A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 7
Um Tiro no Escuro




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Aproveito que Caim está descansando em seu quarto e desço para conversar com Nádia, sua misteriosa governanta. Só havia ouvido menções de sua presença, nunca a visto de fato. Com passos delicados e ágeis, chego sorrateiramente na cozinha e observo a mulher preparando o almoço. Os cabelos loiros presos em uma trança firme, seu vestido azul marinho termina nos joelhos, as mangas compridas estão dobradas até o cotovelo para melhorar a mobilidade enquanto cozinha. Um laço se destaca na parte de trás, feito para segurar o avental branco em sua cintura.  

Nádia parece distraída em sua tarefa ao mesmo tempo em que cantarola uma canção, sinto que a reconheço e fecho os olhos tentando me lembrar exatamente de onde. Me concentro em sua melodia, mas sempre que tento formar uma frase, é como se as palavras fugissem do raciocínio.

— Que música é essa? - pergunto rendida, me aproximando da mulher. 

Havia esquecido que não me apresentei ainda, a governanta que está na ponta dos pés retirando uma travessa de vidro do armário se assusta com minha súbita presença. Seu descuido faz com que o objeto escape de suas mãos e caia no chão, o impacto gera um barulho estrondoso e vários pedaços de vidro se espalham pelo ambiente. Assim que se vira para olhar o estrago, e a pessoa culpada pelo seu espanto, Nádia solta um pedido de desculpas pela desatenção. Ela é bonita, deve estar no auge dos seus trinta anos, a estatura baixa e esguia junto aos traços delicados lhe concediam uma aparência adorável.

— Não foi sua culpa – a tranquilizo. - Devia ter falado algo quando cheguei.

— Bom, nisso você tem razão - ela desvia o olhar para o chão, receosa em manter contato visual. As mãos inquietas, está nervosa. - Será você a responsável em explicar para Caim o porquê do objeto quebrado.

— Que tipo de relação ele mantêm nesta casa? - Me aproximo e completo: - Nádia, sabe que não é obrigada a ficar aqui, não é? Eu posso ajudá-la...

— Ninguém pode me ajudar, devo servir a Caim como dívida - uma lágrima escorre no canto do seu olho.

Ouço Caim gargalhar atrás de mim, em seguida percebo a expressão  da governanta mudar. Os olhos estreitam, segura os lábios com força para impedir que o sorriso se estenda, mas o semblante faceiro é perceptível.

— Performance admirável, Nádia. Pode continuar com suas tarefas agora – ordena, sinais de divertimento são notáveis em sua voz.

— O que está acontecendo? - pergunto envergonhada, os braços cruzados, sinto as bochechas arderem.

— Sei que desaprova meus “serviçais” desde que lhes mencionei na floresta, mas estão muito longe de serem isso, apenas desejava provocá-la – ele caminha até o armário da lavanderia anexa a cozinha e retira uma vassoura, após isso, continua sua explicação ao me entregar o objeto. - Nádia e o marido bateram em minha porta atrás de abrigo semanas após o apocalipse, o acordo era somente para uma noite, mas fiz uma proposta. Trabalhariam para mim quando precisasse e retribuíra-lhes dando proteção. Eles moram em uma casa menor na propriedade.

— E por que ela estava tão nervosa? - Ele revira os olhos, como se fosse óbvio.

— Simples, não estava. Conversei com Nádia no dia que retornei com você para casa, enquanto ela preparava o quarto, a convenci em fazer uma brincadeira. Pedi para que quando estiverem sozinhas, parecesse assustada. Sabia que iria atrás dos meus "serviçais" para convencê-los de que não me devem nada.

— Então tudo isso foi... - há uma palavra para isso, ouvi várias vezes entre os humanos, um estalo em minha memória a recorda – armação?

— E você caiu direitinho - afirma entusiasmado. 

