindo de joelhos no mármore frio e, curvando-se até a fronte quase tocar o chão, pôs-se genuinamente humilde como príncipe algum jamais o fez.

— Saudações, Majestade. É uma honra ser digno da visita de uma presença tão ilustre. Eu adoraria mostrar-lhe hospitalidade, se realmente estivesse aqui.

A imagem imponente da mulher o encarava sem expressão. Inspirava ainda mais respeito e dignidade do que da primeira vez que se encontraram, e aquela aura nobre encantava o Príncipe Sem Nome. Não era a nobreza de sangue, ainda que fossem da mesma família, mas de espírito. Sua mera presença o fazia sentir-se pequeno, humilde, incapaz de alcançar tamanha imagem. Os adereços de ossos que ornavam seu pescoço, mãos e orelhas se destacavam no âmbar profundo da pele, e um aro de metal escuro em sua testa, sob as tranças que caiam até sua cintura, identificava-a como a Rainha das Bruxas. Uma delas, ao menos, aquela a quem chamavam de “Rainha Noturna”. Iriszka Notera. Seus olhos enevoados deixaram o rapaz ajoelhado e perscrutaram o salão analisando quantas vidas haviam sido perdidas no lugar. Sua presença tranquilizava as sombras agitadas nas paredes do salão. A musicista ainda tocava, mesmo que seus dedos já estivessem rígidos pelo cansaço. Não parou mesmo sob o olhar da Rainha Iriszka. Pararia de tocar quando o Príncipe mandasse, e não antes.

— Levante-se – ordenou, sem aspereza e nem amabilidade. Apenas o habitual tom severo que comumente usava. Ele obedeceu. – Explique o motivo de tamanha perturbação do Curso Natural, ainda mais na noite do solstício.

Ele não segurou a gargalhada que subiu por sua garganta, preenchendo o salão acima mesmo do som da harpa. Puxou uma das cadeiras para se sentar, passando a mão pelos cabelos, afastando-os, e a Rainha Iriszka notou as lágrimas que escorriam sobre seu rosto sorridente. Uma imagem desconcertante, o sorrido residual em um rosto torturado.

— Queriam ver do que eu era capaz. Mostrei que posso escrever o destino. – Parou de rir, mas não fez questão de esconder os olhos avermelhados, mantendo-os fixos nela. Olhou para trás, na direção dos tronos. – Espero que tenham ficado satisfeitos.

Mesmo que não estivesse ali pessoalmente, a Rainha Noturna era capaz de sentir as contraditórias emoções do jovem príncipe. Raiva, tristeza, alívio, prazer, culpa, satisfação… Nunca sentira uma mente tão perdida, imersa em confusão e fervor, muito menos uma com tanto poder em suas mãos. Sem se importar com o Príncipe, que mantinha sobre ela um olhar atento, Iriszka seguiu diretamente até os tronos. Seus passos eram firmes, mas não havia ruído algum. Ela era uma imagem projetada, como aquelas dos teatros de rua, porém mais real. Ele era capaz de vê-la e de ouvir sua voz, mas a respiração, os batimentos ou mesmo o ruído de seus passos eram inexistentes. Parou diante o trono do rei, que ainda conservava todo o seu esplendor, só que agora sustentava não um imponente monarca, mas o mais comum dos corpos, irreconhecível, exceto pela coroa que permanecia intacta em sua cabeça, na qual a pele carbonizada fundira-se ao ser atingido por toda a energia lançada por seu próprio filho. Inesperadamente, Iriszka ajoelhou-se perante o rei morto, de cabeça baixa, as mãos próximas aos lábios enquanto murmurava um lamento pelo triste destino que o acometera.

A cena não apenas surpreendeu o Príncipe como também o revoltou.

