O Despertar Infernal- Interativa escrita por Lady L


Capítulo 13
XIII- Os Olhos dos Santos


Notas iniciais do capítulo

Olá! Novamente um pouco atrasada. Estou até pensando em tornar sábado o dia oficial de postagem, o que acham? Boa leitura :)



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09 de Dezembro de 2022; Ouro Preto, Minas Gerais

 

                                                       Antônio->

 

Eu estava me afogando em magnificência.

Talvez seja dramático falar assim, mas eu estava simplesmente no lugar mais idílico que meus olhos poderiam contemplar, muito além de qualquer sonho ou devaneio que minha mente sonhadora poderia conjurar.

—Pelos deuses, Cat, como nunca viemos a esse lugar antes?- eu exclamei, olhando para os detalhes ricos e intrincados da catedral, abobalhado com a beleza daquela arquitetura.

—É uma igreja muito bonita- Cat concordou- Mas o mais adorável é o quanto ela te deixou empolgado.

Senti meu rosto esquentar, e desviei os olhos dos arabescos rococó para encarar minha namorada.

Cat vestia uma camiseta lilás e calças jeans de lavagem clara. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto, e ela estourava bolhas de chiclete azulado conforme caminhava pela nave da catedral, observando os detalhes em ouro das estátuas, enquanto remexia as mãos com alguma inquietação.

—Talvez devêssemos nos focar na missão- eu comentei, ao perceber que já estávamos ali há mais de meia hora e não havíamos achado nada de útil- Eu posso ter me distraído demais falando sobre a arquitetura.

Cat riu.

—Só um pouco, mas não se preocupe, eu acho uma graça- ela garantiu, e se aproximou de mim, plantando um beijo em minha bochecha- Mas concordo, é melhor terminarmos de procurar e sairmos daqui antes que eu roube alguma coisa.

Eu me peguei rindo, apesar de saber que a brincadeira dela tinha um fundo grande até demais de verdade. Uma imagem mental da polícia nos perseguindo, enquanto Cat tentava correr e esconder uma estátua de um santo na mochila, passou por minha mente. Foi preocupante o suficiente para me motivar a segurar as mãos dela, para guiá-la até a próxima ala da igreja. E também para ter certeza de que elas estariam bem longe do ouro.

A nova ala da igreja era cheia de estátuas e imagens, e não tinha mais os bancos de madeira onde algumas pessoas estavam rezando, como na sala anterior. Os olhos dos Santos pareciam piedosos, mas também estranhamente condescendentes. Como se soubessem, de alguma maneira, de nossa busca incansável naquela cidade, e já anunciassem nosso fracasso.

—Não estou gostando desse lugar- Cat comentou- As estátuas são estranhas, e o cabelo delas parece ser... humano?

Eu fiz uma careta.

—É porque é cabelo humano mesmo- eu expliquei, e Cat arregalou os olhos- Os fiéis cortavam o próprio cabelo e doavam para a Igreja. Principalmente os que não podiam pagar o dízimo, como forma de penitência.

—A salvação de sua alma imortal sempre vem tachada com um preço, afinal- Cat comentou, com um tom ligeiramente irônico, caminhando lentamente por entre as estatuetas enquanto remexia as mãos nas costas. Eu ainda achava um pouco estranho como ela era capaz de observações tão cortantes e repentinas, mesmo após anos de relacionamento, e sempre me pegava surpreso por seus momentos de perspicácia que escapavam do temperamento normalmente açucarado - Acho que não tem nada por aqui, Tony. Essa catedral parece tão vazia quanto a anterior.

Eu assenti. Já eram quase onze horas da manhã, e nós estávamos rondando de catedral em catedral desde as sete e meia. Não havíamos encontrado nada interessante, exceto pela arquitetura maravilhosa, que talvez tenha consumido mais do nosso tempo do que gostaríamos.

Estávamos prestes a sair daquela sala, quando, pelo canto do meu olho, eu vi um vulto.

—Cat!- eu chamei, cutucando seu ombro, e ela se virou na direção que eu indiquei- Olhe!

Um espectro translúcido e raivoso estava assentado por entre as estátuas, resmungando. Tinha o aspecto de um homem pardo, de cabelos pretos e baixa estatura. Suas roupas estavam destruídas, mas tinham um aspecto antigo, do final do século XVII ou início do XVIII, eu supus.

—Olhe o que fizeram com minhas estátuas!- o espectro murmurou, analisando uma imagem de Nossa Senhora, com uma careta- Restauradores terríveis! Oh, como odeio esses mortais pretensiosos!