Não sei como reagir, Caim me pregou uma peça, me pego conhecendo outra faceta do enigmático Primeiro Assassino. Não estou brava, apenas envergonhada por ter sido pega em meu plano. Pelo visto, Caim é um demônio peculiar, estou admirada pelo seu gesto com o casal.

— Não entendo...- admito, enquanto junto os pedaços de vidro com a vassoura.

— Terá que ser mais específica - destaca, a sobrancelha levemente arqueada, o corpo apoiado na parede, me observa limpar a bagunça.

— Acolheu desconhecidos e deu-lhes abrigo, não parece a atitude de um demônio. Por que fez isso? - completo.

— Porque quis – responde dando de ombros ao sair, me deixando sozinha com Nádia.  

Sua resposta me deixa mais intrigada, será que Caim ainda guarda dentro de si resquícios de sua natureza humana? Não há motivos para ser solidário, apesar de também ter me acolhido em um momento de vulnerabilidade. Entretanto, minha situação é diferente, é intrigante... Um mistério a ser resolvido pelo demônio. E se, além da sua antiga humanidade, passar tanto tempo entre os humanos tenha aplacado uma parcela de sua parte demoníaca? Mas essa é uma hipótese muito arriscada para me apoiar inteiramente. Demônios enganam e destroem, posso ser apenas uma peça em seu jogo.  

Nádia me encara e, como se lesse minha expressão, diz:

— Caim não é uma pessoa má – vira para o fogão, mexe a panela com o molho fervendo e experimenta o conteúdo na colher, assim que se dá por satisfeita desliga o fogo.

— Esse é o problema, ele não é uma pessoa, sequer humano – guardo a vassoura no armário assim que termino minha tarefa.

— Se não fosse por ele, Mark e eu não sobreviveríamos, foi um verdadeiro caos no começo. Perdemos amigos, familiares, nossa casa foi invadida por andarilhos. Estávamos vagando sem rumo quando batemos em sua porta, completamente encharcados pelo temporal. Foi muita gentileza de sua parte nos acolher.

— E como reagiram quando souberam de sua natureza? - Sento na banqueta embaixo da ilha, apoio meu braço no mármore e descanso minha cabeça na palma da mão. Meus olhos fixam nos seus, esperando atentamente sua resposta.

— Seus atos falaram mais alto, só porque vem de um lugar detestável, não quer dizer que seja da mesma forma. Vi os humanos fazerem coisas bem piores...

— Onde está seu marido?

— Em casa, olhe pela janela – aponta e sigo meu olhar na direção, me levanto para conseguir enxergar melhor e ela prossegue: - está vendo? Há uma trilha que leva para a base da colina, nossa casa fica ali embaixo. 

Visto que a cozinha está na direção oposta ao meu quarto, não havia reparado na residência quando estive no deck de madeira anexo aos meus aposentos. Acompanho o início da trilha, mas conforme se torna mais íngreme e consumida pela floresta densa, não consigo enxergar a casa entre as árvores.

— Parece um lugar reservado e tranquilo - comento distraída.

— E é, foi sorte encontrarmos Caim. Esse local é quase intocado pelas pragas, algumas chuvas ácidas ocasionais. Mas fora isso, não tivemos nenhum problema.

— Sorte... - sussurro. - Aparentemente, sim.

— Mas vá, suba e se prepare para o almoço - estou quase terminando.

— Posso ajudá-la... - mas ela me interrompe.

— Não gosto de ninguém me atrapalhando na cozinha, acabará me estressando ao invés de ajudar.

— Muito bem, se este é o caso - fico mais alguns segundos na mesma posição, até movimenta as mãos me indicando para sair.

Volto para o meu quarto e troco a camisola por uma blusa preta e uma saia rodada, preciso conversar com Caim sobre as roupas em meu armário, não faz o menor sentido ter mantido essas vestes femininas e antigas em sua casa. Mas isso não é uma urgência, diria que mais uma curiosidade.