— Nunca pensei que veria uma rainha bruxa se ajoelhar ante um rei humano! – disse, exasperado. Ela não respondeu de imediato, terminando com serenidade sua reza improvisada. A musicista, cujo talento permitia continuar tocando enquanto observava a cena atentamente, achou que as sombras pareciam menos agitadas após a prece. O céu noturno ainda era a presença esmagadora no átrio, mas os candelabros pareciam suficientes agora, como não eram minutos antes.

— Seu pai, devo lembrar – murmurou, finalmente. – Há muito tempo, ele já foi meu irmão, antes de se tornar o herdeiro. Ele já foi meu aliado antes de se tornar o rei. Lamento pelo destino que teve em honra a memória de quando nos conhecíamos. Eu não ignoro o bem que ele já me fez, como também não esqueço o mal. A cada um será pago o que se deve. Você deveria saber disso – respondeu, deixando claro que não aceitaria discussões sobre o assunto. – Eu não deveria tê-lo deixado crescer aqui – confessou, em tom de desculpas. – Meu sobrinho, eu deveria ter levado você para Weranse em meus braços independente do que seu pai dissesse. Esse reino nunca esteve preparado para o nosso povo. Nenhum dos sacerdotes sabiam o que estava acontecendo com você.

O Príncipe Sem Nome olhou através das grandes janelas de vidro, vendo ao longe a fortaleza onde viviam as pessoas como ele, no topo da montanha. Tão perto e tão inatingível… Weranse. A Terra das Bruxas. O reino surnul. Lembrou-se de quando a Rainha Noturna apareceu da primeira vez para conhecê-lo, não o seu sobrinho recém-nascido, já que não considerava mais nenhuma relação com aquela família, mas o filho do rei Atlas. Ele era tão pequeno que não compreendia a importância daquela figura. Ela veio acompanhada de um pequeno séquito, duas mulheres e um homem, todos bruxos, segurando grossas velas com as mãos nuas, sem nunca mostrar desconforto pela cera quente que escorria em suas mãos. As velas permitiam que viajassem para fora da montanha. Era crença comum que parte do caminho para se chegar à Weranse não era por esse mundo. As velas afastavam o nevoeiro criado pela Heptarquia que separava os dois locais. Não era possível chegar à fortaleza ou sair dela enquanto ele cercasse a montanha. Todos os dias, o Príncipe confrontava aquela vista, tendo cada vez mais certeza de ter nascido do lado errado da nevoeiro.

— Deveria… – A voz saiu como um sussurro. Tanta coisa pela qual fora forçado a passar, na tentativa de reprimir algo que não era mais do que a sua natureza. A iminência do retorno das lágrimas fez seus olhos arderem, mas ele não choraria mais pelo que fizera àquelas pessoas ou pelo que lhe haviam feito. Não eram nada para merecerem suas lágrimas. Assim como faziam as bruxas, seu povo, cortando relações com aqueles que não as aceitavam, ele faria também. Não devia chorar pelos seus crimes. Nenhum daqueles corpos pertencia à sua família, mesmo que tivesse nascido deles. Ele não tinha família, não de verdade.

— Depois que ajudei seu pai, alguns anos antes da coroação, e o avisei sobre a previsão que fiz do seu nascimento, pensei que tinha feito ele entender o que somos. Mas os homens enxergam apenas o que querem. Não se engane, meu sobrinho, eles odeiam os mágicos, mas não a magia. Somos bem tratados quando somos necessários. – Iriszka ainda se lembrava do olhar confuso daquele que já fora seu irmão, quando informou o aviso das estrelas sobre a criança extraordinária que nasceria da união entre o rei e sua primeira esposa. Uma criança de poder formidável, que poderia mudar o mundo para sempre. As estrelas não mostravam o futuro. Elas mostravam as linhas do destino, que se modificavam o tempo todo. Quando ele nascera, as estrelas mostravam uma infinidade de caminhos, mas, com o passar do tempo, Iriszka percebeu que os destinos admiráveis fechavam as portas para o jovem príncipe conforme ele crescia. Agora ela encarava com pesar o que aquela criança se tornara por ter nascido em um lar despreparado para tamanha incumbência. – Mesmo assim, seu pai foi um rei mais tolerante do que os que o precederam.