Eu reparei que suas pernas pareciam magras e retorcidas, e ele se locomovia sobre seus joelhos. Eu tinha certeza de que eu deveria saber quem ele era, afinal, eu passara toda a noite anterior estudando a história daquela cidade para não ser pego de supresa por nada, mas minha memória falhou logo naquele momento decisivo.

Foi tão somente quando ele ergueu a mão direita para tocar o rosto da estátua que eu reparei que alguns de seus dedos estavam faltando, e me dei conta de sua identidade.

—Aleijadinho- eu murmurei, e apenas então o espectro pareceu notar a minha presença e a de Cat.

—Eu tenho um nome, sabia?- o espectro se virou em minha direção, uma sobrancelha arqueada- Antônio Francisco Lisboa, mortal! Aliás, é você o tal restaurador? Olhe que porqueira você fez com as minhas estátuas! Vocês desse século são mesmo uns frescos, não usam as melhores tintas só porque elas tem um tiquinho de chumbo ou de mercúrio, um absurdo!

Cat, ao meu lado, conteve uma risadinha, mas eu estava um pouco preocupado com a reação do espectro.

—Não sou o restaurador- eu garanti- Meu nome também é Antônio, Senhor Lisboa. Sou um grande fã de seu trabalho, é mesmo uma pena que ele tenha ficado nas mãos de pessoas tão incompetentes.

Eu genuinamente não sabia onde ele estava encontrando defeito nas estátuas, que me pareciam magníficas, mas decidi entrar em suas divagações.

O espectro me olhou, desconfiado,  e então flutuou em minha direção.

—Você não está mentindo para mim, está, Antônio?- ele me olhou no fundo dos olhos, e eu pude ver a morte em seu olhar, espreitando por detrás dos globos frios e leitosos- Não sou um homem que aprecia falsas lisonjas.

Eu me peguei um pouco paralisado. Era como se aquele espectro estivesse encarando o fundo da minha alma, e, por um segundo, eu congelei, com um arrepio intenso e agourento passando por meu corpo.

—Senhor Lisboa- Cat chamou, desviando a atenção do espectro para si, o que imediatamente me libertou daquela espécie de transe no qual ele me colocara- Eu sou Catarina, é um prazer conhecer o senhor.

Cat sorriu, simpática, e o espectro continuou a encarando, desconfiado.

—Não entendo muito de arte- Cat prosseguiu falando- Mas dá para ver que as tintas estão mesmo em um tom forte demais para o restante da obra. O vermelho está claro demais, brigando com o dourado. E a cor dos olhos parece deslocada. Talvez fossem de uma cor diferente antes da restauração? Enfim, só estou dizendo que entendemos sua preocupação, e que as estátuas certamente eram mais belas quando o senhor as fez.

O espectro fez uma expressão satisfeita, quase envaidecida.

—Bem, você tem razão- ele flutuou para mais perto das estátuas- Eles mudaram vários dos detalhes mais belos. E a cor dos olhos era mesmo diferente. Costumavam ser castanhos, como os de Narcisa, mas eles pintaram de azul. Um sacrilégio!

Cat assentiu enfaticamente, se aproximando do espectro. O que, em nome dos deuses, ela estava fazendo?

—Sabe, nós poderíamos ajudar o senhor a restaurar essas estátuas para como elas eram antes- ela propôs, e o espectro a encarou, interessado.

—Mas como, senhorita Catarina?- ele perguntou- Não tenho tintas, pincéis, ou qualquer tipo de equipamento, e só posso assombrar lugares onde minhas obras estão, então não posso ir buscá-los. Como restauraria as estátuas de mãos vazias?

—É aí que nós entramos. Podemos buscar os materiais na sala de restauração para o senhor- ela propôs- Se os trouxermos, acha que consegue usá-los?

O espectro assentiu.

—Posso me solidificar por tempo o suficiente para consertar os erros mais esdrúxulos- ele concordou- Isso me daria alguns séculos de paz

Cat então sorriu, animada.

—Ótimo! Logo voltamos com o equipamento!- ela disse, e saiu da sala. Eu a segui, mesmo sem saber o que ela planejava.

—O que você está fazendo?- eu questionei, assim que nos vimos longe do alcance do espectro.

Cat deu um sorrisinho travesso.

—Indo roubar algum equipamento, achei que isso tinha ficado claro- ela replicou, ainda andando pela igreja.

—Sim, eu entendi- respondi- Mas por que?

Ela parou, olhando para trás para me encarar.