Desço assim que Nádia bate em minha porta e anuncia que o almoço já está pronto. Não sinto fome, mas me acomodo na mesa de jantar para acompanhar Caim e discutir sobre uma ideia que tive, uma última alternativa para entrarmos em contato com minha família.

— Não vai se servir? - pergunta me encarando.

— Não há porquê, não preciso comer – rebato óbvia.

— Demônios encarnados também não precisam, o faço por gosto – responde, enquanto corta um pedaço da carne assada e leva até a boca, fecha os olhos e saboreia. - Seria um desrespeito com Nádia se não experimentasse.  

Sinto o aroma atrativo da comida e decido experimentar. Assim que coloco a primeira garfada com purê, carne assada e molho em minha boca, uma explosão de sabores me consome. Junto dela a satisfação e o êxtase, Caim me encara curioso, como se mais uma vez estivesse se divertindo comigo. Creio que a minha inexperiência o fascine, as vezes muito mais que o mistério que carrego.

— Do que precisa se alimentar para sobreviver? - questiono entre as garfadas.

— Achei que soubesse – ele toma um gole do vinho e em seguida limpa sua boca com o guardanapo de tecido antes de continuar a falar. - Da desgraça humana.  

Paro de mastigar e o encaro confusa:

— Veja, todos os sentimentos ruins, pensamentos sórdidos e atos que infrinjam a lei não são esquecidos. Essa negatividade é lançada para o universo, conhece aquele ditado, “pensamentos negativos atraem coisas ruins”? - Balanço a cabeça confirmando. - Ele é real, somos atraídos e consumimos essa energia.

— O apocalipse deve estar sendo um banquete para você – analiso, enquanto continuo experimentar comer pela primeira vez. Mastigo cada pedaço demoradamente, sentindo sua textura e as camadas de sabores.

— De fato – rebate pensativo, em seguida, continua seu almoço em silêncio. Sua reação me deixa confusa, como se fosse indiferente. 

Ao terminarmos de comer, ajudo Nádia a tirar a mesa, mas antes de me afastar da cozinha novamente, anuncia:

— So This Is Love, Ilene Woods – a encaro confusa e ela continua. - Esta é a música que estava cantando. Pessoalmente, não faz o meu estilo. Mas Caim parece ter um certo apreço pelo que é antigo, sempre o pego escutando músicas de décadas passadas em sua vitrola, aquela em cima da lareira. Além de achar a letra bonita, é a que escuta com maior frequência, por isso cantarolava.

— Nádia, sabe o porquê do armário antigo e das roupas? - Aproveito a deixa.

— Não faço ideia, nunca realmente perguntei. Acho que faz parte da sua excentricidade ao clássico.

— Mas se ele mantém essas roupas em casa, quem as usou? - Divago em voz baixa, Nádia parece não notar.

Será que o demônio se envolveu com alguém no passado? Minha teoria de que algo influenciou o modo como vive atualmente apenas se intensifica, existe sentimento mais poderoso do que o amor para provocar essa transformação? Bom, uma certeza eu tenho, Caim guarda mais segredos do que imaginava. 

Assim que terminamos nossa conversa, encontro o demônio na sala prestes a ligar a vitrola. O impeço colocando minha mão sobre a sua e o afastando do objeto, ele me encara confuso.

— Tenho uma ideia de como posso entrar em contato com o Céu - digo, me acomodando no sofá, ele faz o mesmo. - Mas é arriscada.

— Tem a minha total atenção. Arriscado é como um desafio para mim - ele umedece os lábios e cruza os braços. - E eu adoro desafios.

— Preciso que me mate – anuncio, o demônio se surpreende. 


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Notas finais do capítulo

O capítulo dessa semana está um pouco atrasado, fiquei sem tempo para terminar no sábado. E mais um detalhe, mudei a coloração das asas da Celeste, agora são carmesins, um tom de vermelho. Faz mais sentido para o que tenho planejado nos próximos capítulos, espero que não se importem. Boa noite!



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