— Tolerante? – riu, duvidoso. – E por que ele nunca nem mesmo me disse seu nome?

— Meu antigo nome foi queimado, e seu pai se recusou a aprender o novo. Foi quando deixamos de ser irmãos. Mas ele fez mais esforços para aceitar bruxas em Muhrander do que os demais reinos. Lamentavelmente, ele entendeu tudo errado. As pessoas sempre atribuem significados onde não há nenhum. Entenderam que havia algo de Bem e Mal diferenciando Bruxos da Luz dos Bruxos das Trevas. Você era uma criança da Luz, e, quando eu apareci para levá-lo, ele teve medo que eu, uma Bruxa das Trevas, o corrompesse de alguma forma.

A crença era antiga, muito mais antiga que o reinado de Atlas. Os que não conheciam a magia achavam que se tratava de um conflito. Bruxas da Luz eram boas, bruxas das Trevas eram más. Os humanos não compreendiam que a diferenciação era apenas quanto a fonte de energia e a afinidade com certas magias específicas. A conduta de uma bruxa, assim como a de um humano, dependia apenas de seu caráter.

Ouvindo-a falar, o jovem príncipe sentia fervilhar a raiva dentro de si.

— Por que você aceitou? – Seu tom contido evidenciava todo o ressentimento. – Por que deixou que eles decidissem sobre a minha vida? Por que nunca voltou? Você pensou em mim em algum momento durante esses anos? Você tem alguma noção de tudo pelo que eles me fizeram passar?… – Ele questionou, a voz vacilando. Mesmo que tivesse decidido não chorar mais, o ressentimento não desaparecera, nem era fácil de controlar, e as lágrimas voltaram, mas seu rosto ainda encarava a Rainha, impassível, vazio, o único sinal de sua angústia eram as lágrimas que abriam rios em um rosto aparentemente calmo.

Ela não respondeu. Não havia resposta que justificasse, tê-lo deixado em um reino humano era um erro que ela reconhecia. E sim, ela sabia pelo que ele tinha passado, pois passara pelo mesmo; justamente por isso, não deveria ter seguido com sua vida e esquecido aquela criança ali. Muitos erros foram cometidos, mas ainda havia tempo de repará-los.

— Ajoelhe-se aqui comigo – pediu. No momento, o mais importante era tranquilizar as sombras que o rondavam antes que aqueles fantasmas encontrassem um lar naquele coração cheio de mágoas. As emoções do jovem príncipe não estavam nem perto do equilíbrio, e as sombras ressentidas se aproveitariam disso ao máximo. Tudo o que Iriszka queria era que ele entendesse a importância do Curso Natural. Os ataques usados pelo Príncipe se aproximavam muito de magia corruptiva, e ela temia que essa forma específica de magia fosse tentadora demais para o jovem. – Eu lamento por todos os erros que cometi e por não ter lhe tirado daqui, mas ainda não é tarde. Não pude lhe ensinar devidamente, mas…

— Me ensinar? – questionou, rasgando um tom amargo pela ofensa. Por um instante, tornara-se cego para a majestade à sua frente, enxergando apenas mais uma pessoa que virara-lhe às costas e agora, que vira seu poder, tentava se mostrar uma aliada. – Você não entendeu. Eu não preciso mais de uma mestra. Eu precisava antes, quando você não estava aqui. – As palavras eram cortantes, mas o rosto dela permanecia tão impassível e severo quanto quando surgira no salão. Lamentava que suas ações tivessem ferido aquela criança, mas não receberia a culpa de um massacre que fora simplesmente escolha dele. O Príncipe deu um riso curto e amargo: – Aliás, você nem está aqui agora. Não achou que valia a pena sair do seu domínio? – Ela fez menção de responder, mas o Príncipe não lhe deu tempo. – Eu garanto a Vossa Majestade: Não precisa se preocupar com meu aprendizado. Eu aprendi bem tudo o que preciso.