—Nós precisamos descobrir a localização das Correntes de Prometeu, e algo me diz que esse espectro pode saber algo útil. Mas duvido que ele falaria sem ganhar algo em troca. Temperamento difícil demais- ela respondeu, e eu me peguei novamente surpreso com a sagacidade de minha namorada.

Eu poderia ter todo o conhecimento acadêmico do mundo, mas com frequência me esquecia que haviam outros tipos de inteligência, tipos que Cat tinha de sobra.

—Bem, você tem alguma ideia de onde fica a sala de restauração?- eu perguntei, e Cat fez uma expressão um pouco confusa.

—Eu pensei que você saberia. Você adora museus, igrejas e coisas do tipo- ela replicou, e eu me peguei fazendo uma careta.

—Bem, eu nunca invadi a ala restrita de lugar nenhum antes- eu murmurei, e Cat deu uma risada.

—Tem uma primeira vez para tudo. Vamos lá, precisamos achar uma porta escrita “não entre” ou algo assim.

Nós caminhamos por um tempo, despistando os turistas, fingindo que estávamos prestando atenção na decoração ou nas estátuas, até que Cat me puxou pela manga da blusa, apontando para uma porta bloqueada por uma faixa no canto de uma parede.

—Eu acho que é ali- ela disse, e eu concordei.

—Como vamos fazer isso?- perguntei- Você entra e eu vigio a porta?

Cat pareceu pensar por um segundo, e então assentiu.

—Parece uma boa! Se alguém tentar entrar, o mantenha distraído com alguns fatos históricos ou algo assim. Confio em você e em suas curiosidades infindáveis!- ela respondeu.

Eu ri.

—Pode deixar. Boa sorte, vai dar tudo certo- eu disse, dando um beijo em sua testa. Cat ajeitou o rabo de cavalo, e então abriu a porta lenta e silenciosamente.

—Claro que vai! Até mais tarde, garoto coruja!- e então desapareceu na escuridão.

Cinco minutos se passaram, e os turistas continuavam a passar direto por mim, e ninguém da equipe de segurança da igreja parecia sequer notar minha presença. Eu estava fingindo que observava uma estátua, quando vi um guia se aproximar da porta por onde Cat havia entrado.

“Droga”- eu pensei, caminhando em direção ao homem- “Vamos lá, Tony, pense em alguma coisa!”

—Com licença- eu chamei, e o homem se virou para mim segundos antes que pudesse pousar a mão na maçaneta- Você é guia turístico, certo? Eu estava precisando de algumas explicações, se puder me ajudar.

O guia parecia ter por volta de vinte e cinco anos, e uma expressão exausta no rosto. O crachá em sua camisa informava seu nome: “Matheus”.

—Na verdade, agora é meu horário de almoço- o guia murmurou, em um tom cansado- Mas, se não for nada demorado, posso ajudar.

Eu forcei um sorriso, apesar da má vontade de Matheus.

—Eu só queria saber quem esculpiu aquela estátua- eu perguntei, apontando para um santo qualquer. Matheus deu um suspiro cansado.

—A maioria das obras dessa catedral são atribuídas a Aleijadinho, senhor- ele disse- Espero ter respondido sua dúvida.

Ele estendeu a mão para porta de novo, mas eu novamente o interrompi.

—Eu achava que artistas barrocos não assinassem suas obras, sobretudo as sacras- comentei, e senti que Matheus se segurava para não revirar os olhos, mas ele novamente virou as costas para a porta para me responder.

—Não assinam, e isso torna a identificação de autoria muito difícil. Mas as qualidades artísticas e o período de produção levam a crer que a maioria foi esculpida por Aleijadinho- ele replicou, mas eu tinha de mantê-lo falando.

—Ele tinha uma doença degenerativa, certo? Como continuava esculpindo mesmo sem dedos nas mãos e pés?- eu interpelei, e Matheus suspirou.

—Não se sabe, senhor. É especulado que ele usasse a boca e ferramentas adaptadas para ajudá-lo, mas também alguns historiadores supõem que ele poderia ter contado com a ajuda de terceiros- Matheus respondeu, e eu estava prestes a lançar mais uma pergunta, quando vi Cat se esgueirando para fora da porta. Ela me lançou uma piscadela, e então deu a volta em Matheus silenciosamente, para parecer que estava chegando de uma outra ala da igreja.

—Tony, querido?- ela chamou, e Matheus pareceu aliviado em vê-la interrompendo nosso diálogo- Eu já disse para você parar de incomodar os guias. Pobrezinho dele, já está na hora da pausa do almoço.

Eu contive uma risada, e assenti gravemente.

