Cassandra->

06 de  Dezembro de 2022; Chalé de Hécate, Acampamento Meio-Sangue

Eu sempre fui o tipo de pessoa que teve sonhos esquisitos, sabe? Mas aquilo estava passando um pouquinho dos limites.

A última vez que eu havia sentido o fogo das profundezas do inferno acariciando as minhas pernas, foi por causa de um ritual que saiu um pouquinho do controle. Um pouquinho muito. Tudo bem, foi por causa de um ritual extremamente complexo que eu fiz aos quatorze anos para impressionar Catarina, mesmo sem saber pintar meu próprio cabelo com magia direito sem manchar as raízes.

Mas o presente sonho veio completamente sem aviso, sem motivação e sem controle.

Eu estava sozinha, parada em uma caverna ampla e abafada, que se estendia até onde minha vista alcançava. O ar cheirava a enxofre e cinzas, e era quente e denso, quase que se agarrando à minha pele, se impregnando para dentro dos meus ossos. Minhas pernas pareciam pesadas, aderidas aos solo lamacento e avermelhado, e eu mal conseguia me mover, meu corpo todo parecia ser feito de chumbo. Sons difusos de gritos e grunhidos podiam ser ouvidos ao longe, mas era quase impossível escutá-los por detrás do ruído do meu coração completamente disparado.

Com um horror crescente e agudo, eu comecei a tomar consciência de uma presença atrás de mim, poderosa e grave. Eu não tinha coragem para me virar e encará-la, mas eu podia sentir aquela criatura estranha me observando, seus olhos queimando em minha nuca, suas mãos se estendendo para me alcançar, cruéis e afiadas.

Acordei de repente, suada e ofegante, antes que aquela presença maléfica pudesse me tocar. Me assentei rapidamente em minha cama, e procurei pelas runas de proteção que eu havia bordado em meu travesseiro, um pouco confusa sobre o motivo delas terem aparentemente falhado. Elas brilhavam em meio à escuridão, azuis e intensas, e eu percebi que elas tinham funcionado sim, mas simplesmente não eram páreo para o poder de quem quer que estivesse me observando naquela caverna terrível. E elas eram um dos meus melhores feitiços de proteção.

Corri para fora do meu quarto, indo até a biblioteca do chalé. O relógio na parede marcava as três e meia da manhã, mas eu já esperava encontrar algum dos meus irmãos estudando feitiços na madrugada. O da vez era Felipe, embora a caneca de Amanda também estivesse em uma das bancadas, então eu presumi que ela poderia voltar a qualquer momento.

Éramos ao todo cinco integrantes no chalé de Hécate, e revelava muito sobre nossos péssimos hábitos de sono que, desses cinco, três estivessem acordados no meio da madrugada.

Felipe ergueu os olhos ligeiramente vidrados do livro de feitiços, me encarando com uma sobrancelha arqueada.

—Você está péssima- ele disse, antes de voltar a ler o que estava escrito na página.

Ele provavelmente estava certo, eu só podia imaginar o quanto o meu cabelo azul estava embaraçado.

—Muito obrigada, Lipe, é sempre bom poder contar com seu carinho e compreensão- eu repliquei, o empurrando um pouco para ver do que se tratava o livro que ele lia. Feitiços relacionados à Névoa. Não era disso que eu precisava- Viu o livro sobre feitiços dos sonhos?

—Amanda estava com ele, mas ela foi para cozinha fazer um lanche- ele respondeu, sem tirar os olhos do livro.

—Obrigada- eu respondi, já disparando em direção à cozinha. Porém, parei na porta da biblioteca antes, encarando a postura cansada do meu irmão, e pensando que não me lembrava de tê-lo visto dormindo nos últimos dias- Incantare: Somnus Eademque.

Felipe imediatamente despencou em cima do livro, caindo em um sono profundo. Acho que ele estava precisando, e aquele era um feitiço simples. Quando eu terminasse com o livro, eu o colocaria para dormir no sofá, pra evitar um torcicolo.

A maioria de nós, filhos de Hécate, éramos bastante parecidos. Altos e esguios, com cabelos e olhos naturalmente escuros, mas Amanda era loira. Eu nunca consegui descobrir se o cabelo dela realmente era daquele jeito ou se fora tingido com um feitiço muito bem feito.

—Cassie?- ela pareceu supresa ao me ver, e se jogou da bancada, onde estava assentada, comendo um sanduíche com o livro aberto no colo- Acordada a essa hora? Achei que você estava tentando melhorar sua rotina de sono...

—Tive um sonho estranho. Muito estranho.- eu expliquei, me aproximando dela- Pode me emprestar esse livro por alguns minutos? É importante.

—Claro- ela disse, me entregando o livro- Já que está acordada, quer um sanduíche?

—Seria ótimo, obrigada- eu concordei, me assentando na mesa da cozinha.

Eu encontrei a página que procurava na mesma hora que meu sanduíche ficou pronto. Pasta de amendoim e geleia. Mania da Amanda, uma mania que sempre me fazia me sentir gringa.

E lá estava o trecho do qual eu precisava. O trecho que eu temia ler.

“As runas de proteção avançada são capazes de repelir investidas de toda espécie de criatura, e da maioria dos deuses menores, mas podem ser pouco efetivas contra deuses poderosos, sobretudo os Olimpianos e os Titãs”

Eu mordi meu sanduíche, mas o senti agarrando em minha garganta. Aquilo me deixou mais assustada do que eu gostaria de admitir. Porque, o que quer que fosse, a criatura que invadiu meu sonho era poderosa. Extremamente poderosa e antiga, e cheia de ódio e de fome.

—Eu preciso falar com Amélia- eu disse a Amanda, provavelmente soando mais assustada do que eu gostaria- Agora.

—Mas é o meio da madrugada- Amanda disse, me seguindo até a entrada, onde eu peguei meu casaco.

—Coloque Felipe para dormir no sofá. E não me espere acordada- eu disse, saindo pela porta para a escuridão da noite e correndo pelo pátio vazio até o templo do Oráculo.

Eu só não esperava encontrar Amélia já de pé, tentando acalmar os ânimos de outros oito campistas. Todos eles reclamando de um sonho estranho. O que, em nome dos deuses, estava acontecendo?