Iriszka suspirou, o único sinal de impaciência.

— Não duvido do seu talento, garoto, mas lhe falta a teoria. Você não aprendeu sobre o Curso Natural, ou sobre a Magia Fluida. O poder você tem, e bastante, mas não aprendeu a ter o discernimento de quando usá-lo ou não. Principalmente, você não aprendeu sobre responsabilidade, dever e consequências…

— Consequências! – Ele riu, estendendo o braço na direção dos tronos carbonizados. – Aqui estão as consequências, ninguém jamais vai me provocar novamente. Ninguém jamais vai me ferir ou me contrariar. O que mais houver, não me importa!

— Por favor, eu imploro para que venha comigo. – Pela primeira vez, ela demonstrou receio. O futuro daquele rapaz se tornava cada vez mais nebuloso, mas ainda existia uma alternativa. – Não feche a última porta que lhe foi oferecida. Você ainda pode alcançar o destino que nasceu para ter.

O jovem príncipe não respondeu de imediato, e o silêncio pensativo fez Iriszka ter esperança. Até que ele moveu os olhos para encará-la e sussurrou:

— Eu acho que você deveria ir embora.

— Você precisa entender…

— Eu entendo, tia. – Ele abandonara toda a reverência. Seu tom defensivo pingava veneno em cada palavra. Ele próprio era uma mente envenenada. – Você viu do que eu sou capaz, e quer que eu vá com você, me rebaixar a um aprendiz ou iniciado, para que você possa controlar o meu poder. Você é igual a eles.

Iriszka sentia profunda mágoa vinda daquele coração. Com surpresa, percebeu que o Príncipe Sem Nome a odiava. Um ódio ressentido, pulsante e, acima de tudo, acusatório. O jovem príncipe tinha realizado um massacre, mas não conseguia aceitar que seus crimes tinham sido sua escolha. Não, o abandono da Rainha o levara a isso. Tudo teria sido diferente se ela o tivesse acolhido. O Príncipe nunca teria manchado o salão da sua família com o sangue de seus próprios pais. Ele não estaria condenado se não fosse por ela. Era tudo culpa dela.

Tudo culpa dela…

Tudo culpa dela…

Tudo culpa dela…

Enquanto sentia o olhar rancoroso do Príncipe sobre si, Iriszka quase conseguia ouvir sua mente acusá-la pelos crimes que ele mesmo cometera. Então ela percebeu que o ambiente reverberava com uma estranha energia. Os candelabros haviam se apagado sem que percebesse, e as sombras imperavam no local. As sombras inquietas, vítimas do Príncipe, e elas sussurravam e incentivavam nele os pensamentos sobre a suposta culpa da Rainha Noturna, rodeando-o como parasitas. Se Iriszka estivesse no lugar, o murmúrio de uma palavra bastaria para acender o fogo e afastar as sombras, mas isso nada adiantaria agora; a ideia já fora plantada, e nada era melhor para um criminoso do que ter outro a quem culpar.

Levantando-se de onde estava ajoelhada, Iriszka recuou devagar ao centro do salão, seguida pelo olhar furioso do rapaz e das sombras que o cercavam.

— Eu vou perguntar novamente…

— Não se incomode. Você é como eles, eu não a seguiria jamais!

Através do átrio de vidro, Iriszka olhou para as estrelas, constatando com tristeza o que elas lhe mostravam. A alternativa havia se fechado. Para o Príncipe Condenado, restava apenas um caminho, escolhido e selado por ele mesmo.

— O destino que você escolheu não será agradável para nenhum de nós, garoto… Mas quero que saiba que, assim como os seus, meus erros também serão cobrados. As estrelas mostram que meu destino será igual ao seu.

Os olhos dele brilharam com arrogância e malícia, e o Príncipe se levantou, caminhando até ficar cara a cara com a Rainha Noturna.