—Sinto muito, Matheus, e obrigada por seu tempo- eu finalmente libertei o guia, e ele pareceu tão aliviado que eu me peguei rindo baixinho.

—Matheus, certo?- Cat chamou, estendendo a ele uma nota de vinte reais- Obrigada por seu tempo, e peço desculpas pelo inconveniente.

Matheus sorriu, um pouco sem graça. Talvez por ter sido tão mal-humorado comigo sem necessidade.

—Eu quem agradeço- ele respondeu, pegando a nota e a guardando no bolso antes de entrar pela porta da área de funcionários.

—Ufa, essa foi por pouco!- Cat comentou, conforme caminhávamos de volta à ala onde havíamos avistado o espectro.

—Foi mesmo- eu concordei. Então, notei uma nota de vinte reais enrolada e enfiada atrás da orelha da Cat- Não acredito que você pegou o dinheiro de volta!

Cat riu.

—O cara foi um baita de um babaca com você, óbvio que eu não confiaria meu lindíssimo mico leão dourado a ele- ela comentou, tirando a nota de detrás da orelha e mostrando o pequeno macaco nela desenhada- Me agradeça por ser tão econômica mais tarde, agora precisamos lidar com um espectro.

Eu soltei uma gargalha, e nós novamente adentramos a ala onde havíamos visto o fantasma.

—Finalmente!- o espectro murmurou- Achei que tivessem sido presos.

Cat riu.

—Jamais, Senhor Lisboa. Aqui está sua tinta!- ela respondeu, abrindo a mochila e colocando os equipamentos aos pés do fantasma.

Pela primeira vez, eu vi o espectro sorrir, parecendo genuinamente animado, sem nenhum traço de raiva ou preocupação em seu rosto.

—Não tenho palavras para te agradecer, Senhorita Catarina!- ele exclamou, fazendo as tintas levitarem até ele- Se tiver qualquer coisa que posso fazer para retribuir, não hesite em pedir.

Cat deu um sorrisinho, e então disse:

—Na verdade, tem uma pequena informação que estamos precisando, se o senhor puder nos contar- ela respondeu.

—Claro que posso! Qual sua pergunta, minha jovem?- o espectro respondeu, se aproximando de nós.

—Nós estamos procurando pelas Correntes de Prometeu- eu respondi, e o espectro imediatamente fechou a expressão- O senhor sabe algo sobre elas?

—Não sei o que duas crianças querem com um artefato tão maldito- ele respondeu gravemente- Mas, já que me ajudaram, me vejo na obrigação de ajudá-los também. Não tenho certeza de onde estão agora, mas, da última vez que tomei notícia, elas estavam na Casa dos Contos, em posse de um outro homem morto chamado Cláudio.

Cat sorriu, e eu anotei mentalmente o nome do lugar.

—Muito obrigada, Senhor Lisboa!- ela agradeceu- Vamos deixá-lo com sua restauração agora, mas voltaremos mais tarde para apreciar o resultado.

O espectro voltou a sorrir, e se despediu de nós.

Contudo, conforme caminhávamos até a saída, ouvimos sua voz nos chamando.

—Jovens semideuses?- ele disse, e nós nos viramos para encará-los- Se vocês são mesmo quem eu penso que são, tomem muito cuidado. O caminho que os aguarda é muito mais perigoso do que podem imaginar, e o destino não costuma ter misericórdia com aqueles escolhidos pelos deuses.

Um arrepio passou por minha espinha, e Cat apertou minha mão, assustada.

—Nós teremos cuidado- eu respondi- E vamos fazer nosso melhor para salvar o mundo.

O espectro riu.

—O mundo já está perdido, meu jovem. Agora me deixem pintar, se vamos ser consumidos pelas trevas, que ao menos seja de maneira bela.

Nós saímos da catedral, confusos e assustados.

—O que acha que ele quis dizer com aquilo?- Cat perguntou, os olhos arregalados.

—Eu não sei- eu respondi, conforme caminhávamos pelas ruas de pedra- Mas ele é apenas um espírito velho e amargurado, querida, não deveríamos lhe dar ouvidos.

Cat assentiu, embora sem muita convicção.

—É... não deveríamos lhe dar ouvidos- então, mudando a expressão novamente para sua animação habitual, ela disse:- Já está na hora do almoço. Quer ver se achamos algum restaurante legal? Sexta-feira é dia de feijoada.

Eu senti meu estômago roncando, e acabei sorrindo e assentindo.

—Vamos lá- eu concordei- Não podemos salvar o mundo de barriga vazia.

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenhas gostado, vejo vocês nos comentários!