— Eles queriam saber do que eu era capaz, e eu mostrei para eles que podia escrever o destino. Eu vou mostrar para você também – articulou, em um tom contido. – Seu destino, tia, será bem pior do que o meu. Não dizem que a Luz é sempre mais forte que as Trevas?

Com um olhar condescendente, do tipo que se dirige a uma criança, ela balançou a cabeça.

— Sua Luz contra minhas Trevas? É como acender um fósforo contra a imensidão da noite. Fique com suas sombras.

E com essa despedida, a imagem de Iriszka tremeluziu e desapareceu.

A musicista ainda tocava a melodia em sua harpa, a muito custo, mas o prazer do Príncipe pela dança o abandonara. Ela não conseguiu evitar tremer ao perceber o sombrio senhor se aproximar. E pensar que há muito tempo eles passavam quase todas as tardes juntos. Ainda conseguia ver, caso se esforçasse, a silhueta leve e descontraída de quem um dia fora seu melhor amigo.

A constatação a assustou. Ele fora o seu melhor amigo, há muitos anos. Era mesmo ele, mas não mais como ela o conhecia.

O Príncipe se ajoelhou ao seu lado e segurou suas mãos, fazendo-a tremer e interromper a música. O silêncio completo era ainda pior. O Príncipe beijou suas mãos com delicadeza e incompreensível gratidão.

— Muito obrigado pelo belo concerto – falou com sinceridade, olhando-a nos olhos. – Agora vá embora.

Ele não precisava pedir duas vezes. Ela se desvencilhou de suas mãos e correu para a saída, como se seu corpo tivesse despertado apenas agora de um estranho torpor. Seus passos ecoaram no chão de mármore até que o som desapareceu. O Príncipe se levantou e tomou o lugar dela na harpa, dedilhando a mesma música de antes, em um ritmo ainda mais lento e melancólico. Ele se sentia sozinho, mas não estava.

Entretido pela melodia, o Príncipe não percebeu os candelabros apagando-se um a um pelo corredor, as sombras aproximando-se cada vez mais. Ao fim, ele estava imerso nas sombras, fantasmas de olhos vazios que o observavam, vozes que lhe sussurravam, mãos que executavam a melodia junto com ele, sem nunca serem percebidas.

Em sua mente e em seu coração, tudo o que existia era aquela sala, aquele mundo, habitado apenas por ele e por suas sombras. Um mundo vazio.

Não.

Não, e era impossível saber se esses eram seus pensamentos ou os sussurros das vozes inaudíveis.

Não era um mundo vazio. Em algum lugar, além daquela sala escura, havia a Rainha das Bruxas em seu trono. Naquele momento, o Príncipe soube, ele se convenceu de que precisava cumprir com sua palavra.

Porque além dele e das sombras, só existia a Rainha das Bruxas. Ela, que era responsável por toda aquela escuridão. Mas a Rainha das Bruxas logo veria do que ele era capaz, pois, ao fim, restaria apenas ele dos dois.

E, então, o Príncipe conseguiria voltar a um mundo onde existia luz.

 

Não o "FIM"


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

A história é uma oneshot, essa frase aí só quer dizer que a cena tá no meio de uma sequência maior. Mas >essa< história só tem um cap.
Para quem chegou aqui já tendo lido os outros contos, algumas curiosidades:
— Muhrander fica no continente de Opis, separado de Teris por uma cordilheira, não por mar. É como Europa e Ásia.
— Essa história é 3 anos antes de "Desarranjado". Não tem relação, mas é para ajudar a situar no tempo kkkkk
— Iriszka é a vidente que eu mencionei em algumas das notas de "Desarranjado".
— Existe razão para o Príncipe não ter um nome... mas a razão ainda acontecerá no futuro XD Uma dica está em "O Que Dizem de Nós", mas não se preocupem com isso, não tem como associar ainda.